ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 138 | ||
§ 138:1 | ʛ Graças te dou de todo o meu coração; diante dos deuses a ti canto louvores. | |
§ 138:2 | ᵻ Inclino-me para o teu santo templo, e louvo o teu nome pela tua benignidade, e pela tua fidelidade; pois engrandeceste acima de tudo o teu nome e a tua palavra. | |
§ 138:3 | Ɲ No dia em que eu clamei, atendeste-me; alentaste-me, fortalecendo a minha alma. | |
§ 138:4 | Ŧ Todos os reis da terra de louvarão, ó Senhor, quando ouvirem as palavras da tua boca; | |
§ 138:5 | ⱻ E cantarão os caminhos do Senhor, pois grande é a glória do Senhor. | |
§ 138:6 | Ɑ Ainda que o Senhor é excelso, contudo atenta para o humilde; mas ao soberbo, conhece-o de longe. | |
§ 138:7 | ⱻ Embora eu ande no meio da angústia, tu me revivificas; contra a ira dos meus inimigos estendes a tua mão, e a tua destra me salva. | |
§ 138:8 | Ꝋ O Senhor aperfeiçoará o que me diz respeito. A tua benignidade, ó Senhor, dura para sempre; não abandones as obras das tuas mãos. | |
O SALMO 138 | ||
SERMÃO AO POVO (Proferido em Útica) | ||
§ 1 | Havíamos preparado para vós um salmo curto, que mandamos fosse cantado pelo leitor; mas ele, parece, perturbado no momento leu um por outro. Preferimos seguir a vontade de Deus manifestada no erro do leitor a realizar a nossa em nosso propósito. Se, portanto, nós vos prendermos um pouco devido ao fato de que este é prolixo, não nos acuseis; mas acreditai que Deus não quis que trabalhássemos sem resultado. Não foi em vão que por ocasião de nosso primeiro pecado recebemos o castigo de comer o pão com o suor do rosto (cf Gn 3,19). Observai apenas se é pão. É pão se for Cristo, pois ele disse: “Eu sou o pão vivo, descido do céu” (Jo 6,41). Procuremos também nos profetas aquele que se nos revelou no evangelho. Lá não o vêem aquele sobre cujo coração ainda está posto um véu (cf 2Cor 3,14), conforme V. Caridade ouviu ontem. Quanto a nós, porém, uma vez que o sacrifício vespertino da cruz do Senhor rasgou o véu, a fim de se revelarem os segredos do templo, por todo o tempo em que Cristo nos é anunciado, apesar de ser com trabalho e suor, devemos comer o pão. | |
§ 2 | Nos profetas, por vezes fala nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto nossa Cabeça, o próprio Cristo salvador, que está sentado à direita do Pai (cf Mc 16,19); ele também por nossa causa nasceu da virgem, e sob Pôncio Pilatos, segundo sabeis, padeceu (cf Lc 2,7; 21,1ss); tendo sido derramado seu sangue inocente, preço que pagou por nós, redimiu-nos a nós culpados do cativeiro em que éramos detidos pelo diabo, perdoando-nos os delitos, e com o preço que pagou por nós, seu sangue, apagou o título de dívida que existia contra nós (cf Cl 2,13.14). Ele é o guia, o esposo, o redentor da Igreja, e nossa Cabeça. E, de fato, se é Cabeça, tem um corpo. Seu corpo, porém, a santa Igreja, é também sua esposa, à qual diz o Apóstolo: “Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros” (1 Cor 12,27). O Cristo total, portanto, Cabeça e corpo, é como um homem inteiro. Pois, a mulher foi tirada do varão e a ele pertence. E foi dito do primeiro matrimônio: “Serão dois numa só carne” (cf Gn 2,24). O Apóstolo interpreta, segundo o mistério, que não foi em vão que se refere àqueles dois seres humanos, porque eles figuravam Cristo e a Igreja. Pois, assim o expõe o Apóstolo: “Serão ambos uma só carne. É grande este mistério: refiro-me a Cristo e à Igreja” (cf 5,31.32). Ele afirma também que Adão é figura daquele que devia vir: “Que é figura daquele que devia vir” (Rm 5,14). Se, pois, Adão é figura daquele que viria, assim como de seu lado, enquanto dormia, foi feita Eva (cf Gn 2,21.22), do lado do Senhor que dormia, isto é, que morria em sua paixão, e fora ferido na cruz pela lança, manaram os sacramentos, que plasmariam a Igreja. Efetivamente, acerca de sua futura paixão, assim se exprime ele em outro salmo (cf Jo 19,34): “Eu adormeci, caí em sono profundo, despertai, porque o Senhor me acolherá” (Sl 3,6). Com efeito, por este sono se entende a paixão. Eva foi tirada do lado de Adão que dormia, a Igreja do lado de Cristo, que estava padecendo. Por conseguinte, fala nosso Senhor Jesus Cristo nos profetas, às vezes, com sua voz, às vezes com a nossa, porque ele se torna um conosco, segundo a palavra: “Serão dois numa só carne” (Gn 2,24). Daí dizer o próprio Senhor no evangelho, ao tratar do casamento: “De modo que já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19,6). Uma só carne, por que assumiu carne de natureza mortal; não, porém, uma só divindade, porque ele é o Criador e nós somos criaturas. Tudo aquilo, portanto, que o Senhor fala em lugar da carne que assumiu pertence à Cabeça que já subiu ao céu e aos membros que ainda labutam na peregrinação terrena. Em favor destes membros em trabalhos, quando Saulo os perseguia, o Senhor clamou do céu: “Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4). Ouçamos, então, nosso Senhor Jesus Cristo a falar em profecia. Os salmos foram cantados muito tempo antes que o Senhor nascesse de Maria, mas não antes que fosse Senhor. Pois, foi sempre o Criador de todas as coisas, mas uma vez nasceu de uma criatura. Acreditemos naquela divindade, e quanto pudermos, entendamos que é igual ao Pai. Mas aquela divindade igual ao Pai, se tornou participante de nossa mortalidade, não por sua natureza, mas pela nossa, a fim de que nos tornássemos participantes de sua divindade; não pelo que é nosso, mas por aquilo que é dele. | |
§ 3 | 2 “Senhor, tu me perscrutaste e me conheceste”. Diga o próprio Senhor, Jesus Cristo, diga também ele: “Senhor”, ao Pai. Seu Pai não é seu Senhor senão porque ele se dignou nascer segundo a carne. É Pai de Deus, Senhor do homem. Queres saber de quem é Pai? Do Filho, igual a si. O Apóstolo diz: “Sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”. O Pai tem esta condição divina, e igual condição o Filho unigênito, nascido de sua substância. Por nossa causa, porém, a fim de sermos restaurados e nos tornarmos partícipes de sua divin-dade, restaurados para a vida eterna, porque ele, conforme disse, se tornou participante de nossa mortalidade; que declarou sobre ele o Apóstolo, na passagem onde dissera: “Sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus? Afirma: Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E sendo exteriormente reconhecido como homem” (Fl 2,6.7). Na condição divina era igual ao Pai; e assumiu a condição de servo, na qual é menor do que o Pai. Daí provém que no evangelho se encontram ambas as coisas: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30) e: “Porque o Pai é maior do que eu” (Jo 14,28). “Eu e o Pai somos um”, segundo a condição divina. “O Pai é maior do que eu”, segundo a condição de servo. Uma vez, portanto, que é Pai e é Senhor, Pai na condição divina, Senhor relativamente à condição de servo, diga o Filho e não nos admiremos, nem nos escandalizemos por dizer o Filho Único de Deus: “Senhor, tu me perscrutaste e me conheceste”. Perscrustaste e conheceste. Não quer dizer que não conhecia, mas que o tornaste notório aos demais. “Tu me perscrutaste e me conheceste”. | |
§ 4 | “Tu me conheceste ao sentar-me e ao levantar-me”. Que indica este sentar-se? Que é levantar-se? Quem se assenta, humilha-se. O Senhor, portanto, sentou-se na paixão, levantou-se na ressurreição. “Tu o conheceste”, isto é, tu quiseste, tu aprovaste; aconteceu segundo tua vontade. Se, porém, quiseres tomar no sentido de falar a Cabeça em lugar do corpo, digamos também nós: “Tu me conheceste ao sentar-me e ao levantar-me”. O homem se senta quando se humilha pela penitência; levanta-se, contudo, quando se ergue pela esperança da vida eterna. Por este motivo, diz outro salmo: “Erguei-vos após terdes estado sentados, vós que comeis o pão da dor” (Sl 126,2). Os penitentes comem o pão da dor; eles cantam em outro salmo: “Minhas lágrimas noite e dia se tornaram o meu pão” (Sl 41,4). Que significa então: “Erguei-vos após terdes estado sentados?” Não vos exalteis, se não tiverdes sido humilhados. Muitos, de fato, querem erguer-se antes de terem estado sentados; querem parecer justos, antes de se confessarem pecadores. Por conseguinte, se tomas as palavras como atinentes à Cabeça, este é o sentido: “Tu me conheceste ao sentar-me e ao levantar-me”, isto é, mi-nha paixão e minha ressurreição. Se, porém, as relacionas ao corpo: “Tu me conheceste ao sentar- me e ao levantar-me”, quer dizer, confessei meus pecados diante de teus olhos, e fui justificado por tua graça. | |
§ 5 | 3.4 “Penetraste de longe os meus pensamentos, investigaste as minhas sendas e os meus limites, e previste todos os meus caminhos”. Por que: “de longe?” Conheces meus pensamentos durante minha peregrinação, antes de chegar à pátria. Considera o filho mais jovem; este também se tornou corpo de Cristo, a Igreja proveniente dos gentios. Na verdade, o filho mais jovem fora para longe. Com efeito, um pai de família tinha dois filhos. O mais velho não partira para longe; trabalhava no campo e representava os santos sob a lei, que praticavam as obras e os preceitos da lei. O gênero humano, ao invés, declinara para o culto aos ídolos e partira para uma região longínqua. Que coisa se acha mais distante do Criador do que o ídolo que fabricaste para ti? Partiu, por conseguinte, o filho mais jovem para uma região longínqua, levando consigo seus haveres, e segundo o evangelho, dissipou sua herança vivendo de modo devasso. Estando a passar fome, foi empregar-se com um dos principais daquela região, que o mandou cuidar de porcos. Ele queria matar a fome com as bolotas dos porcos, mas não o podia. Após trabalhos, angústia, tribulação e penúria, lembrou-se do pai e quis voltar. Assim falou: Levantar-me-ei e irei “procurar meu pai”. Levantar-me-ei, porque estava sentado. Reconhece neste salmo a sua voz: “Tu me conheceste ao sentar-me e ao levantar-me”. Estava sentado por penúria, levantei-me com saudade de teu pão. “Penetraste de longe os meus pensamentos”. Pois, partira para longe; mas onde não está aquele que eu deixei? “Penetraste de longe os meus pensamentos”. Por isso afirma o Senhor no evan-gelho que o pai foi ao seu encontro (cf Lc 15,11-20). Com efeito, penetrara de longe os pensamentos do filho. “Investigaste as minhas sendas e os meus limites. Minhas sendas” — quais, senão as perversas por onde ele caminhara, a fim de abandonar o pai, como se pudesse ocultar-se dos olhos daquele que o castigaria; ou, de fato, seria esmagado por aquela penúria, ou seria posto a cuidar de porcos, se o pai não quisesse flagelar o filho distante a fim de recuperá-lo bem próximo? Por isso, seja para onde for que partirmos, seja aonde for que nos adiantarmos, como um fugitivo recapturado, devido à vingança legítima de Deus, que castiga nossas más afeições, seremos cativos recapturados que falam: “Investigaste as minhas sendas e os meus limites”. Que quer dizer: “minhas sendas?” Aquelas que trilhei. Que são “os meus limites?” Aonde cheguei. “Investigaste as minhas sendas e os meus limites”. Meus longínquos limites não estavam distantes de teus olhos. Caminhara muito, mas tu lá estavas. “Investigaste as minhas sendas e os meus limites”. | |
§ 6 | “E previste todos os meus caminhos”. O salmista não disse: viste, e sim: “previste”. Antes que andasse por eles, antes de caminhar por ali, tu os previste; e permitiste que seguisse por meus caminhos com labor, a fim de que se não quisesse o labor, voltasse para teus caminhos. “Porque não há dolo em minha língua”. Por que assim se exprime? Porque confesso; segui minhas sendas, distanciei-me de ti; afastei-me de ti, onde estava bem, e o que era bom para mim fez-se um mal, fora de ti. De fato, se me sentisse bem fora de ti, talvez não quisesse voltar a ti. Por esta razão, o corpo de Cristo, que confessa seus pecados e que é justificado não em si, mas pela graça de Deus, declara: “Não há dolo em minha língua”. | |
§ 7 | 5 “Conheceste, Senhor todas as coisas, as últimas e as antigas”. Conheceste as últimas, quando cuidei dos porcos. Conheceste as antigas, quando reclamei a parte da herança que me tocava. As antigas foram o começo dos males mais recentes. Antigo pecado, quando caímos; última pena, quando chegamos a esta mortalidade laboriosa e perigosa. Oxalá sejam estes nossos últimos males! Serão os últimos se quisermos voltar. Existirá um novíssimo para os ímpios, aos quais se dirá: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,41). Nós, irmãos, porém, abandonamos a Deus até este ponto; até a mortalidade desta vida, baste o nosso labor. Lembremo-nos do pão de nosso Pai, recordemo-nos da felicidade da casa de nosso pai; não nos deleitem as bolotas dos porcos, os ensinamentos dos demônios. “Conheceste, Senhor, todas as coisas, as últimas e as antigas”. “As últimas”, onde cheguei; “as antigas”, onde te ofen-di. “Tu me formaste e puseste sobre mim a tua mão”. “Tu me formaste”. Onde? Nesta vida mortal. Por conseguinte, para os trabalhos, aos quais fomos destinados ao nascer. Ninguém nasce sem que Deus o tenha formado no seio de sua mãe; não há criatura de quem não seja ele o criador. “Mas formaste-me” no meio de trabalhos, “e puseste sobre mim a tua mão”. Mão que castiga, que pesa sobre o soberbo. Assim, salutarmente derruba o orgulhoso, para erguer o humilde. “Tu me formaste e puseste sobre mim a tua mão”. | |
§ 8 | 6 “Ciência maravilhosa, muito elevada, inacessível para mim”. Ouvi atentamente uma coisa que realmente é obscura, mas que se descobre com grande deleite, Moisés, aquele santo servo de Deus, com o qual Deus falava, através de uma nuvem (cf Ex 33,9; 34,5), porque ao falar no tempo, falava a seu servo, usando de uma criatura, isto é, não por sua substância, mas por uma criatura corporal, que emitisse sons a atingirem os ouvidos mortais dos homens. (Deus então falava, não como fala em sua substância). Como, então, fala em sua substância? Palavra de Deus é o Verbo de Deus. Verbo de Deus é Cristo. Aquele Verbo não soa e passa, mas permanece sempre imutável o Verbo pelo qual tudo foi feito (cf Jo 1,3). A este Verbo, Sabedoria de Deus, se diz: “Mudá-las-ás e se transformarão. Mas tu és sempre o mesmo” (Sl 101,27). E em outra passagem a respeito da Sabedoria, tendo a Escritura dito: “Sem nada mudar” (em si mesma), acrescenta: “tudo renova” (Sb 7,27). Esta sabedoria, portanto, permanecendo (no caso de se poder dizer que permanece; diz-se isto por causa de imutabilidade e não de imobilidade) e sempre se mantendo do mesmo modo, sem variar de lugar ou de tempo, nunca diferente aqui ou ali, nunca diversa do que é agora ou foi anteriormente, identifica-se com a palavra de Deus. A palavra dirigida a Moisés, ao homem constava de sílabas, de sons passageiros. Isso não aconteceria, se Deus não tomasse tal criatura, por meio da qual emitisse palavras e vozes. O santo varão Moisés reconhecia esta palavra de Deus, formada por meio das criaturas corporais; e desejou, almejou ver a face de Deus, pedindo a Deus que lhe falava: “Se encontrei graça aos teus olhos, mostra-me a ti mesmo” (Ex 33,13). Como o desejasse ardentemente, e se assim se pode dizer, pela familiaridade e amizade que Deus se dignara conceder-lhe, queria extorqui-lo de Deus, de sorte a ver sua majestade e sua face enquanto é possível falar em rosto de Deus, disse-lhe: “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo. Mas, colocar-te-ei na fenda da rocha e cobrir-te-ei com a palma da mão até que eu tenha passado e me verás pelas costas” (Ex 33,20-23). Destas palavras origina-se outro enigma, isto é, certa figura obscura da realidade. “Até que eu tenha passado e me verás pelas costas”, diz Deus, como se de um lado tivesse a face e da outro o dorso. Longe de nós pensar isto da majestade divina. Pois, para quem pensar assim sobre Deus, de que lhe serve estarem fechados os templos dos deuses? Ele fabrica um ídolo em seu coração. Há, portanto, naquelas palavras grandes mistérios. O Senhor falava, conforme disse, por intermédio de uma criatura, como queria, a seu servo. Subentende-se aqui a pessoa do próprio Senhor e Salvador nosso, Jesus Cristo. Ele, de fato, na condição divina, segundo a qual é igual ao Pai (cf Fl 2,6), é também invisível aos olhos humanos, como o Pai. Se, com efeito, a sabedoria humana não pode ser vista por nossos olhos, poderia sê-lo a Virtude e Sabedoria de Deus, por olhos de carne? Mas como o Senhor em tempo oportuno, haveria de assumir a carne, aparecendo até aos olhos da carne para curar interiormente a mente, quando fosse necessário aparecer deste modo, predisse este fato de maneira figurada a Moisés: “Não po-derás ver a minha face e me verás pelas costas mas quando tiver passado”. Para que não me vejas a face, cobrir-te-ei com a palma de minha mão. Que é esta passagem do Senhor, senão aquilo que menciona o evangelista: “Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai”? (Jo 13,1). Páscoa significa passagem. A palavra hebraica: Páscoa, traduz-se para o latim com o termo: Passagem. Que quer dizer: “Não poderás ver a minha face, mas me verás pelas costas?” Quem representava Moisés, quando lhe foi dito: “Não poderás ver a minha face, mas me verás pelas costas”, e isto: “quando eu tiver passado”, e para que não vejas a minha face, “cobrir-te-ei com a palma da mão?” Chamou de sua face, sua condição primeira e de certo modo suas costas a passagem deste mundo, através de sua paixão. Ele apareceu aos judeus, mas eles não o reconheceram. Moisés os representava, quando o Senhor lhe dizia: “Não poderás ver a minha face”. Donde vem que eles não viram a Deus encarnado? Porque sobre eles pesara a mão do Senhor. Isaías predissera a respeito deles: “Embota o coração deste povo, tapa-lhe os olhos” (Is 6,10), e ouve-se a voz deles em outro salmo: “Porque pesava sobre mim a tua mão” (Sl 31,4). Como agiu o Senhor para que então não conhecessem eles a divindade de Cristo (pois se o tivessem conhecido, jamais teria crucificado o Senhor da glória (1 Cor 2,8) e se o Senhor não tivesse sido crucificado, seu sangue não redimiria o orbe da terra), senão aquilo mesmo que o Apóstolo assegura sobre a profundidade das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus, exclamando: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos dos séculos” (Rm 11,33-36). O Apóstolo o afirma, porque dissera mais acima: “O endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios, e assim todo Israel será salvo” (Rm 11,25.26). Por conseguinte os judeus cegaram parcialmente, devido a sua soberba, pois se diziam justos; e obcecados crucificaram o Senhor. Este fez pesar sobre eles a sua mão, a fim de não o descobrirem, até que tivesse passado deste mundo ao Pai. Verifiquemos se após ter ele passado, se os judeus viram suas costas. O Senhor ressuscitou, apareceu a seus discípulos e a todos que haviam acreditado nele; não àqueles que o crucificaram, porque sua mão pesara sobre eles, até que ele próprio passasse. Depois, subiu ao céu, tendo passado quarenta dias com seus discípulos. Tendo se completado o dia de Pentecostes, enviou-lhes o Espírito Santo. Os discípulos, repletos do Espírito Santo, começaram a falar as línguas de todas as nações, embora houvessem nascido numa só, e tivessem aprendido uma só língua. Ficaram apavorados, atemorizados diante de tão grande milagre, milhares daqueles que haviam crucificado o Senhor (cf At 1,3; 2,1ss). Contritos de coração diante de tão grande milagre, pediram conselho aos apóstolos acerca do que deviam fazer, após ser-lhes anunciado o Cristo, muito admirados de que homens incultos falassem as línguas de todos. O apóstolo Pedro, portanto, anunciou-lhes o Cristo que eles haviam desprezado na cruz e de quem haviam zombado, como se fosse um mortal. Insultavam-no porque não descia da cruz. No entanto, foi na verdade muito mais o que fez, ressurgindo do sepulcro do que se descesse da cruz. Por isso, sendo-lhes anunciado Cristo, perguntaram: “Que devemos fazer?” Eles que se enfureceram contra o Senhor que viam, já pedem um conselho salutar; e obtiveram a resposta: “Convertei-vos e seja cada um de vós batizado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, para a remissão dos pecados”. Eis como viram as suas costas, não tendo podido ver a sua face. Pois, a mão do Senhor pesara sobre seus olhos; mas não para sempre e sim até que ele passasse. Após ter passado, retirou de seus olhos a mão. Quando o Senhor retirou a mão de seus olhos, perguntaram aos discípulos: “Que devemos fazer?” (At 2,37-38). Primeiro cruéis, depois pios; primeiro irados, depois tímidos; primeiro duros, depois flexíveis; primeiro estavam cegos, mas depois recuperaram a luz dos olhos. | |
§ 9 | Julgo que podemos reconhecer neste salmo as vozes deste povo, a lembrar-se de sua infidelidade. “Deus encerrou todos na desobediência para a todos fazer misericórdia” (Rm 11,32). “Tu me formaste e puseste sobre mim a tua mão. Ciência maravilhosa, muito elevada, inacessível para mim”. De certo modo puseste sobre mim a tua mão, e te tornaste para mim uma coisa extraordinária; estava contigo e não te compreendia. Como era acessível para mim a face do pai, quando lhe disse: “Dá-me a parte da herança que me cabe” (Lc 15,12). Parti, de fato, para uma região longínqua e morto de fome, sinto que é demais para mim e tenho de trabalhar; não posso apreender o que perdi. “Ciên-cia maravilhosa, inacessível para mim”. Meu pecado fez com que se tornasse para mim admirável, incompreensível. Pois, tinha facilidade em te contemplar quando não te abandonara pela soberba. “Ciência maravilhosa, muito elevada, inacessível para mim”, mas subentende-se: por mim mesmo. “Inacessível relativamente a minhas forças; mas quando se tornar possível para mim, só o poderei por ti. | |
§ 10 | 7 Eis como encontras em região longínqua o fugitivo que não pode esconder-se daquele de quem foge. Para onde haverá de partir, se seus limites foram investigados? Vede como se exprime: “Aonde irei para longe de teu espírito? Pois, o espírito do Senhor enche o universo” (Sb 1,7). Quem pode fugir daquele Espírito que enche o mundo? “Aonde irei para longe de teu espírito e aonde fugirei de tua face?” Ele procura um lugar para onde possa fugir longe da ira de Deus. Que lugar acolherá o fugitivo de Deus? Os homens, ao acolherem fugitivos, perguntam de quem eles estão fugindo; e se encontram um servo de um senhor menos poderoso, acolhem-no sem temor, dizendo em seu coração: Não tem um senhor que pode procurá-lo. Ouvindo, porém, que se trata de um senhor poderoso, ou não acolhem, ou só acolhem com muito medo; porque mesmo um homem poderoso pode ser enganado. Mas, onde é que Deus não está? Quem pode enganá-lo? Quem escapa do olhar de Deus? Qual o fugitivo que Deus não procura? Para onde, então, irá quem foge da face de Deus? Vira-se para cá e para lá, procurando um lugar para fugir. | |
§ 11 | 8 “Se subir ao céu ali estás; se descer ao inferno ali estás presente”. Afinal compreendeste, fugitivo em situação má, que de forma alguma podes te apartar daquele de quem quiseste te distanciar. Eis que ele se acha em toda parte; e tu, para onde irás? Encontrou uma solução, mas inspirada por aquele que já se digna chamá-lo novamente. “Se subir ao céu ali estás, se descer ao inferno ali estás presente”. Se me exalto, encontro tua repressão; se me escondo, encontra-me tua busca; e não uma simples busca, mas uma investigação. Se, porém, se orgulhar de minha justiça, tu, que possuis a verdadeira justiça ali estás. Se pecando chegar às profundezas dos males, e desprezar confessá-lo (cf Pr 18,3), dizendo: “Quem me vê”? (Eclo 23,18). Pois, “no inferno quem te confessará”? (Sl 6,6). Também lá te achas para castigares. Então, para onde hei de ir, para fugir de tua face, isto é, para não sentir a tua ira? | |
§ 12 | 9 Encontrei esta solução: Fugirei de tua face, fugirei de teu Espírito; fugirei de teu Espírito disposto a vingar, de tua face vindicativa, assim fugirei. Como? “Se retomar minhas asas na direção certa, se habitar nos confins do mar”, poderei fugir de tua face. Se ele quer fugir da face de Deus para os confins do mar, ali não estará aquele de quem foge e do qual ele mesmo disse: “Se descer ao inferno ali estás presente?” É espantoso que não esteja nos confins do mar aquele que não está ausente nem dos infernos. Mas, diz o salmista, sei como fugir de tua ira. Retomarei minhas asas não numa direção errada, mas na direção certa. Não presumirei com soberba, nem mergulharei num desespero que conduz à perdição. Quais as asas que quer tomar, senão as duas asas, os dois preceitos da caridade? Desses dois preceitos dependem toda a lei e os profetas (cf Mt 22,40). Se retomar essas asas e habitar nos confins do mar, posso fugir de uma de tuas faces a outra, da face de Deus irado à face do Deus aplacado. Que são os confins do mar senão o fim do mundo? Vamos voar desde já para lá pela esperança e pelo desejo, tendo as duas asas da caridade; não descansemos senão nos confins do mar. Pois, se quisermos descansar em outra parte, seremos precipitados no mar. Voemos até os confins do mar, elevemo-nos com as duas asas do amor; nesse ínterim voemos para Deus por meio da esperança, e antecipemos a chegada aos confins do mar por meio de uma esperança cheia de fé. | |
§ 13 | 10 Mas, quem nos levará até lá? Notai. Aquele mesmo de cuja face queremos fugir, quando está irado. Pois, como continua o salmo? “Se descer ao inferno ali estás presente. Se retomar minhas asas na direção certa”. Retomar, diz o salmista; portanto, tinha perdido. “Se retomar minhas asas e seguir a direção certa, se habitar nos confins do mar. Até lá me conduzirá a tua mão e a tua destra me sustentará”. Nisso nos empenhemos, irmãos caríssimos. Seja esta nossa esperança, nosso consolo. Retomemos as asas pela caridade, uma vez que as perdêramos pela ambição. Pois, a ambição foi o visgo em nossas asas; derrubou-nos da liberdade do ar, isto é, das auras livres do Espírito de Deus. Caindo, perdemos as asas, e fomos apanhados, ficando em poder do caçador; dali nos resgatou com seu sangue aquele de quem fugimos para sermos apanhados. Ele fortifica-nos as asas com seus preceitos; podemos abri-las, já sem visgo. Não amemos o mar, mas voemos até os confins do mar. Ninguém tenha medo; mas também ninguém presuma de suas asas, porque mesmo tendo asas, se o Senhor não nos levantar, se ele mesmo não nos conduzir, seremos precipitados no fundo do mar, cansados e fatigados, por presumirmos de nossas forças. É necessário, portanto, termos asas, é necessário que ele nos conduza; pois é nosso auxílio. Temos o livre-arbítrio; mas quanto podemos com o livre-arbítrio, se não nos ajudar aquele que nos dá ordens? “Até lá me conduzirá a tua mão e a tua destra me sustentará”. | |
§ 14 | 11 E considerando a extensão da estrada, que disse o salmista a si mesmo? “Se eu disser: Talvez as trevas me oprimam”. Eis que já acreditei em Cristo, já me ergo com as duas asas da caridade, mas cresce a iniqüidade deste mundo; e “pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará” (Mt 24,12). Nesta vida, entre tantos escândalos, entre tantos pecados, no meio de tamanha quantidade de tentações cotidianas, de cotidianas sugestões más, que posso fazer? Como atingirei os confins do mar? Ouço do Senhor de maneira terrível: “Pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará. E prossegue: Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24,13). Considerando a extensão da estrada, disse a mim mesmo: “Talvez as trevas me oprimam. Mas a noite se fez luz para minhas delícias”. A noite se tornou luz para mim; porque durante a noite perdera a esperança de poder atravessar um mar tão imenso, superar um caminho tão longo e chegar ao termo perseverando até o fim. Graças sejam dadas àquele que me procurou enquanto estava fugitivo, que me feriu o dorso com as chagas do flagelo, que me chamando me retirou da ruína, que iluminou minha noite. É noite enquanto decorre a vida presente. Como fica iluminada a noite? Cristo desce à noite. Quando Cristo assumiu a carne neste mundo a iluminou nossa noite. Aquela mulher perdera uma dracma (cf Lc 15,8). A Sabedoria de Deus perdera uma dracma. Que é esta dracma? Dracma era uma moeda tendo gravada a imagem de nosso Imperador. Ele fizera o homem à imagem de Deus (cf Gn 1,27), mas o homem perecera. E que fez a mulher prudente? Acendeu uma lâmpada. A lâmpada é de barro, mas produz a chama, com a qual se encontra a dracma. A lâmpada da sabedoria, portanto, é a carne de Cristo, feita de argila; mas o Verbo brilha e encontra os perdidos. “Mas a noite se fez luz para minhas delícias”, a noite se fez para mim uma delícia. Nossas delícias é Cristo. Vede como nos alegramos por causa dele. Estas vossas exclamações, esta vossa alegria de onde vêm, senão das delícias? De onde provêm as delícias, senão porque a noite foi iluminada, senão porque nos é anunciado Cristo, nosso Senhor? Ele vos procurou antes que o buscásseis, e vos encontrou para que o encontrásseis. “E a noite se fez luz para minhas delícias”. | |
§ 15 | 12 “As próprias trevas para ti não serão escuras”. Não faças tuas trevas ainda mais escuras; também Deus não as escurece, mas as ilumina: porque foi-lhe dito em outro salmo: “Senhor, fazes brilhar a minha lâmpada. Iluminarás meu Deus, as minhas trevas” (Sl 17,29). Quem, então, escurece suas trevas, se Deus não as escurece? Os homens malvados, os perversos; ao pecarem, são de fato trevas; se não confessam os pecados que cometeram, mas ainda por cima os defendem, escurecem mais suas trevas. Por conseguinte, se já pecaste, estás nas trevas; mas confessando teus pecados, tuas trevas, merecerás que elas se iluminem; mas se defenderes tuas trevas, escurecê-las-ás. E quando escaparás destas trevas duplas, se nas simples já lutavas? Donde vem que o Senhor não escurece nossas trevas? De que ele não nos deixa impunes os pecados; castiga-nos com tribulações, e nos educa. Toda a miséria do gênero humano que faz o mundo gemer; sabei, irmãos, é dor medicinal e não sentença penal. Vedes dor em toda parte, em toda parte medo, em toda parte necessidade, em toda parte labores. A avareza cresce, mas no meio de males. Se Deus nos instrui por meio de tais flagelos, a fim de que nossas trevas não fiquem mais escuras, reconheçamos que estamos sob o castigo do flagelo, e bendigamos o Senhor que mistura amarguras à suavidade da vida temporal, a fim de que não nos cegue com o prazer das delícias temporais, e desejemos as delícias eternas, aspiremos por alcançar o fim do mar e habitemos em seus confins. Enfureçam-se, portanto, as ondas do mar; quanto mais se enfurecem os vagalhões, tanto mais a pomba levanta o vôo. Deus, portanto, não acentua nossas trevas, ao misturar castigos aos nossos pecados, e amarguras dos nossos prazeres perversos. Não aumentemos nós as nossas trevas defendendo nossos pecados, e a noite se fará luz para nossas delícias. “As próprias trevas para ti não serão escuras”. | |
§ 16 | “E a noite brilhará como o dia”. A noite como o dia. Dia representa a prosperidade neste mundo, e noite, a adversidade. Mas, se reconhecermos que merecemos sofrer adversidades devido a nossos pecados, ser-nos-ão suaves os castigos do Pai, a fim de não sofrermos amarga sentença do juiz. Assim consideraremos as trevas desta noite como luz que brilhe durante a noite. Se é noite, como haverá luz? É noite, porque o gênero humano está no erro; é noite, porque ainda não veio o dia, que não está encerrado entre um ontem e um amanhã, mas é perpétuo, sem aurora, sem ocaso. Portanto, agora é noite; mas esta noite possui certa luz, e possui algumas trevas. Porque generalizando dizemos que é noite? Qual a luz nesta noite? A prosperidade e a felicidade presentes, a alegria temporária, a honra temporária servem de luz durante esta noite. A adversidade, porém, e a amargura da tribulação ou a ignomínia constituem as trevas desta noite. Nesta noite, na mortalidade da vida humana os homens possuem sua luz, e possuem suas trevas; a luz da prosperidade, as trevas da adversidade. Mas logo que se aproximar Cristo Senhor, e habitar na alma pela fé, prometendo outra luz, e inspirar e der paciência, admoestando a não se deleitar na prosperidade para não desfalecer na adversidade, a alma fiel começa a usar com indiferença deste mundo. Não se orgulha quando tudo corre bem, nem desanima quando corre mal, mas em tudo bendiz o Senhor; não somente na abundância, mas ainda quando tudo perde; não apenas quando goza de saúde, mas igualmente quando adoece, de tal forma que canta com verdade: “Bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,2). Ora, se é “sempre”, quando brilha a luz na noite, quando a noite é obscura, quando sorri a prosperidade, quando entristece a adversidade, sempre esteja seu louvor em tua boca; e realizar-se-á em ti a palavra: “São dele as trevas como a luz”. Suas trevas não me oprimem, porque não me exalta a sua luz. | |
§ 17 | Podes ver a luz em Jó. Teve fartura de todos os bens. Em primeiro lugar descreve-se a luz da noite, em suas riquezas; quantos bens e em que quantidade. Era a luz de sua noite. O inimigo pensava que tal varão adorava a Deus porque lhe dera tudo aquilo e pediu que tudo lhe fosse retirado; desceram as trevas da noite sobre aquele que antes tinha a luz. Entretanto Jó sabia que com luz, ou com trevas, achava-se naquela noite, em que era peregrino, longe de seu Deus; e tinha como luz interior o próprio Deus. Essa luz interior fazia com que se portasse com indiferença diante das trevas ou da luz daquela noite. Por isso, à luz daquela noite, isto é, na abundância de bens, adorava a Deus; quando estes lhe foram tirados, vindo as trevas, que disse ele? “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; conforme agradou ao Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor” (Jo 1,21). Estou como numa noite desta vida. Meu Senhor, disse ele, habita em meu coração; ele iluminou com certos socorros esta noite, quando me dera fartura de riquezas temporais; subtraiu-me, porém, a própria luz temporal, e a noite se escureceu. Mas como “são dele as trevas e a luz: O Senhor os deu, o Senhor o tirou”; conforme foi do agrado do Senhor, assim se fez; “bendito seja o nome do Senhor”. Não me entristeço nessa noite, porque “são dele as trevas como a luz”. Ambas passaram, de tal sorte que aqueles que choram, sejam como se não chorassem, aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem (cf 1Cor 7,30), porque “são dele as trevas como a luz”. | |
§ 18 | 13 “Possuíste, Senhor, os meus rins”. Não é sem motivo que diz o salmista: “São dele as trevas como a luz”. O possuidor está no meu interior; possui não somente o coração, mas também os rins; não apenas os pensamentos, mas também os prazeres. Ele, portanto, possui o local onde me deleitaria a pequena luz na noite; ele possui meus rins; não posso deleitar-me senão com a luz interior de sua sabedoria. E então? Não te deleitas com a prosperidade, a felicidade temporal, as honras, as riquezas, a família? Não me deleito, responde. Por quê? Porque “são dele as trevas como a luz”. De onde se origina esta indiferença, de sorte que dele seja, para ti as trevas como a luz? De onde? Porque “possuíste, Senhor os meus rins; tu me amparaste desde o seio de minha mãe”. Enquanto estava no seio de minha mãe, não eram indiferentes para mim as trevas ou a luz desta noite. Com efeito, seio de minha mãe eram os hábitos de minha cidade. Que cidade é esta? A que primeiro nos gerou para o cativeiro. Conhecemos aquela Babilônia, de que falamos ontem. De lá saem todos os que crêem, e suspiram por aquela luz, a Jerusalém celeste. Eu, portanto disse: Do seio de minha mãe fui acolhido pelo Senhor; então, as trevas desta noite e a luz desta noite se tornaram indiferentes para mim. Quem, contudo, se acha no seio daquela mãe, Babilônia, alegra-se com a prosperidade mundana, fica alquebrado com as adversidades no mundo; não sabe regozijar-se senão quando acontece algo de próspero no tempo, nem se contrista a não ser que suceda algo de contrário segundo o tempo. Saí do seio de Babilônia, começa a cantar um hino ao Senhor. Sai e nasce; Deus te acolherá do seio de tua mãe. Que Deus é este? Deus, a quem se refere o apóstolo Paulo: “Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno, houve por bem revelar em mim o seu Filho” (Gl 1,15.16). Quem era sua mãe? A sinagoga. E ali, que aprendera a não ser o que tinham e haviam aprendido os próprios judeus e o povo? Ficara-lhes o nome de louvor de Deus; mas neles não se encontravam ações que o louvassem. As palavras de Deus eram neles semelhantes as folhas de uma árvore, mas frutos não se achavam em parte alguma. Como sabeis, ao encontrar o Senhor uma figueira nessas condições, amaldiçoou-a e ela secou (cf Mt 21,19; cf Mc 11,13). Pois, nela achou folhas, mas não frutos. Era uma árvore que nos simbolizava. Com efeito, ainda não era época dos frutos; o criador do céu e da terra não sabia o que era notório a todos os homens? Portanto, aquele que separou Paulo desde o seio materno, também nos separou desde o seio de nossa mãe. De que mãe? Daquela Babilônia. Acolhidos, portanto, desde o seio materno, já começamos a ter esperança. Ele prometeu, irmãos e por isso vos alegrais; frutificai, devido a outra esperança. Só conhecemos como mal ofender a Deus e não sermos levados ao prêmio que nos prometeu; nem conhecemos outro bem a não ser merecermos ver a Deus, e sermos conduzidos aos bens que ele prometeu. Quanto aos bens deste mundo e aos males deste mundo, que faremos? Sejam-nos indiferentes. Já acolhidos desde o seio materno, e considerando esses bens como indiferentes, dizemos: “São dele as trevas como a luz”. Nem a felicidade deste mundo nos faz felizes, nem a adversidade, infelizes. Importa mantermo-nos na justiça, amar a fé, esperar em Deus, amar a Deus, amar também o próximo. Depois destes trabalhos, teremos a luz indefectível, o dia sem ocaso; passa tudo o que nesta noite é lúcido e tenebroso. “Possuíste, Senhor, os meus rins, tu me amparaste desde o seio de minha mãe”. | |
§ 19 | 14 “Glorificar-te-ei, Senhor, porque te engrandeceste de maneira assombrosa. De maneira assombrosa te engrandeceste”. Nós te admiramos porque és assombroso; alegramo-nos com tremor. Pois, temos medo de que, nos exaltando pela soberba diante de teus dons, mereçamos perder o que recebemos por causa de nossa humildade. “Glorificar-te-ei, Senhor, porque te engrandeceste de ma- neira assombrosa. São admiráveis as tuas obras e minha alma profundamente o reconhece”. Minha alma já o reconhece profundamente, porque me amparaste desde o seio materno; com efeito, tua ciência maravilhosa me ultrapassou, era muito elevada, inacessível para mim. Portan-to, me ultrapassara, e era inacessível para mim. De onde provém, então, que agora minha alma o reconhece profundamente, a não ser porque a noite se fez luz para minhas delícias? Senão porque veio tua graça e iluminou minhas trevas? Senão porque possuíste os meus rins? Senão porque me amparaste desde o seio de minha mãe? | |
§ 20 | 15 “Meus ossos, que formaste secretamente, não te são ocultos”. Refere-se aos ossos. Vulgarmente se diz: ossum, enquanto o latim correto diz: os. Assim se encontra no grego. Pois, poderíamos aqui supor que seria os que tem o plural: ora (boca, bocas); e não os, plural: ossa (osso, ossos). Tenho secretamente certo osso (ossum). Vamos falar assim; é melhor que os gramáticos nos censurem, do que ficar o povo sem entender. Portanto, existe um osso (ossum) secretamente, mas não escondido de ti. Com efeito, fizeste-o secretamente; por acaso o escondeste de ti mesmo? Os homens não podem ver esses ossos que fizeste para mim secretamente; conhece-os tu, que os fizeste. De que osso trata o salmista, irmãos? Investi-guemo-lo; é coisa secreta. Uma vez que sendo cristãos, falamos a cristãos, em nome do Senhor, encontramos agora que significa este osso. Trata-se de determinada firmeza interior; porque por ossos entende-se a firmeza, a fortaleza. Existe, portanto, certa firmeza interior da alma, que não se dobra. Quaisquer que forem os tormentos, as tribulações, as adversidades deste mundo que se enfureçam de todas as partes, aquilo que Deus secretamente fez firme, em nós não pode ser quebrado, não cede. Deus nos deu certa firmeza em nossa paciência, a respeito da qual diz outro salmo: “Minha alma se há de submeter a Deus. É dele que depende a minha paciência” (Sl 61,6). Observa como o apóstolo Paulo tem esta espécie de firmeza: Diz ele: “como tristes e, não obstante, sempre alegres” (2 Cor 6,10). Por que: “como tristes? Por causa das injúrias, opróbrios, perseguições, flagelos, golpes, apedrejamentos, cárceres, cadeias. Quem não os julgaria infelizes nessas condições? Os próprios perseguidores não seriam cruéis contra eles, se não pensassem que suas perseguições os faziam infelizes. Eles os julgavam de acordo com sua própria fraqueza, pois não tinham interiormente ossos ocultos. Os outros, porém, que os possuíam ocultamente, por fora pareciam tristes aos homens, mas interiormente alegravam-se diante de Deus. A este Deus, que lhes dera secretamente os ossos, isso não era oculto. O mesmo apóstolo Paulo alude a esses ossos ocultos, criados por Deus, nesses termos: “E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações”. Não basta que não te entristeças, mas ainda te glorias disso? Era suficiente não ficar triste. Respondes: Isto é pouco para os cristãos. Tu me deste tais ossos secretamente, que não basta não ficar esmagado, mas ainda me glorio. Por que motivo te glorias? “Nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança”. Vê se forma aquela firmeza interior no coração: “Sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5). Assim foram formados e firmados aqueles ossos ocultamente, de sorte a levar-nos a nos gloriarmos até nas tribulações. Mas aparentemente somos infelizes, porque está escondido o que temos interiormente. “Meus ossos, que formaste secretamente, não te são ocultos, nem a minha substância nas profundezas da terra”. Eis que a minha substância se encontra na carne, nas profundezas da terra; todavia, tenho interiormente ossos que formaste, e que não me deixam ceder diante de todas as perseguições desta região inferior, onde ainda se encontra a minha substância. Que há de extraordinário que um anjo seja forte? Coisa grandiosa é que a carne seja forte. E como há de ser forte a carne, há de ser forte um vaso de barro, senão por possuir secretamente ossos? “Nem a minha substância, nas profundezas da terra”. | |
§ 21 | 16 Mas, o que acontece aos que são menos firmes? Pois, quem aqui se exprime, conforme já o observei, é Cristo. Ele, contudo, fala muitas coisas em lugar do corpo; ouve-se também a Cabeça. Quase não se distingue, ora estando a falar a Cabeça, ora o corpo. Se, pois, distinguisse, de certo modo dividiria; não seriam dois numa só carne (cf Ef 5,31.32). Se, porém, são dois numa só carne, não é de admirar que sejam dois numa só voz. Quando nosso Senhor Jesus Cristo padeceu, os discípulos ainda não tinham interiormente ossos; ainda não estavam corroborados com o vigor da paciência. Isso lhes estava oculto; não conheciam as suas próprias forças. E Pedro ousou prometer que aompanharia até a morte o Senhor em sua paixão. Não sabia que estava doente; mas o médico conhecia o paciente. E o que sucedeu? Disse Pedro: “Estou pronto a ir contigo à morte. Pedro, eu te digo: o galo não cantará hoje sem que por três vezes tenhas negado conhecer-me” (Lc 22,33.34; Mt 26,34.35). A resposta do médico mostrou-se mais verídica do que a presunção do doente. Sobre o assunto, portanto, diz o salmista: “Meus ossos, que formaste secretamente, não te são ocultos”. Neles se fortificaram os ossos por dentro. O vigor máximo na paixão se acha em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ele quando quis, sentou-se; quando quis, levantou-se; quando quis, adormeceu; quando quis despertou; porque, segundo ele mesmo disse: “Tenho o poder de entregar a minha vida e a poder de retomá-la” (Jo 10,18). Que declara acerca daqueles em quem não se formara nem consolidara a fortaleza? Que diz deles? Vê como se dirige a Deus Pai: “Teus olhos viram a minha imperfeição”. Minha imperfeição, Pedro, meu discípulo, que prometeu e negou, que presumiu e falhou; entretanto teus olhos o viram. Pois, o próprio Senhor o olhou, conforme se acha escrito no evangelho, após a terceira negação, advertindo-o daquilo que lhe predissera e ele: “indo para fora, chorou amargamente” (cf Lc 22,61.62). Aquelas lágrimas foram causadas pelo olhar compassivo de Deus, porque: “Teus olhos viram minha imperfeição”. Efetivamente, o discípulo imperfeito, vacilando durante a paixão do Senhor, sem dúvida pereceria, mas viram-no os teus olhos; e não só a este, mas a todos os outros que eram imperfeitos, até que se fortalecessem pela ressurreição de Cristo. Viram com os próprios olhos que o corpo do Senhor que morrera não havia perecido; e fortificaram-se os seus ossos secretamente, de tal forma que já não temiam a morte. “Teus olhos viram minha imperfeição. Em teu livro todos serão inscritos”. Não apenas os perfeitos, mas também os imperfeitos. Que estes não tenham medo. Mas, devem progredir. Se eu disse: Não temam, nem por isso amem a imperfeição e fiquem onde estão. Devem progredir, na medida de suas forças. Cada dia acrescentem um pouco, cada dia aproximem-se mais. Não se afastem do corpo do Senhor. Membros de um só corpo, unidos entre si, mereçam a palavra: “Teus olhos viram minha imperfeição. Em teu livro todos serão inscritos”. | |
§ 22 | “Errarão durante o dia e dentre eles ninguém (que não errasse)”. Aqui, dia ainda é nosso Senhor Jesus Cristo. É por isso que ele dizia: “Caminhai enquanto tendes luz” (Jo 12,35). Mas os imperfeitos “errarão durante o dia”. Julgaram que nosso Senhor Jesus Cristo era apenas homem; que não possuía em si oculta a divindade, não fosse secretamente Deus, mas fosse apenas o que aparentava; isso foi o que eles pensaram. Até o próprio Pedro (falamos especialmente dele, porque serve de exemplo de que não se deve perder a esperança por causa da fraqueza). O mesmo Pedro dissera ao Senhor, que interrogava sobre o que diziam os homens a respeito dele: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”. E o Senhor lhe respondeu: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai que está nos céus” (Mt 16,16.17). Por quê? Porque afirmara que ele era Filho de Deus. Ali, pouco depois, no mesmo lugar, no mesmo contexto, o Senhor começou a predizer sua paixão. Pedro, porém, que já confessara ser ele o Filho de Deus, ficou com medo de que morresse como filho do homem. Ele, de fato, era Filho de Deus, e era filho do homem: Filho de Deus, na condição divina, igual ao Pai; filho do homem, na condição de servo (cf Fl 2,6.7) em que era menor que o Pai (Jo 14,28). Viera, efetivamente para sofrer a paixão na condição de servo. Por que receou Pedro que na condição de servo perecesse a condição divina, em vez de presumir que pela condição divina reviveria a condição de servo? Assim falou Pedro: “Deus não o permita, Senhor! Isso jamais te acontecerá!” E o Senhor que o chamara de bem-aventurado, diz: “Arreda-te de mim, Satanás! Não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!” (Mt 16,13-23). Anteriormente, tendo dito: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”, ouvira a resposta: “Não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai que está nos céus”. Por isso era pedra, por isso era bem-aventurado. Agora, contudo, porque não respondera por revelação do Pai, mas somente devido à fraqueza da carne, foi denominado Satanás: “Não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens”. E aqui estava Cristo, irmãos; andava no meio deles, ordenara aos ventos (Mt 8,26), diante dos olhos deles andara sobre as ondas do mar (Mt 14,25), perante os olhos deles ressuscitara um morto havia quatro dias (Jo 11,39-44), diante dos olhos deles fizera tantos milagres; entretanto eles tiveram medo por causa de sua paixão, como se fossem perder aquele de quem haviam presumido em vão. Mas “errarão durante o dia e dentre eles ninguém que não errasse”. Ninguém, nem mesmo aquele que declara: “Contigo, até a morte” (Lc 22,33). O Senhor lhes dissera: “Eis que chega a hora em que vos dispersareis, cada um para o seu lado, e me deixareis sozinho”. “Mas eu não estou só, porque o Pai está comigo” (Jo 16,32). O Pai estava com ele, e ele com o Pai; ele e o Pai são um. Mas os discípulos tiveram medo quando ele morria. Por que, senão porque erraram durante o dia, e dentre eles ninguém que não errasse? “Errarão durante o dia e dentre eles ninguém que não errasse”. Mas que sentido tem a expressão: “Errarão durante do dia?” Por acaso se perderão? E onde fica então: “Teus olhos viram minha imperfeição. Em teu livro todos serão inscritos?” Então, quando foi que erraram durante o dia? Quando o Senhor estava na terra, e elas não o entenderam. Qual a conseqüência? “Mas a teus amigos, ó Deus, presto grandes honras”. Os mesmos que erraram durante o dia, e dentre eles não houve quem não errasse, tornaram-se teus amigos, e presto-lhes grandes honras. Após a ressurreição do Senhor, seus ossos se fortificaram ocultamente, e eles sofreram pelo nome daquele durante cuja paixão tiveram medo. “Mas a teus amigos, ó Deus, presto grandes honras. Muito se fortaleceu o seu principado”. Tornaram-se apóstolos, chefes da Igreja, carneiros que conduzem o rebanho, “muito se fortaleceu o seu principado”. | |
§ 24 | 18 “Se os contar, excederão os grãos de areia”. Por intermédio daqueles que erraram durante o dia, e não houve dentre eles quem não errasse, nasceu tão grande multidão que já é incontável como os grãos de areia; somente não para Deus. Pois ele disse: “Excederão os grãos de areia”. No entanto, dissera: “Contá-los-ei”. Serão contados os que “excederão os grãos de areia”. Conta os grãos de areia aquele que conta os cabelos da nossa cabeça (cf Mt 10,30). “Contá-los-ei, excederão os grãos de areia”. | |
§ 25 | “Despertei e ainda estou contigo”. Que quer dizer: “Despertei e ainda estou contigo?” Já sofri, fui sepultado; mas ressuscitei e eles ainda não entendem que estou no meio deles. “Ainda estou contigo”, isto é, ainda não com eles, porque eles ainda não me reconhecem. Lê-se no evangelho que após a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, os discípulos não reconheceram logo o Senhor que lhes aparecia (cf Mt 28,17). Há ainda outro sentido: “Despertei e ainda estou contigo” designa o período em que ainda está oculto à direita do Pai, antes de se revelar na glória com que virá para julgar vivos e mortos. | |
§ 26 | 19.20 Em seguida diz o que sofre na terra, em todo esse intervalo de tempo desde a ressurreição, em que está ainda com o Pai, pela mistura de pecadores em seu corpo, a Igreja, e pela separação dos hereges. O salmo prossegue: “Se matares, ó Deus, os pecadores; homens sanguinários apartai-vos de mim. Porque revolverás em tuas cogitações: Receberão em vão as suas cidades”. A meu ver, assim se coordenam as palavras: “Se matares, ó Deus, os pecadores, receberão em vão as suas cidades”. O sal-mista dá a entender que eles são mortos quando se incham de soberba, perdendo a graça que os vivifica. “Pois o espírito santo, o educador, foge da duplicidade, ele se retira diante dos pensamentos sem sentido” (Sb 1,5). Desta forma são mortos os pecadores, porque com a inteligência obscurecida (cf Ef 4,18), afastam-se da vida divina. De fato, perdem a confissão devido ao orgulho; e assim, estando mortos, se realiza neles o que foi escrito: “Para o morto, como se não existisse mais nada, o louvor acabou” (Eclo 17,28). E assim recebem “em vão as suas cidades”, isto é, seus povos vãos, seguindo a vaidade deles; estando inchados sob pretexto de justiça persuadem-nos a romperem o vínculo da unidade e a segui-los, como se fossem mais justos, os cegos e inexperientes. E encontram muitos nisso uma ocasião de se separarem da unidade de Cristo. Eles acusam os maus, com os quais fingem não quererem ter comunhão. E como pode acontecer que não apenas ataquem a fama dos inocentes de quem eles simulam fugir como sendo malvados, mas também falam a verdade de alguns maus, semelhantes a si, no meio deles geme o trigo de Cristo (cf Mt 3,12), que conserva o vínculo da unidade. Por isso intercalou o salmista: “Homens sanguinários, apartai-vos de mim. Porque revolverás em tuas cogitações: Receberão em vão as suas cidades”, isto é, seduzem, levando-os a sua própria separação seus povos, e corrompendo-os com a sua vaidade, porque tu “revolverás em tuas cogitações: Homens sanguinários, apartai-vos de mim”. Segundo merece sua soberba, os pecadores, mortos espiritualmente, em vão recebem suas cidades, a saber, seus povos. Separando-os, entregam-nos à vaidade do erro, e aparentando ofendidos com a mescla das palhas, rompem a unidade e abandonam o trigo. O Senhor exorta o próprio trigo, isto é, os bons fiéis a que antes da ventilação, que virá no fim, não se separem abertamente dos maus, para não suceder que abandonem os bons misturados com eles; mas por meio de uma vida bem vivida e pela diferença de costumes de certa maneira lhes falam sem palavras: “Homens sanguinários, apartai-vos de mim”. É a voz de Deus na consciência, como Deus fala no pensamento de seu povo santo. Quais são os homens sanguinários senão os que odeiam os irmãos, segundo a expressão de S. João: “Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida”? (1Jo 3,15). Visto que os pecadores que morreram não o entendem como Deus fala no pensamento dos bons aos maus: “Homens sangui-nários, apartai-vos de mim”, acusam-nos de comunhão com os maus; e separando-se por estas calúnias, recebem “em vão as suas cidades”. Esta palavra que agora no pensamento dos bons se dirige aos maus, será manifesta naquele dia quando nossa Cabeça lhes dirá: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt 7,23). | |
§ 27 | 21 Agora, porém, diz o corpo de Cristo, que é a Igreja: Por que me caluniam os soberbos, como se os pecados alheios me maculassem, e por este motivo se separam de mim e recebem “em vão as suas cidades? Porventura, Senhor, não odeio os que te odeiam”? Por que os piores exigem de mim também a separação corporal dos maus, de tal sorte que antes do tempo da messe, simultaneamente com o joio se arranque o trigo (cf Mt 13,30); que antes do tempo da ventilação perca a paciência de tolerar a palha (Mt 3,12); antes que todas as espécies de peixes no fim do mundo chegarem à praia para serem separados, rompa as redes da paz e da unidade? (Mt 13,47). Por acaso os sacramentos que recebo são dos maus? Por acaso comunico-me, por consentimento, com suas vidas e com suas ações? “Porventura, Senhor, não odeio os que te odeiam e não me consumia por causa de teus inimigos?” Quando o zelo de tua casa me devorava, não via os insensatos e me consumia? (Sl 68,10). Não sentia tédio por causa dos que abandonam tua lei? (Sl 118,53). Pois, quais são os teus inimigos, a não ser os que demonstram em sua vida que odeiam a tua lei? Uma vez que odeio a esses tais, porque me caluniam os que recebem “em vão as suas cidades”, como me imputam os pecados daqueles que eu odiava e acerca dos quais sentia tédio por causa do zelo pela casa de Deus? Mas e então o preceito: “Amai os vossos inimigos”? (Mt 5,44). Teria dito: “vossos, não de Deus? “Fazei bem aos que vos odeiam”; não disse: os que odeiam a Deus. Por isso continua o salmista: “Porventura, Senhor, não odeio os que te odeiam?” Não disse: os que me odeiam. “E não me consumia por causa de teus inimigos?” Disse: teus, não meus. Mas os que nos odeiam e são nossos inimigos porque servimos a Deus, que fazem senão odiar a Deus e se tornarem seus inimigos? Então não devemos amar tais inimigos nossos? Não sofrem perseguição por causa de Deus aqueles aos quais foi dito: “Orai pelos que vos perseguem”? (Mt 5,44). Conseqüentemente, notai o que segue. | |
§ 28 | 22 “Eu os odeio com ódio perfeito”. Que significa: “ódio perfeito? Odeio suas iniqüidades, amo tua condição. Este ódio é perfeito, a saber, não odiar os homens nem por causa dos vícios; também não amar os vícios por causa dos pecadores. Pois, vê o que acrescenta o salmo: “Fizeram-se meus inimigos”. Mostra que já não são apenas inimigos de Deus, mas seus próprios inimigos. Com eles cumprirão o que disse o salmista: “Porventura não odeio os que te odeiam”, e o que o Senhor preceituou: “Amai os vossos inimigos?” Como o realizará, a não ser com aquele ódio perfeito, odiando pelo fato de serem iníquos e amando-os por serem homens? Pois também no tempo do Antigo Testamento, em que o povo carnal era contido por meio de suplícios visíveis, um homem que já pertencia ao Novo Testamento por seu entendimento, o servo de Deus Moisés, como odiava os que pecavam, se orava por eles? E como não odiava, se os matava, senão porque os odiava com ódio perfeito? Pois, por meio daquela perfeição odiava a iniqüidade que punia, a fim de amar a humanidade pela qual orava. | |
§ 29 | 23 Agora, portanto, o corpo de Cristo que no fim do mundo há de ser separado até corporalmente dos ímpios e dos iníquos, por enquanto geme no meio deles; e quando aqueles pecadores que foram mortos os caluniam, apesar de bons, como se fosse pela comunhão com os maus, e se separam dos bons e inocentes sob o pretexto da existência dos maus, que recebam em vão as suas cidades, de modo que muitos maus ainda restem, sem seguirem sua separação, mas devem ser tolerados pelos bons até o fim, permanecendo misturados entre eles. Que faz, então, neste meio, o corpo de Cristo, dando fruto pela paciência, sejam cem, sessenta, ou trinta por um? (cf Mt 13,23; Lc 8,15). Que faz a amada de Cristo no meio das donzelas, como lírio no meio dos espinhos? (cf Ct 2,2). Quais as suas palavras? Qual a consciência? Qual a beleza da filha do rei internamente? (cf Sl 44,14). Ouve o que ela diz: “Experimenta-me, ó Deus, e examina meu coração”. Tu, meu Deus, experimentas; tu sabes. Não um homem, não um herege que não sabe experimentar, nem pode conhecer meu coração, onde tu experimentas e sabes que não consinto nas ações dos maus, enquanto eles julgam que os pecados alheios podem contaminar-me. Enquanto eu, em minha longínqua peregrinação faço o que digo gemendo em outro salmo, isto é, que sou pacífico com os que odeiam a paz (cf Sl 119,7), até que chegue àquela visão de paz, significada pelo nome de Jerusalém, mãe de todos nós, cidade eterna nos céus, eles provocando e caluniando se separaram; recebam, não certamente na eternidade, mas “em vão as suas cidades. Experimenta-me, ó Deus, e examina meu coração; perscruta-me e reconhece minhas sendas”. Para quê? Atenção ao que se segue. | |
§ 30 | 24 “Vê se trilho caminho íniquo e conduze-me pelo caminho da eternidade. Perscruta minhas sendas”, isto é, meus planos e pensamentos e “vê se trilho caminho íniquo, em obras”, ou por consentimento; “e conduze-me pelo caminho da eternidade”. Seria outra coisa do que: conduze-me em Cristo? Quem é, com efeito, a vida eterna, senão aquele que é a vida eterna? Pois é eterno aquele que disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Se, pois, encontrares em meu caminho algo que desagrade a teus olhos, porque meu caminho é mortal, “conduze-me pelo caminho da eternidade”, onde não existe iniqüidade alguma; porque “se alguém pecar, temos como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 2,1). Ele é a via eterna sem pecado; ele é a vida eterna sem suplício. | |
§ 31 | Grandes mistérios, irmãos. Como fala conosco o Espírito de Deus? Como nesta noite ele nos traz delícias? Que é isto, nós vos perguntamos, irmãos? Como as coisas são mais suaves quanto mais obscuras? De maneira admirável, prepara-nos o Senhor uma poção que nos leva a amá-lo. Engrandece suas palavras, de sorte que quando dizíamos o que já sabíeis, todavia como daquelas passagens irrompia o que parecia obscuro, surgiam como que conhecimentos novos. Não sabíeis, irmãos, que na Igreja de Deus devia-se tolerar os maus e não criar cismas? Não sabíeis que naquela rede onde se apanham peixes bons e maus, devem permanecer eles até se chegar à praia, e que as redes não devem ser rompidas; que na praia serão separados os bons e colocados nos recipientes e os maus serão jogados fora? (cf Mt 13,47). Já sabíeis estas coisas; mas não entendíeis os versículos deste salmo. Foi explicado o que não entendíeis e renovado o que já sabíeis. | |