ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 136 | ||
§ 136:1 | Ɗ Dai graças ao Senhor, porque ele é bom; porque a sua benignidade dura para sempre. | |
§ 136:2 | Ɗ Dai graças ao Deus dos deuses, porque a sua benignidade dura para sempre | |
§ 136:3 | Ɗ Dai graças ao Senhor dos senhores, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:4 | ɑ ao único que faz grandes maravilhas, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:5 | àquele que com entendimento fez os céus, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:6 | àquele que estendeu a terra sobre as águas, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:7 | àquele que fez os grandes luminares, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:8 | ⱺ o sol para governar de dia, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:9 | ɑ a lua e as estrelas para presidirem a noite, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:10 | àquele que feriu o Egito nos seus primogênitos, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:11 | ⱻ E que tirou a Israel do meio deles, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:12 | ɔ com mão forte, e com braço estendido, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:13 | àquele que dividiu o Mar Vermelho em duas partes, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:14 | ⱻ E fez passar Israel pelo meio dele, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:15 | mas derrubou a Faraó com o seu exército no Mar Vermelho, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:16 | àquele que guiou o seu povo pelo deserto, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:17 | àquele que feriu os grandes reis, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:18 | ⱻ E deu a morte a reis famosos, porque a sua benignidade dura para sempre. | |
§ 136:19 | ɑ a Siom, rei dos amorreus, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:20 | ⱻ E a Ogue, rei de Basã, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:21 | ⱻ E deu a terra deles em herança, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:22 | ʂ sim, em herança a Israel, seu servo, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:23 | ɋ que se lembrou de nós em nossa humilhação, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:24 | ⱻ E nos libertou dos nossos inimigos, porque a sua benignidade dura para sempre; | |
§ 136:25 | ɋ que dá alimento a toda a carne, porque a sua benignidade dura para sempre. | |
§ 136:26 | Ɗ Dai graças ao Deus dos céus, porque a sua benignidade dura para sempre. | |
O SALMO 136 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1 Julgo que não estais esquecidos de que vos recomendamos, ou antes vos relembramos que todo aquele que foi instruído na santa Igreja deve saber de onde somos cidadãos, onde peregrinamos e que o pecado é a causa de nossa peregrinação; quanto a nossa volta depende da remissão dos pecados e da justificação proveniente da graça de Deus. Ouvistes dizer e estais cientes de que existem duas cidades, por enquanto materialmente interpe-netradas, mas separadas pelo coração e que percorrem uma quantidade de séculos até o fim do mundo. Uma delas tem por fim a paz eterna e se chama Jerusalém. A outra põe sua alegria na paz temporal e se chama Babilônia. Se não me engano, guardais na memória o sentido desses nomes: Jerusalém se traduz por visão de paz; e Babilônia, por confusão. Jerusalém era mantida cativa em Babilônia, mas não em sua totalidade, pois os anjos são também seus cidadãos. Mas no que toca aos homens, predestinados à glória de Deus, futuramente pela adoção co-herdeiros de Cristo, tendo sido redimidos deste cativeiro por seu sangue, constituem uma partícula desta cidade de Jerusalém, cativa em Babilônia devido ao pecado, mas que começa a sair primeiro pelo coração através da confissão de sua iniqüidade e da caridade da justiça, e em seguida, no fim do mundo há de ser separada também naturalmente. Nós o relembramos naquele salmo, que comentamos em primeiro lugar aqui, com V. Dileção; ele assim principia: “A ti, ó Deus, convém um hino em Sião; diante de ti cumprir-se-ão os votos em Jerusalém” (Sl 64,2). Hoje, porém, cantamos: “Às margens dos rios de Babilônia nos assentamos a chorar, ao nos lembrarmos de Sião”. Vede que no outro salmo foi dito: “A ti, ó Deus, convém um hino em Sião”, e neste: “Às margens dos rios de Babilônia nos assentamos, ao nos lembrarmos de Sião”, aquela Sião, onde convém cantar um hino a Deus. | |
§ 2 | Quais são, então, os rios de Babilônia e que significa nos assentarmos a chorar, à lembrança de Sião? No entanto, se somos cidadãos de Sião, não somente cantamos estas palavras, mas as realizamos. Se somos cidadãos de Jerusalém, isto é, de Sião, e nesta vida, na confusão deste mundo, nesta Babilônia onde não moramos como cidadãos, mas somos detidos como cativos, importa não apenas que cantemos estas palavras, mas o façamos com piedoso afeto e religioso desejo da cidade eterna. Possui igualmente esta cidade de Babilônia seus adeptos que buscam a paz temporal sem mais nada esperar, e fixam e limitam nela toda a sua alegria. Vemos que eles trabalham intensamente em prol da república terrena. Mas, também os que nela vivem com fidelidade, se não ambicionam viver com orgulho, com soberba perecível e odiosa jactância, e, ao invés, manifestam uma fé verdadeira, quanto possível, enquanto possível, e a quem a podem mostrar, no tocante às coisas terrenas e na medida em que entendem a beleza da sua cidade, Deus não os deixa perecer em Babilônia, pois os predestinou a serem cidadãos de Jerusalém. Deus vê o cativeiro deles e mostra-lhes outra cidade, pela qual devem verdadeiramente suspirar, em prol da qual devem-se empenhar totalmente, devendo exortar a alcançá-la todos os seus concidadãos, peregrinos como eles, o quanto lhes for possível. Por isso diz nosso Senhor Jesus Cristo: “Quem é fiel nas coisas mínimas, é fiel também no muito”. E ainda: “Se não fostes fiéis em relação ao bem alheio, quem vos dará o vosso”? (Lc 16,10.12). | |
§ 3 | No entanto, caríssimos, anotai o que são rios de Babi-lônia. Rios de Babilônia são todos os bens amados nesta terra que são passageiros. Alguém, por exemplo, gosta de se dar à agricultura, enriquecer por meio dela, ocupar neste serviço o espírito, ter prazer nisto; observe o final, e veja que não amou os alicerces de Jerusalém, e sim um rio de Babilônia. Outro diz: Servir na milícia é coisa importante; todos os agricultores têm medo dos soldados, respeitam-nos, tremem diante deles; se me fizer agricultor terei medo do soldado; se me tornar soldado, incutirei medo no agricultor. Louco, tu te precipitaste em outro rio de Babilônia, muito mais agitado e veloz. Queres ser temido por um subordinado; teme o superior. De repente, o inferior pode se tornar superior a ti, ele que te teme; mas aquele a quem deves temer jamais se tornará menor. Outro declara: Ser advogado é muito importante. A eloqüência é poderosíssima. Dependem de sua fala de patro-no eloqüente os clientes, que de sua boca esperam prejuízos ou lucros, morte ou vida, perdição ou salvação. Não sabes onde te metes. É outro rio de Babilônia, que faz muito barulho e com estrépito bate nos rochedos. Observa que ele corre, nota que é fluído; e se notas que decorre e flui, acautela-te porque arrasta. Outro afirma: Navegar e negociar é grande coisa; conhecer muitas províncias, obter lucros, não estar sujeito numa cidade a um potentado, peregrinar sempre, nutrir o espírito com a diversidade do comércio e dos povos e voltar para casa rico com o aumento de seus lucros. Também isto é um rio de Babilônia. Quando ficarão estáveis os teus lucros? Ao presumires deles, quando estarás seguro acerca do que adquiriste? Quanto mais rico fores, mais tímido te tornarás. Sais inteiramente despojado de um só naufrágio, e com razão hás de chorar dentro de um rio de Babilônia, porque não quiseste te assentar a chorar às margens dos rios de Babilônia. | |
§ 4 | Por este motivo, outros cidadãos da Jerusalém santa, compreendendo qual o seu cativeiro, consideram os anelos humanos e as diversas cobiças dos homens que os arrastam de cá para lá, carregam-nos, levando-os até o mar; verificam isto e não entram nos rios de Babilônia, mas assentam-se às suas margens e choram junto dos rios de Babilônia, aqueles que são arrastados, ou a si mesmos que mereceram estar em Babilônia; assentados, contudo, isto é, humilhados. Por conseguinte, “Às margens dos rios de Babilônia nos assentamos a chorar, ao nos lebrarmos de Sião”. Ó santa Sião, onde tudo está firme e nada flui! quem nos precipitou nestes rios? Por que abandonamos teu Fundador e tua sociedade? Eis que no meio destas águas que correm e fluem, mal um ou outro, arrastado pelo rio, poderá escapar, agarrado a uma tábua. Humilhados, portanto, em nosso cativeiro, assentemo-nos às margens dos rios de Babilônia, sem ousarmos lançar-nos nas águas daqueles rios; nem ousemos nos males e tristezas de nosso cativeiro levantarmos com soberba, mas assentemos e choremos. Assentemos às margens (super) dos rios de Babilônia, não abaixo (infra) dos rios de Babilônia: nossa humildade seja tal que não nos afogue. Assenta-te às margens do rio, e não dentro do rio ou abaixo dele; assenta-te; porém, humildemente e fala, mas não como se estivesses em Jerusalém. Pois, lá estarás de pé. Outro salmo, referindo-se à própria esperança, canta essas palavras: “Detiveram-se os nossos pés em teus átrios, ó Jerusalém” (Sl 121,2). Lá te erguerás, se aqui te humilhares arrependendo-te e confessando. Por isso, nos átrios de Jerusalém “detiveram-se os nossos pés, enquanto às margens dos rios de Babilônia nos assentamos a chorar, ao lembrarmos de Sião”. Convém que chores ali, recordando-te de Sião. | |
§ 5 | Com efeito, existem muitos que choram lágrimas de Babilônia, porque também se entregam às alegrias de Babilônia. Chorar pelos prejuízos, alegrar-se com os lucros, são ações próprias de quem vive em Babilônia. Deves chorar, mas ao te recordares de Sião. Se choras ao te recordares de Sião, mesmo quando em Babilônia tudo corre bem para ti, convém que chores. Por esta razão acha-se em determinado salmo: “Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor”. Por que emprega a expressão: “Encontrei?” Não sei como, parece que procurou a tribulação, encontrou-a como se algo procurasse. E quando a achou, que lucro tirou dela? Invocou o nome do Senhor. Há enorme diferença entre encontrares a tribulação e seres encontrado por ela. Diz o salmista em outro versí-culo: “Dores de inferno me cercaram” (Sl 17,6). Que será: “Dores de inferno me cercaram?” E: “Encontrei a tribulação e a dor”? (Sl 114,4). Quando de repente a tristeza te invade, devido a perturbações em fatos mundanos que te deleitavam, quando de repente encontras tristeza por te acontecer o que não esperavas te pudesse entristecer, e no entanto te entristeces, cercam-te dores de inferno. Pois, pensavas que estavas no alto, entretanto, estavas bem em baixo, e ao te cercar a dor de inferno, descobres que estavas bem embaixo, apesar de te julgares por cima de tudo isso. A dor te atingiu gravemente, a tristeza por algum mal acerca do qual presumias que uma tristeza não te afetaria; cercou-te dor de inferno. Quando, porém, tudo corre bem para ti, sorrie-te a prosperidade neste mundo, nenhum dos teus morreu, em tua vinha talvez nada secou ou sofreu pelo granizo, ou mostrou-se estéril, não fermentou tua cuba, teu rebanho não sofreu aborto, não perdeste um posto honroso neste mundo, teus amigos vivem e conservam-te amizade, não te faltam clientes, os filhos te respeitam, os servos te temem, tua esposa é cordata, diz-se que a casa é feliz; procura encontrar ali a tribulação, se é possível, a fim de que, após encontrá-la, invoques o nome do Senhor. Parece que a palavra divina ensina algo de errado quando ordena chorar na alegria, e alegrar-se na tristeza. Escuta como se alegra alguém que está na tristeza: “Nós nos gloriamos também nas tribulações” (Rm 5,3). Vê se encontrou a tribulação quem chora na alegria. Cada qual examine sua própria felicidade, que fez sua alma exultar, encher-se de certo modo de gáudio, exaltar-se, dizendo: Sou feliz. Examine se aquela felicidade não é transitória, se pode estar certo de que há de permanecer eternamente. Se não está certo e vê que é fluido o objeto de sua alegria, saiba que é um rio de Babilônia. Assente-se às suas margens e chore. Ora, hás de assentar-te a chorar, se lembrar de Sião. Ó paz, que veremos junto de Deus! Ó santa igualdade com os anjos! Ó bela visão e lindo espectáculo! Eis que em Babilônia são belas as coisas que nos prendem; não prendam, não iludam. Uma coisa é o alívio dos cativos, e outra a alegria dos libertos. “Às margens dos rios de Babilônia assentamos a chorar, ao nos lembrarmos de Sião”. | |
§ 6 | “Nos salgueiros que havia no meio dela penduramos nossos instrumentos musicais”. Os cidadãos de Jerusalém têm seus instrumentos: as Escrituras divinas, os preceitos de Deus, as promessas de Deus, a meditação do século futuro; mas enquanto vivem no meio de Babilônia, suspendem seus instrumentos nos salgueiros. Salgueiros são árvores infrutíferas. Conforme aparecem aqui não podem representar coisa boa; talvez em outro lugar possam. Agora, então, entendei que se trata de árvores estéreis, que nascem às margens dos rios de Babilônia. São irrigadas pelos rios de Babilônia e não produzem fruto algum. Como existem homens cúpidos, avaros, estéreis em boas obras, assim também os cidadãos de Babilônia, árvores desta região, alimentam-se de prazeres caducos, irrigados pelos rios de Babilônia. Quem procurar neles algum fruto, não encontrará de forma alguma. Quando temos de suportar alguns destes, convivemos com habitantes de Babilônia, de seu meio. Há grande diferença entre o meio de Babilônia e o exterior. Aqueles que não estão no meio dela não estão muito sufocados com a concupiscência do mundo e seus prazeres. Para falar mais clara e resumidamente, aqueles que são muito ruins estão no meio de Babilônia e são árvores estéreis como os salgueiros de Babilônia. Quando os vemos, e descobrimos que são tão estéreis, de tal modo que pareça difícil encontrar neles algo que possibilite levá-los à fé verdadeira, ou às boas obras, ou à esperança do século futuro, ou ao anelo de libertarem-se do cativeiro da mortalidade, temos palavras da Escritura para lhes repetir; mas como não encontramos neles um ponto de apoio para começar, desviamos deles o rosto e dizemos: Estes ainda não degustam, não captam; seja o que for que lhes dissermos, considerarão do lado contrário e adverso. Por isso, desistindo no momento de falar-lhes das Escrituras, penduramos nossos instrumentos nos salgueiros; pois não os julgamos dignos de carregarem nossos instrumentos. Não os forçamos a ter nas mãos os nossos instrumentos, mas os penduramos, adiando a entrega. Pois, são salgueiros, árvores infrutíferas de Babilônia, alimentados de prazeres temporários, quais rios de Babilônia. | |
§ 7 | 3 E examinai se não é assim que prossegue o salmo: “Nos salgueiros que havia no meio dela penduramos nossos instrumentos musicais. E ali os que nos levaram cativos pediram-nos canções, e os que para lá nos arrastaram, um hino” (subentenda-se: “pediram-nos”). Pediram-nos canções e um hino os que nos levaram cativos. Quais são, irmãos, os que nos levaram cativos? Quais os que percebemos outrora como nossos capturadores? A Jerusalém terrena, de fato, foi capturada pelos babilônios, per-sas, caldeus, e habitantes daquelas regiões; mas poste-riormente, não quando estes salmos eram cantados. Mas já dissemos a V. Caridade que todos os eventos que advie-ram segundo a letra àquela cidade eram figuras dos nossos; e é fácil demostrar que somos cativos. Com efeito, ainda não respiramos as auras de nossa liberdade; pois não fruímos da pureza da verdade, nem daquela sabedoria que sem mudar, tudo renova (cf Sb 7,27). Somos tentados pelos atrativos dos bens temporais, e lutamos cotidianamente com as sugestões dos prazeres ilícitos; mal respiramos na oração e compreendemos que somos cativos. Mas quem foi que nos levou cativos? Que homens? Que povo? Que rei? Se fomos remidos é porque éramos cativos. Quem nos redimiu? Cristo. Das mãos de quem? Do diabo. O diabo, portanto, e seus anjos nos levaram cativos; mas só podiam levar os que consentissem. Fomos conduzidos como cativos. Disse quais os nossos capturadores. São eles também os ladrões que feriram o viajante que descia de Jerusalém a Jericó, e que eles deixaram semi-morto (cf Lc 10,30). Este nosso guarda, isto é, nosso samaritano (pois samaritano quer dizer: guarda), ao qual os judeus replicaram: “Não dizíamos, com razão, que és samaritano e tens um demônio?” rejeitou uma das duas objeções e a outra aceitou. Respondeu: “Eu não tenho demônio” (Jo 8,48). Ele, porém, não disse: Não sou sama-ritano. Efetivamente, se aquele samaritano não nos guardar, perecemos. O samaritano, pois, ao passar viu o homem ferido, machucado, abandonado pelos ladrões, e como sabeis, o apanhou. Às vezes damos o nome de ladrões aos que nos inflingem as chagas dos pecados; se consentimos em nosso cativeiro, eles são nossos seqüestradores. | |
§ 8 | Quando é, então, que estes, o diabo e seus anjos, “nos levaram cativos e pediram-nos canções?” Como entender isso? Ao nos pedirem canções alguns homens nos quais o diabo trabalha, devemos entender que nos pede aquele que neles age. Diz o Apóstolo: “Vós estáveis mortos em vossos delitos e pecados. Neles vivíeis outrora, conforme a índole deste mundo, conforme o Príncipe do poder do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Com eles, nós também andávamos outrora” (Ef 2,1-3). O Apóstolo mostra que, resgatado de Babilônia, já começara a sair de lá. Todavia, o que diz ainda? Que temos inimigos a combater. E tendo em vista que não nos encolerizemos contra homens que nos persigam, desvia nossa atenção do ódio a homens, e orienta nossa luta contra certos espíritos invisíveis que temos a combater. Declara, de fato: “O nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne”, isto é, não se trata, de combater homens que vedes, e dos quais julgais sofrer, porque vos perseguem; pois para estes recebemos ordem de rezar. “O nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, as Potestades, contra os dominadores deste mundo de trevas” (Ef 6,12). Quem é que ele chama de mundo? Aqueles que amam o mundo. Denominou-os também de trevas, quer dizer, os iníquos, os celerados, os infiéis, os pecadores. Com estes, transformados em fiéis, ele se congratula deste modo: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Portanto, estabelece que havemos de lutar com aqueles príncipes; foram eles que nos levaram cativos. | |
§ 9 | Como, porém, o diabo entrou no coração de Judas, para que traísse o Senhor (Jo 13,27) e não entraria, se ele não o permitisse, assim muitos malvados do meio de Babilônia, que através de desejos carnais e ilícitos dão entrada ao diabo e a seus anjos em seus corações, para que neles operem, por vezes nos interrogam com estas palavras: Apresentai-nos as razões. Os pagãos muitas vezes nos dizem: Apresentai-nos as razões da vinda de Cristo e de que serviu Cristo ao gênero humano? Desde que Cristo veio, tudo não piorou entre as coisas humanas, em comparação do que era antes, e não sucediam coisas melhores aos homens do que agora? Digam-nos os cristãos que bens nos trouxe o Cristo? Por que consideram os homens mais felizes as condições humanas, desde que Cristo veio? Pois, vedes, se os teatros e anfiteatros e os ricos permanecessem incólumes, se nada caísse em Babilônia, se houvesse fartura de prazeres para os homens que cantam e dançam com canções torpes, se a paixão dos desonestos e meretrizes tivessem tranqüilidade e segurança, se não receassem a fome para sua casa os que gritam para que os pantomimos ganhem vestes; se tudo isso decorresse sem mancha, sem perturbação, e houvesse a maior garantia para futilidades, os tempos seriam felizes, e Cristo teria trazido grande felicidade às coisas humanas. Mas, como as iniqüidades são atacadas, a fim de que tendo sido extirpada a cupidez se plante a caridade de Jerusalém; uma vez que se misturam amarguras à vida temporal a fim de se desejar a eterna; visto que os homens são educados por meio de castigos, para que recebendo o ensinamento paterno não sejam sujeitos a uma sentença judiciária, Cristo nada trouxe de bom, Cristo trouxe apenas labuta. E começas a explicar a este homem quantos bens o Cristo fez e ele não entende. Apresenta-lhes aqueles que praticam o que acabastes de ouvir do evangelho, que vendem seus bens e os distribuem aos pobres a fim de terem um tesouro no céu e sigam o Senhor (cf Mt 19,12). Dizes-lhes: Eis o que Cristo nos trouxe. Quantos assim agem, distribuem seus bens aos necessitados, e tornam-se pobres, não por necessidade, mas voluntariamente, seguindo a Deus e esperando o reino dos céus! Zombam deles como se fossem loucos. Replicam: E são estes os bens que Cristo trouxe, que o homem perca o que é seu, e dando aos pobres se faça pobre? Que farás então? Não entendes quais são os bens de Cristo. Pois, outro tomou posse de ti, o adversário de Cristo, a quem deste lugar em teu coração. Olhas para os tempos passados, e te parecem mais felizes os tempos precedentes. Eram como azeitonas pendentes da árvore, embaladas pelos ventos, gozando de certa aura de liberdade, segundo um desejo vago. Veio o tempo de se meterem as azeitonas no lagar. Não deviam ficar sempre na árvore. Chegou o fim do ano. Não é sem razão que alguns salmos se intitulam: “Por causa dos lagares” (cf Sl 8;80.83). Na árvore, a liberdade; no lagar a compressão. Podes notar que ao serem os bens humanos esmagados e oprimidos, cresce a avareza; mas observa também que aumenta a continência. Por que és tão cego que vês a borra a correr pelas ruas e não vês o óleo nas vasilhas? Mas, existe uma causa para isso. Os que vivem mal, são publicamente conhecidos; ao contrário, os que se convertem a Deus, e se purificam das manchas dos maus desejos, ficam ocultos, porque num mesmo lugar, ou antes do mesmo lagar, o resíduo corre abertamente, mas o óleo ocultamente destila. | |
§ 10 | Aclamastes, demonstrastes vossa alegria diante dessas palavras; isto porque já podeis assentar às margens dos rios de Babilônia e chorar. Aqueles, porém, que nos levaram cativos, quando entram nos corações dos homens, interrogam-nos por meio das bocas dos que eles possuem nesses termos: “Entoai-nos canções”; apresentai-nos as razões da vinda de Cristo, explicai como é a outra vida. Quero crer; expõe-me o motivo por que me mandas crer. Respondo-lhes: Ó homem, como não queres que te mande acreditar? Estás cheio de maus desejos; se descrevo os bens de Jerusalém, não captas; esvazia-te do que te enche para poderes te encher do que não tens. Por conseguinte, não é fácil explicar-lhe alguma coisa; é um salgueiro, árvore estéril; não toques teu instrumento, pendura-o. Mas, ele há de replicar: Dize-me, canta-me, expõe-me as razões. Não queres que eu aprenda? Retruco: não ouves de boa vontade, não bates de tal modo que mereças que eu te abra. Enche-te aquele que me levou cativo; é ele quem me interroga por meio de ti. Ele é astuto, procura falsamente; não busca aprender, mas quer descobrir o que censurar. Por isso, não falo, suspendo meu instrumento. | |
§ 11 | 4 Ora, o que ele dirá ainda? “Cantai-nos canções, can-tai-nos um hino, entoai-nos alguns dos cânticos de Sião”. Que responderemos? Babilônia te carrega, Babilônia te con-tém, Babilônia te nutre, Babilônia fala por ti; só apreendes o que brilha temporariamente, não sabes, meditar nas coisas eternas, não captas o que interrogas. “Como cantaremos o cântico do Senhor em terra estranha?” Na verdade, irmãos, assim é. Começai a pregar a verdade que conheceis, por limitada que seja, e vereis como tereis de suportar os zombeteiros, os fiscais da verdade, cheios de falsidade. Respondei-lhes, ao vos exigirem a expressão da verdade que não podem apreender, e dizei-lhes cheios de confiança em vossos cânticos sagrados: “Como cantaremos o cântico do Senhor, em terra estranha?” | |
§ 12 | 5 Mas cuida, povo de Deus, corpo de Cristo, generosa peregrinação (não és da terra, és de outra parte), como conviver com eles. Não aconteça que ao te dizerem eles: “Cantai-nos canções, cantai-nos um hino, entoai-nos alguns dos cânticos de Sião”, fingindo amá-los e desejando sua amizade, receando desagradar-lhes, comeces a te deleitar em Babilônia e te esqueça de Jerusalém. Para evitá-lo, verifica o que o salmista acrescenta, vê como continua. Este cantor sofreu (e nós somos este homem, se o quisermos), sofreu de todas as partes, dos que faziam tais interrogações, dos aduladores com lisonjas, dos censores mordazes, dos que elogiavam com falsidade, dos que exigiam respostas que não compreendem, dos que não querem expelir aquele que ocupou seu interior; e no meio desta turba, o salmista periclitante, elevou o espírito à lembrança de Sião e obrigou-se por uma espécie de juramento, nestes termos: “Se eu te esquecer, Jerusalém”, cercado embora das palavras dos que o levaram cativo, das pa-lavras dos mentirosos, das palavras dos que interrogavam com má intenção, que perguntavam sem ter o desejo de aprender. | |
§ 13 | Eis de onde era aquele rico que interrogou o Senhor: “Bom Mestre, que farei para ter a vida eterna?” Ao perguntar sobre a vida eterna, não estava pedindo um cântico de Sião? “Guarda os mandamentos”, disse-lhe o Senhor. E ele com vaidade, tendo ouvido isso, respondeu: “Tudo isso tenho guardado”, desde a minha juventude. O Senhor lhe replicou com um dos cânticos de Sião, mas sabia que ele não entenderia; contudo, deu-nos o exemplo para sabermos que muitos hão de parecer procurar um conselho sobre a vida eterna, e nos louvarão até que respondamos o que interrogam. Deu-nos um modelo de como havemos de dizer por vezes a tais homens: “Como cantaremos o cântico do Senhor em terra estranha?” Pois, disse o Senhor: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,16-26). Em primeiro lugar, se quiser aprender um cânticos dos cânticos de Sião, retire os impedimentos, ande livremente, sem peso algum que o onere: e então aprenda algo dos cânticos de Sião. Ele, porém, saiu pesaroso. Digamos atrás dele: “Como cantaremos o cântico do Senhor em terra estranha?” O moço, de fato, afastou-se; entretanto o Senhor deu uma es-perança aos ricos. Pois, os discípulos contristados lhe disseram: “Quem poderá então salvar-se?” Jesus lhe respondeu: “Ao homem isso é impossível, mas a Deus tudo é possível” (Mt 19,16-26). Ora, os ricos têm também uma modalidade própria, e receberam um cântico de Sião, a respeito do qual disse o Apóstolo: “Aos ricos deste mundo, exorta-os que não sejam orgulhosos, nem coloquem sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que provê tudo com abundância, para que nos alegremos. Acrescentando o que devem fazer, toca seu instrumento, não o pendura: “Que eles se enriqueçam com boas obras, sejam pródigos, capazes de partilhar. Estão assim acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro, a fim de obterem a verdadeira vida” (1 Tm 6,17-19). O primeiro dos cânticos de Sião entregue aos ricos é o seguinte: “Não sejam orgulhosos”. As riquezas ensoberbecem; e os que se ensober-becem, são arrastados por aqueles rios. Que, então, lhes é preceituado? Antes de tudo “que não sejam orgulhosos”. Precavenham-se do que costumam trazer as riquezas; acautelem-se os ricos da soberba. Este o maior mal que as riquezas acarretam aos homens incautos. O ouro, que Deus criou, não é mau; mau é o homem avaro, que abandona o Criador e se volta para a criatura. Por isso, o salmo o previne a não ser soberbo, e assentar-se às margens dos rios de Babilônia. Foi-lhe ordenado: “Não seja orgulhoso”; portanto, sente-se. Se esperar na instabilidade das riquezas, é arrastado pelo rio de Babilônia. Nem “ponham a esperança na instabilidade da riqueza”; portanto, sente às margens dos rios de Babilônia. Se, na verdade, humilhar-se, não se orgulhar, não esperar na instabilidade da riqueza, senta-se às margens dos rios, suspira pela Jerusalém eterna, lembrado de Sião. E pede lhe seja dado alcançar Sião. Eis o cântico que foi dado aos ricos dentre os cânticos de Sião. Operem, toquem seu instrumento, não fiquem inertes, ao encontrarem alguém que lhes diga: Que estás fazendo? Perdes teus bens, dando tão largamente; acumula para teus filhos. Ao verificarem que não entendem, e que são salgueiros, não lhes digam facilmente por que assim agem, e o que fazem; pendurem os seus instrumentos nos salgueiros de Babilônia. Apesar dos salgueiros, porém, cantem, não parem, trabalhem. Pois, não perdem aquilo que dão. Se dão a um escravo para guardar, estaria seguro; se entregam a Cristo, se perde? | |
§ 14 | Ouvistes o cântico dos ricos, dentre os cânticos de Sião; escutai igualmente o cântico dos pobres. É Paulo quem fala: “Nós nada trouxemos para o mundo, nem coisa alguma dele podemos levar. Se, pois temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso. Ora, os que querem se enriquecer caem em tentação, e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que mergulham os homens na ruína e na perdição”. São rios de Babilônia. “Porque a raiz de todos os males é o amor do dinheiro, por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos se afligem com múltiplos tormentos”. Então, estes cânticos são contrários entre si? Não são contrários. Vede o que ele diz aos ricos: “Não sejam orgulhosos, nem ponham sua esperança na instabilidade da riqueza” (1 Tm 6,7-18), mas que façam o bem, sejam capazes de partilhar, acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro. Que foi dito aos pobres? “Os que querem se enriquecer, caem em tentação”. Paulo não disse: Os que são ricos, mas: “Os que querem se enriquecer”. Se já fossem ricos, ouviriam outro cântico: o rico ouve que deve dar e o pobre ouve que não ambicione. | |
§ 15 | Mas enquanto conviverdes com os que não captam o cântico de Sião, conforme disse, pendurai vossos instrumentos musicais nos salgueiros que há ali; adiai o que ha-veríeis de dizer. Se as árvores começarem a dar frutos, se as árvores se transformarem e prometerem dar bons frutos, então já nos será lícito cantar para que ouçam. Mas, enquanto viveis no meio dos que ocasionam tumultos, que interrogam com más intenções, que resistem à verdade, contende-vos para não terdes vontade de lhes agradar, a fim de não vos esquecerdes de Jerusalém. Diga vossa alma, uma só, pois se tornou somente uma de muitas que era, por causa da paz de Cristo, diga a Jerusalém ainda cava, que vive na terra: “Se eu te esquecer, Jerusalém, esqueça-me a minha direita”. Obriga-se com toda a veemência, meus irmãos: Esqueça-me a minha direita”. Ligou-se de maneira atroz. Nossa direita é a vida eterna, nossa esquerda é a vida temporal. Tudo o que fazes por causa da vida eterna é a direita que opera. Se ao amor à vida eterna mesclares em tuas obras a concupiscência da vida temporal, ou do louvor humano, ou de qualquer vantagem mundana, tua esquerda conheceu o que fez a tua direita. Sabeis que há no evangelho este preceito: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mt 6,3). “Se eu te esquecer, Jerusalém, esqueça-me a minha direita”. E, na verdade, assim aconteceu: ele prenunciou, não imprecou. Àqueles que se esquecem de Jerusalém, acontece o que o salmista disse. Sua direita os esquece, pois a vida eterna permanece em si, mas eles ficam no meio dos deleites temporais e transformam em direita para si o que propriamente é esquerda. | |
§ 16 | Atenção, meus irmãos. A propósito de direita, para a salvação de todos, insinuarei, na medida em que o Senhor o permitir, o seguinte. Talvez vos lembreis de que já tratei certa vez dos que consideram direita aquilo que é, de fato, esquerda, isto é, que têm maior consideração pelos bens temporais, e neles põem sua felicidade, ignorando qual a verdadeira felicidade, a genuína direita1. A Escritura os denomina filhos estranhos, não sendo cidadãos de Jerusalém e sim de Babilônia; a eles se refere certa passagem de um salmo: “Livra-me, Senhor, das mãos dos filhos dos estranhos, cuja boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua”. E prossegue: “Seus filhos são sarmentos novos: suas filhas estão cobertas de ornatos à semelhança de um templo. Seus celeiros estão atulhados, transbordantes de toda espécie de frutos. Suas ovelhas são fecundas e multiplicam-se em seus partos. Seus bois são cevados. Não há brechas nas sebes, nem clamor em suas praças” (Sl 143,7-15). Acaso seria pecar, possuir tal felicidade? Não. Mas seria pecado fazer disso a direita, pois de fato é esquerda. Por isso, em seguida o que diz o salmo? “Eles denominam feliz quem goza destes bens”. Eis como falaram o que é vão, porque disseram que é feliz o povo que goza destes bens. Tu, porém, és cidadão de Jerusalém. Não te esqueces de Jerusalém, para que não te esqueça a tua destra. Visto que aqueles que falaram o que é vão denominaram feliz quem goza destes bens, canta-me tu um cântico de Sião. “Feliz é o povo”, diz o salmo, “que tem o Senhor por seu Deus”. Interrogai vossos corações, irmãos, se desejais os bens de Deus, se suspirais por aquela cidade de Jerusalém, se anelais pela vida eterna. Toda a felicidade terrena considerai-a como esquerda; a outra é a direita que sempre tereis; e se tiverdes a esquerda, não presumais por causa dela. Não corriges aquele que quiser comer com a mão esquerda? Se consideras uma ofensa que um conviva coma com a esquerda; como não se injurias à mesa de Deus, se transformardes a direita em esquerda e a esquerda em direita? E então? “Se eu te esquecer, Jerusalém, esqueça-me a minha direita”. | |
§ 17 | 6 “A minha língua fique pegada ao paladar, se me não lembrar de ti”. Isto é, fique mudo se não me lembrar de ti. Para que falar, para que cantar, se não se canta um cântico de Sião? Nossa língua é o cântico de Jerusalém. O cântico de amor deste mundo é uma língua estrangeira, uma língua bárbara, que aprendemos no cativeiro. Em conseqüência serás mudo diante de Deus, se te esqueceres de Jerusalém. E é pouco lembrar-se apenas; pois também os inimigos se lembraram, querendo destruí-la. Que cidade é esta, dizem? Quem são os cristãos? E como são os cristãos? Oh! se não existissem os cristãos! A multidão dos cativos já venceu os dominadores que os mantinham cativos, e no entanto eles murmuram, e se encolerizam, e querem matar a cidade santa peregrina que está no meio deles, como o faraó quis matar o povo israelita, quando assassinava os meninos e deixava vivas as meninas; afogava as virtudes, nutria as concupiscências. Por conseguinte, não basta lembrar-se; vê como se há de lembrar. Recordamo-nos de certas coisas com ódio, de outras com amor. Tendo dito o salmista: “Se eu te esquecer, Jerusalém, esqueça-me a minha direita. A minha língua fique pegada ao paladar, se me não lembrar de ti”, imediatamente prossegue: “Se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias”. A alegria suprema se encontra lá onde fruiremos de Deus, onde estaremos seguros das adesões fraternas e da sociedade de nossos conci-dadãos. Ali nenhum tentador nos atingirá, nem mesmo poderá insinuar algum atrativo mau, nada debitará ali senão o bem. Eliminar-se-á toda necessidade, e brotará felicidade extrema. “Se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias”. | |
§ 18 | 7 E o Senhor se voltará contra os inimigos desta cidade: “Lembra-te, Senhor, do dia de Jerusalém, contra os filhos de Edom”. Edom é sinônimo de Esaú. Ouvistes isso quando se lia a epístola do Apóstolo: “Amei Jacó e aborreci Esaú”. Eram dois filhos no mesmo seio, gêmeos; no seio de Rebeca, filhos de Isaac netos de Abraão. Nasceram ambos: um para receber a herança, outro para ser deserdado. Esaú se tornou inimigo de seu irmão, porque o filho mais novo precedeu-o, ao receber a bênção; e realizou-se a palavra: “O maior servirá ao menor” (Rm 9,10,13; Gn 25,23). Agora entendemos quem é o maior, quem o menor, qual o maior que servirá ao menor. Maior parecia ser o povo judaico, menor no tempo o povo cristão. E vede como o maior serve o menor. Eles carregam nossos códices; e nós vivemos de seus códices. Mas para entenderdes, irmãos, como se aplica a palavra geralmente a todos, quanto a maior e menor, maior se chama o homem carnal, e menor se denomina o homem espiritual; porque primeiro vem o carnal e depois o espiritual. Encontras como o Apóstolo o diz abertamente: “O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu, é celeste. Qual foi o homem terrestre, tais são também os terrestres. Qual foi o homem celeste, tais serão os celestes. E, assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste” (1 Cor 15,46-49). Dissera mais acima: “Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é animal; o que é espiritual, vem depois”. Chama de animal aquele que ele demonstrou ser carnal. O homem, ao nascer, começa por ser animal, começa por ser carnal. Mas se ele se converte do cativeiro de Babilônia, de volta a Jerusalém, ele se renova, e esta renovação se processa segundo o homem novo e interior; e torna-se o filho menor pelo tempo, maior pelo poder. Portanto, Esaú representa todos os homens carnais, e Jacó, os espirituais: os menores são eleitos, os maiores reprovados. Quer um desses ser escolhido também? Torne-se menor. Edom é nome derivado de certo alimento vermelho, lentilhas, isto é, uma comida rosada. A lentilha estava bem cozida, temperada; Esaú desejou-a, pediu a seu irmão Jacó, e cedeu-lhe o direito de primogenitura, vencido pelo desejo de comer daquela lentilha. Jacó cedeu o alimento aprazível, e tomou para si a honrosa dignidade. Assim de certo modo fizeram um pacto entre si, de sorte que Jacó ficasse sendo o maior, e Esaú o menor, e assim o maior servisse o menor. E foi denominado Edom. Conforme os que conhecem aquela língua, Edom significa sangue: mesmo na língua púnica Edom significa sangue (cf Gn 25,29-34; 27,36.37). Não vos admireis. Ao sangue se referem todos os homens carnais. “A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus” (1 Cor 15,50). A ele não pertence Edom; pertence Jacó, que se privou do alimento carnal, e assumiu a honra espiritual. Edom, porém, se tornou seu inimigo. Todos os carnais são inimigos dos espirituais; todos desses que ambicionam os bens presentes perseguem aqueles que se ocupam dos eternos. Contra eles, como se exprime o salmista, olhando para Jerusalém, e pedindo a Deus libertá-lo do cativeiro? “Lembra-te, Senhor, contra os filhos de Edom”. Livra-nos dos homens carnais, daqueles que imitam a Edom, que são irmãos mais velhos, mas inimigos. Nasceram antes, mas os que nasceram depois venceram-nos quanto à primogenitura, porque a concupiscência carnal os derrubou, enquanto o desprezo da concupiscência elevou a estes. Vivem, invejam, perseguem. | |
§ 19 | “Lembra-te, Senhor, do dia de Jerusalém, contra os filhos de Edom”. Dia de Jerusalém, em que labutou, em que foi aprisionada; ou aquele dia de felicidade para Jerusalém, no qual é libertada, em que chega ao fim, em que é associada à eternidade? “Lembra-te, Senhor”, não te esqueças, dos “filhos de Edom”. De quais? “Que diziam: Arrasai-a, arrasai-a até os alicerces”. Em conseqüência, lembra-te desse dia em que eles queriam destruir Jerusalém. Pois, quantas perseguições não sofreu a Igreja! Diziam os filhos de Edom, isto é, os homens carnais, súditos do diabo e de seus anjos, adoradores de pedras e madeira, seguidores das concupiscências carnais: Extingui os cristãos, abaixo os cristãos, não fique um sequer! Isso não foi dito? E apesar de o dizerem, os perseguidores foram reprovados e os mártires, coroados. “Que diziam: Arrasai-a, arrasai-a até os alicerces”. Os filhos de Edom dizem: “Arrasai-a, arrasai-a”, e Deus diz: Servi. Quais as palavras que prevalecem, senão as de Deus: “O maior servirá o menor? Arrasai-a, arrasai-a até os alicerces”. | |
§ 20 | 8 E o salmista se volta para esta: “Desgraçada filha de Babilônia”. Infeliz em tua própria alegria, em tua presunção, e por tuas inimizades: “Desgraçada filha de Babilônia”. A mesma cidade se chama Babilônia e filha de Babilônia, como se diz Jerusalém e filha de Jerusalém, Sião e filha de Sião; segundo este costume se fala em Igreja e filha da Igreja. Tendo em vista a sucessão denomina-se filha, e por causa da precedência tem o nome de mãe. Primeiro existiu uma Babilônia; seu povo permaneceu nela? Pela sucessão, Babilônia tornou-se filha de Babilônia; “Desgraçada de ti, filha de Babilônia! Feliz quem te retribuir o mal que nos fizeste”. Desgraçada de ti, feliz dele! | |
§ 21 | 9 Que fizeste, que te será retribuído? Escuta: “Feliz quem te retribuir o mal que nos fizeste”. De que retribuição se trata? Com a que encerra o salmo: “Ditoso o que tomar e esmagar os teus filhinhos contra uma pedra”. Esta é a retribuição. Que nos fez esta Babilônia? Já o cantamos em outro salmo: “As palavras dos iníquos prevaleceram sobre nós” (Sl 64,4). Pois, ao nascermos, pequeninos ainda veio ao nosso encontro a confusão deste mundo. Ainda pequeninos sufocou-nos com as vãs opiniões dos diversos erros. Nasce o menino, futuro cidadão de Jerusalém, já cidadão na predestinação de Deus, mas nesse interim cativo e aprende a amar o que lhe insinuam os pais. Instruem-no e ensinam-lhe a avareza, as rapinas, as mentiras cotidianas, os cultos de vários ídolos e demônios, os remédios ilícitos dos encantamentos e amuletos. Que há de fazer o menino, alma tenra, observando os que fazem os maiores, senão seguir aquilo que os vir praticando? Portanto, perseguiu-nos Babilônia quando ainda éramos pequenos; mas ao crescermos, Deus nos deu o conhecimento de si, a fim de não seguirmos os erros de nossos pais. Eu o relembrei então2, conforme predito pelo profeta: “Para ti acorrem as nações das extremidades da terra. Elas dirão: Nossos pais não adoraram senão mentira, vazio que não serve para nada” (Jr 16,19). Falam os jovens, mortos na infância por seguirem coisas vãs. Rejeitando, porém, essas coisas vãs, e revivendo progridam em direção a Deus, e retribuam a Babilônia. Que retribuição lhe darão? Aquela que ela nos deu. Seus filhos pequenos, por sua vez, sejam sufocados; ou antes seus pequeninos sejam esmagados, e morram. Quais são os filhinhos de Babilônia? As concupiscências, logo ao despertarem. Existem os que combatem velha cupidez. Ao nascer a cupidez, antes que se fortaleça contra ti, pelo mau hábito, enquanto é pequenina, não receba de modo algum o reforço de um mau costume. Enquanto é pequena, esmaga-a. Mas se receias que esmagada não morra, esmaga-a contra a “pedra”. Essa rocha era Cristo (1 Cor 10,4). | |
§ 22 | Irmãos, que os instrumentos não deixem de soar; cantai uns para os outros os cânticos de Sião. Quanto maior a boa vontade de ouvir, tanto mais de bom grado praticai o que ouvis. Se não quereis ser salgueiros de Babilônia, irrigados de seus rios, e infrutíferos. Mas suspirai pela Jerusalém eterna. Vossa vida acompanhe a esperança que vos precede. Lá estaremos com Cristo. Agora Cristo é nossa Cabeça; governa-nos lá do alto. Abraçá-lo-emos naquela cidade. Seremos iguais aos anjos de Deus. Não ousaríamos imaginá-lo, se não nô-lo houvesse prometido a própria Verdade. Anelai por isso, irmãos; pensai nisso dia e noite. Não presumais de coisa alguma que vos sorria, das felicidades mundanas. Não dialogueis livremente com vossas concupiscências. O inimigo é grande, seja morto contra a pedra; é pequeno, seja esmagado contra a pedra. Vença a pedra. Construí sobre a pedra se não quereis ser arrastados pelo rio, pelos ventos, pela chuva. Se quereis estar armados contra as tentações no mundo, cresça e se robusteça o desejo da Jerusalém eterna em vossos corações. O cativeiro passará, virá a felicidade, será condenado o maior dos inimigos e com nosso rei, livres da morte, triunfaremos. 1 Cf Com. s/salmo CXX,8. 2 Cf Com. s/salmo 64,6. | |