ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 132 | ||
§ 132:1 | Ł Lembra-te, Senhor, a bem de Davi, de todas as suas aflições; | |
§ 132:2 | ɔ como jurou ao Senhor, e fez voto ao Poderoso de Jacó, dizendo: | |
§ 132:3 | Ɲ Não entrarei na casa em que habito, nem subirei ao leito em que durmo; | |
§ 132:4 | ɲ não darei sono aos meus olhos, nem adormecimento às minhas pálpebras, | |
§ 132:5 | ɑ até que eu ache um lugar para o Senhor uma morada para o Poderoso de Jacó. | |
§ 132:6 | ⱻ Eis que ouvimos falar dela em Efrata, e a achamos no campo de Jaar. | |
§ 132:7 | ⱻ Entremos nos seus tabernáculos; prostremo-nos ante o escabelo de seus pés. | |
§ 132:8 | Ł Levanta-te, Senhor, entra no lugar do teu repouso, tu e a arca da tua força. | |
§ 132:9 | ⱴ Vistam-se os teus sacerdotes de justiça, e exultem de júbilo os teus santos. | |
§ 132:10 | Ꝓ Por amor de Davi, teu servo, não rejeites a face do teu ungido. | |
§ 132:11 | Ꝋ O Senhor jurou a Davi com verdade, e não se desviará dela: Do fruto das tuas entranhas porei sobre o teu trono. | |
§ 132:12 | ᶊ Se os teus filhos guardarem o meu pacto, e os meus testemunhos, que eu lhes hei de ensinar, também os seus filhos se assentarão perpetuamente no teu trono. | |
§ 132:13 | Ꝓ Porque o Senhor escolheu a Sião; desejou-a para sua habitação, dizendo: | |
§ 132:14 | ⱻ Este é o lugar do meu repouso para sempre; aqui habitarei, pois o tenho desejado. | |
§ 132:15 | Ɑ Abençoarei abundantemente o seu mantimento; fartarei de pão os seus necessitados. | |
§ 132:16 | ⱴ Vestirei de salvação os seus sacerdotes; e de júbilo os seus santos exultarão | |
§ 132:17 | Ɑ Ali farei brotar a força de Davi; preparei uma lâmpada para o meu ungido. | |
§ 132:18 | ⱴ Vestirei de confusão os seus inimigos; mas sobre ele resplandecerá a sua coroa. | |
O SALMO 132 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1 O salmo é curto, mas bem conhecido e freqüente-mente mencionado. “Eis como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum”. Palavra tão suave que mesmo os que não conhecem o saltério, cantam-na. Suave como a caridade que leva irmãos a conviverem unâni-mes. “Eis como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum”. É dispensável, irmãos, qualquer comentário ou explicação. Os versículos seguintes, contudo, apresentam algumas dificuldades, que são solucionadas por quem souber bater à porta. Mas, consideremos repetidas vezes o primeiro versículo a fim de descobrirmos através dele a trama do salmo. Vejamos se a enun-ciação: “Como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum” se refere a todos os cristãos em geral, ou se há alguns mais perfeitos que habitam unidos, não sendo esta bênção, comum a todos, mas reservada a alguns, que a transmitem aos demais. | |
§ 2 | Estas palavras do saltério, som agradável, suave melodia, quer sejam cantadas, quer ouvidas, deram origem aos mosteiros. Tal som despertou irmãos que desejaram viver em comum. Foi toque de trombeta. Ressoou por toda a terra e reuniu os que estavam dispersos. Clamor de Deus, clamor do Espírito Santo, clamor profético! Não foi escutado na Judéia e foi ouvido na terra inteira. Fizeram-se surdos aqueles para os quais o salmo era cantado, mas abriram-se os ouvidos de outros, a quem se referiam as palavras: “Vê-lo-ão aqueles a quem não foi anunciado, e conhecê-lo-ão aqueles que dele não ouviram falar” (Rm 15,21; Is 52,15). Mas se examinarmos cuidadosamente, caríssimos, esta bênção atingiu primeiro a um dos muros, o dos circuncisos. Acaso todos os judeus pereceram? Então de onde saíram os apóstolos, filhos dos profetas, “Filhos dos que foram sacudidos”? (Sl 126,4). É a entendidos que falamos. De onde vieram os quinhentos discípulos que viram o Senhor ressuscitado, conforme relembra o apóstolo Paulo? (cf 1Cor 15,6). De onde os cento e vinte, reunidos no mesmo recinto após a ressurreição e ascensão do Senhor ao céu, e sobre os quais, congregados num só lugar, no dia de Pentecostes, desceu o Espírito Santo, enviado do céu, segundo fora prometido? (cf At 1,15; 2,1ss). Todos eram judeus; foram os primeiros a viverem em comum. Venderam todos os seus bens e depositaram o preço aos pés dos apóstolos, segundo se lê nos Atos dos Apóstolos: “Distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade. Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles”. E o que significa: “era comum? A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma em Deus” (cf At 4,32.24.35; 2,45). Foram, portanto, os primeiros que ouviram a palavra: “Eis como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum”. Primeiros, mas não os únicos. A caridade e a união fraternas não se limitaram a eles. A alegria da caridade e o voto feito a Deus abrangeram também os pósteros. Prometia-se algo a Deus pois foi dito: “Fazei votos ao Senhor, vosso Deus, e cumpri-os” (Sl 75,12). É preferível não fazer promessas a fazê-las, mas não cumpri-las (Eclo 5,4). Tenha-se, no entanto, ânimo resoluto para prometer e cumprir. Não aconteça que por medo de ser incapaz de cumprir, se perca a coragem de prometer. Com efeito, jamais cumprirá quem pensar que há de consegui-lo pelas próprias forças. | |
§ 3 | Deriva das palavras deste salmo o nome de monges. Por causa deste nome ninguém ataque os católicos. Quando vós, com razão, começais a criticar os hereges, por causa dos circeliões (circelliones), visando a que envergonhados se salvem, eles vos contra-atacam com o nome de monges. Em primeiro lugar, vede se convém comparar. Se preci-sardes falar, logo começa o contraste. Basta pedir um pou-co de atenção. Apenas observe, compare. Para que falar? Comparem-se ébrios e sóbrios, impetuosos e moderados, furiosos e simples, vagabundos e os que vivem reunidos. Aliás, eles costumam perguntar: Que quer dizer esta palavra: monges? Com mais razão interrogamos nós: Que quer dizer: circeliões (circelliones)? Mas, replicam, eles não se chamam circelliones. Talvez estejamos lhes dando um nome truncado. Diremos o nome completo? É provável que seja circumcelliones não circelliones. Se é assim, expliquem o que são. Pois, chamam-se circumcelliones porque andam errantes pelas celas. Costumam ir de cá para lá, nunca domiciliados e cometem o mal que sabeis e que eles também não ignoram, quer queiram, quer não. | |
§ 4 | Entretanto, existem, caríssimos, falsos monges. Também nós os conhecemos. Não se arruína, porém, a pia fraternidade, devido aos que professam ser o que não são. Tanto existem falsos monges quanto falsos clérigos e falsos fiéis. As três espécies de monges, meus irmãos, que mencionamos em outra ocasião (e creio que não foi uma vez só) têm em seu seio bons e maus.1 Destas três espé-cies foi dito: “Estarão dois no campo, um será tomado e o outro deixado” (Mt 24,40.41); “dois estarão no leito, um se-rá tomado e outro deixado; duas mulheres estarão moendo juntas, uma será tomada e a outra deixada” (Lc 17,34.35). Estão no campo os que governam a Igreja. Daí declarar o Apóstolo — Vede se não estavam no campo —: “Eu plantei; Apolo regou; mas era Deus quem fazia crescer (1 Cor 3,6). Os que estavam no leito representam os que apreciam o repouso, pois o leito simboliza o descanso. Eles não se perdem no meio das multidões, nem dos tumultos do gênero humano; servem a Deus com tranqüilidade. Todavia, daí também um será tomado e o outro deixado. Entre eles há varões probos e homens réprobos. Não vos espanteis de encontrarem ali réprobos, pois alguns ocultam o que são e só no fim se manifestarão. As duas (do gênero feminino) no moinho representam a plebe. Por que no moinho? Porque estão no mundo, figurado pelo moinho. O mundo se movimenta à semelhança da mó. Ai daqueles que a mó tritura. De tal modo aqui vivem os fiéis bons, que uma é deixada e a outra é tomada. Praticam ações peculiares ao mundo os mundanos, os fraudulentos e fingidos. Outros, contudo, acham-se no mundo conforme a palavra do Apóstolo: “Usam deste mundo como se não usassem plenamente, porque passa a figura deste mundo. Eu quisera que estivésseis isentos de preocupações” (1 Cor 7,31.32). Escutas quais são as mulheres tomadas do moinho? Certamente muitos pecados parecem peculiares aos ricos. Como seu âmbito de ação e administração é mais amplo e dependem deles bens familiares mais vultosos, torna-se-lhes difícil não contraírem pecados em maior número. Deles foi dito: “É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. E como os discípulos ficassem contristados por isso, considerando-os em estado desesperador, o Senhor os consolou nesses termos: “Ao homem isso é impossível, mas a Deus tudo é possível” (Mt 19,24-26). De que maneira Deus facilmente o faz? Ouve o que o Apóstolo ordena, se não negligencias as suas ordens: “Aos ricos deste mundo exorta que não sejam orgulhosos” (1 Tm 6,17). Descobrirás pobres soberbos e ricos humildes. Um cristão, por exemplo, que julgue acertadamente tudo passageiro e perecível e que ele nada trouxe para este mundo, nada há de levar; lembra-se do rico a arder nas chamas do inferno e a ansiar por um pingo d’água que gotejasse do dedo do mendigo que desejara comer das migalhas de sua mesa (cf Lc 16,19-24). Assim meditando, segue a recomendação do Apóstolo: “Nem ponham sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus vivo, que nos provê tudo com abundância para que nos alegremos. Que se enriqueçam com boas obras, sejam pródigos, capazes de partilhar. Estarão assim acumulando…” E qual o lucro que daí retiram? “Estarão assim acumulando um belo tesouro para o futuro, a fim de obterem a verdadeira vida” (1 Tm 6,17-19). Esta a mulher tomada do moinho. Era, contudo, deixada a que se assemelhava àquele rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte e desprezava o mendigo, deitado à sua porta (Lc 16,19-24). Porque do moinho uma é tomada e outra é deixada. | |
§ 5 | Cita igualmente Ezequiel três varões, nos quais não é absurdo ver figuradas estas três espécies de homens. “Se o Senhor trouxer a espada contra um país, ainda que estejam ali estes três, a saber, Noé, Daniel e Jó eles não conseguiriam salvar os seus filhos e as suas filhas. Antes, só eles seriam salvos” (Ez 14,14-18). Eles já haviam sido salvos outrora, mas os três nomes figuravam três espécies de homens. Noé representa os que governam a Igreja, porque no dilúvio governou a arca (Gn 7). Daniel escolheu uma vida tranqüila, servindo a Deus no celibato, isto é, sem esposa. Era um varão santo e levava uma vida de desejos celestes. Foi provado muitas vezes e demonstrou ser ouro puro. Como era tranqüilo quem se sentia seguro até no meio de leões (Dn 6,22.14,28-39). Conseqüentemente, sob o nome de Daniel, também denominado “homem de desejos” (Dn 10,11), são simbolizados os servos de Deus castos e santos, dos quais se diz: “Eis como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum”. Pelo nome de Jó se representa a mulher que é to-mada no moinho. Ele possuía mulher, filhos, muitas rique-zas e tão copiosas neste mundo que o diabo objetara contra ele que se adorava a Deus não era gratuitamente e sim em vista do que recebera. Esta a objeção do adversário contra o santo varão. As tentações demonstraram, ao invés, quão gratuita era sua adoração a Deus; não era oca-sionada pelos dons recebidos e sim por quem os concedera. Então, perdidos todos os bens através de repentina afli-ção e provação, perdida a herança, perdidos os herdeiros e restando apenas a mulher, não para consolá-lo, mas para tentá-lo, proferiu a palavra que conheceis: “O Senhor deu, o Senhor o tirou. Como foi do agrado do Senhor, assim acon-teceu. Bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). Isto se realiza também nas palavras que cantamos diariamente, se nossos costumes estão em uníssono com elas: “bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,2). As três espécies de homens estão, portanto, representadas nestes três nomes e igualmente nos três casos que mencionei do evangelho. | |
§ 6 | Ora, que nos replicam os que se riem de nós por causa do nome de monges? Talvez dirão: Os nossos não se chamam circumcelliones; vós é que lhes dais esse nome injurioso. Não é assim que os nomeamos. Digam como os denominam, para ouvirdes. Chamam-nos de “agonistas”, isto é, lutadores. Aceitamos este nome honesto, se de fato lhes convém. Por enquanto, veja V. Caridade. Se eles nos interpelam: Mostrai-nos onde está escrito o nome de monges, mostrem eles onde se acha escrito o nome de “ago-nistas”. Retrucam: O nome que lhes damos deriva de combate, porque eles lutam, conforme declarou o Apóstolo: “Combati o bom combate” (2 Tm 4,7). Estes soldados de Cristo têm o nome de “agonistas” porque lutam com o diabo e o vencem. Oxalá fossem mesmo soldados de Cristo e não do diabo, aos quais o louvor de Deus (Deo laudes)2 incute medo maior do que o provocado pelo rugido do leão. Ousam injuriar-nos, porque os irmãos, ao encontrarem alguém, dizem: Graças a Deus (Deo gratias)3. Respondem: Que significa Graças a Deus? És surdo? Não sabes o que quer dizer: Graças a Deus? Quem diz: Graças a Deus, agradece a Deus. Nota se não deve um irmão dar graças, ao ver outro irmão. Não é motivo de dar graças o encontro entre os que vivem com Cristo? Apesar disso, rides de nossas ações de graças: Graças a Deus. De vossos: louvor a Deus, choram os homens. Mas certamente, apresentastes as razões de vos denominardes “agonistas”. Assim seja. Estamos perfeitamente de acordo. Conceda-lhes o Senhor a graça de combaterem o diabo e não a Cristo, cuja Igreja perseguem. Todavia, denominai-os “agonistas”, e descobristes que o nome provém da palavra do Apóstolo: “Combati o bom combate”. Então, por que motivo não podemos também nós denominar-nos monges, se o salmo declara: “Eis como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum?” Efetivamente, monos quer dizer: um, sozinho. Um, não de qualquer modo. Uma turba é um aglomerado. Mas, a multidão formada de muitos pode ser deno- minada um conjunto, mas não monos, isto é, um sozinho, porque monos significa: um só. Aqueles, portanto, que vivem unidos de tal sorte que formam um só homem, sendo exato a respeito deles o que foi escrito: “são uma só alma e um só coração” (At 4,32), são muitos corpos, mas não muitas almas, muitos corpos mas não muitos corações; com razão, chama-se monos, isto é, um só. Daí também vemos que só um doente foi curado na piscina. Respondam-nos, expliquem-nos os que zombam do nome de monges, porque o homem doente durante trinta e oito anos respondeu ao Senhor: “Não tenho quem me jogue na piscina, a água é agitada, ao chegar, outro já desceu antes de mim” (Jo 5,7). Um descera, outro já não descia. Um só era curado; ele figurava a unidade da Igreja. Com razão atacam a unidade os que da unidade se separaram. Têm motivo de lhes desagradar o nome de monges, porque não querem viver unidos aos irmãos, mas seguem a Donato e abandonaram a Cristo. Ouviu V. Caridade as explicações acerca de: um, sozinho. Agora, alegremo-nos com o salmo e vejamos como prossegue. É breve. Podemos percorrê-lo ligeiramente, explanando quanto o Senhor nos sugerir. Penso que as palavras acima esclarecem as seguintes, embora aparentemente sejam obscuras. | |
§ 7 | 2 “Eis como é bom, como é agradável a irmãos unidos viverem em comum”. Dizia: “Eis”; estava mostrando. Também nós, irmãos, vemos e bendizemos a Deus; suplicamos que possamos também nós dizer: “Eis”. Declare o salmo a que se assemelham eles: “É qual óleo puríssimo derramado sobre a fronte, que desce pela barba, a barba de Aarão, para espalhar-se até a orla de sua veste”. O que era Aarão? Era sacerdote. Quem é sacerdote senão o único sacerdote, que penetrou no santo dos santos? Quem é este sacerdote, a não ser aquele que simultaneamente foi vítima e sacerdote? Senão aquele que, nada encontrando no mundo de puro para oferecer, ofereceu-se a si mesmo? O ungüento foi derramado na cabeça, porque o Cristo total inclui a Igreja; mas da Cabeça é que corre o ungüento. Nossa Cabeça é Cristo; crucificado, sepultado, ressuscitado, subiu ao céu. A Cabeça enviou o Espírito Santo. Até onde? Até a barba. A barba significa os fortes; a barba representa os jovens, os corajosos, os infatigáveis, os ágeis. Por isso, se queremos designá-los, dizemos: É um homem barbado. Assim, aquele primeiro ungüento desceu sobre os apóstolos, desceu sobre os que suportaram em primeiro lugar o ataque do mundo; pois desceu sobre eles o Espírito Santo. Foram igualmente os primeiros a viverem em comum. Sofreram perseguição. Uma vez que o ungüento espalhara-se até a barba sofreram, mas não foram vencidos. Efetivamente, a Cabeça os precedera nos sofrimentos, e dela desceu o ungüento. Com tal precedente, quem venceria a barba? | |
§ 8 | Daquela barba procedera santo Estevão. Vencer é não deixar a caridade ser superada pelos inimigos. Os perseguidores dos santos pensaram que tinham vencido. Uns feriam, outros eram vulnerados; uns matavam, outros eram mortos. Quem não pensaria que os primeiros subjugavam e os outros eram vencidos? Como, porém, a caridade não foi superada, o ungüento desceu à barba. Considera Estêvão. Inflamava-se a caridade e ele atacava enquanto era ouvido, mas rezava por eles quando apedrejado. O que falou aos judeus, enquanto o ouviam? “Homens de dura cerviz, incircuncisos de ouvido e coração, vós sempre resistis ao Espírito Santo” (At 7,51). Eis a barba. Acaso adulou? Ou se atemorizou? Eles escutavam as palavras de Estêvão, que parecia encolerizado; enfurecia-se de boca, amava com o coração. E a caridade nele não foi vencida. Os adversários, trevas afugentadas pela luz, aborreceram as palavras e começaram a apanhar pedras para apedrejar Estêvão. Antes eram as palavras de Estêvão que os apedrejavam, depois as pedras lançadas por eles lapidavam Estêvão. Quando devia este estar mais irado? Ao ser apedrejado ou ao ser ouvido? Manso ao ser apedrejado, irado ao ser ouvido. Por que se enfurecia ao ser ouvido? Porque desejava transformar aqueles que o ouviam. Quando as pedras o atingiam, a caridade não foi vencida, porque o ungüento descera da cabeça à barba e ele ouvira da própria Cabeça: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44). Ele ouvira da própria Cabeça, pendente da cruz: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Assim, portanto, o ungüento descera da Cabeça à barba; também ele, ao ser apedrejado, dobrando os joelhos, disse: “Senhor, não lhes imputes este pecado” (At 7,51,59). | |
§ 9 | A barba, por conseguinte, eram eles. Muitos eram fortes e sofreram muitas perseguições. Mas, se o ungüento não tivesse descido da barba, não teríamos agora os mosteiros. Desceu, contudo, até a orla da veste. “Para espalhar-se até a orla de sua veste”. Veio em seguida a Igreja, e ela da veste do Senhor produziu os mosteiros. Pois, a veste sacerdotal significa a Igreja. Desta veste diz o Apóstolo: “Para apresentar a si mesmo a Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga” (Ef 5,27). É lavada para tirar as manchas, estendida para não ficar amassada. Onde o pisoeiro a estende? Não é sobre uma tábua? Vemos todos os dias os pisoeiros de certa maneira crucificando as roupas. São cravadas no madeiro para alisarem. Que sentido tem a orla da veste. Como interpretaremos, irmãos, esta orla da veste? A orla é a extremidade. E o que quer dizer a beira da veste? Será porque no fim dos tempos a Igreja teria irmãos unidos a viverem em comum? Orla figuraria a perfeição, porque é o acabamento da veste? E são perfeitos os que vivem unidos? São perfeitos os que cumprem a lei. Como, porém, cumprem a lei de Cristo os irmãos unidos que vivem em comum? Escuta o Apóstolo: “Carregai o peso um dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2). Esta é a orla da veste. Qual, irmãos, a orla aqui referida, e pela qual escorreu o ungüento? Não penso que seria a orla lateral do manto. Pois, existem orlas laterais. Mas, o ungüento pôde descer da barba para a orla perto da cabeça, a gola. Tais são os que habitam em comum. Como através da gola passa a cabeça do homem ao se vestir, assim por meio da concórdia fraterna entra Cristo, nossa Cabeça, para se vestir, de tal sorte que a Igreja fique aderente. | |
§ 10 | 3 Que acrescenta ainda o salmo? “Qual o orvalho do Hermon que desce pela colina de Sião”. Estas palavras dão a entender, meus irmãos, ser graça de Deus os irmãos unidos viverem em comum. Não deriva das próprias forças, nem de seus méritos; é dom de Deus, é graça, qual orvalho que cai do céu. A terra não produz a chuva por si mesma; seca o que brota se do alto não descer a chuva. Encontra-se em outra passagem de um salmo: “Chuva benfazeja, voluntária, reservarás, ó Deus, para tua herança” (Sl 67,10). Por que a denominou “voluntária?” Porque não provém de nossos méritos, mas da vontade de Deus. Que bem merecemos nós, pecadores? Que bem merecemos nós, iníquos? Adão se origina de Adão, e de Adão nascem muitos pecados. A criança nasce como filho de Adão, condenado filho de um condenado, e por uma vida má acrescenta pecados ao pecado de Adão. Que bem mereceu Adão? Todavia, o Senhor misericordioso amou, o esposo amou, para torná-la formosa, uma esposa que não era bela. A graça de Deus, portanto, é que o salmista chama de orvalho do Hermon. | |
§ 11 | Mas deveis saber o que significa Hermon. É um monte, longe de Jerusalém, isto é, de Sião. Em conseqüência disso, é estranho afirmar: “Qual o orvalho do Hermon, que desce pela colina de Sião”, estando o monte Hermon situado distante de Jerusalém; diz-se que se situa além do Jordão. Por isso, procuraremos uma interpretação da palavra Hermon. É palavra hebraica, e temos a tradução de conhecedores da língua. A tradução de Hermon seria: luz exaltada. De Cristo vem o orvalho. Ora, não há luz exaltada a não ser o Cristo. Como foi exaltado? Primeiro na cruz, em seguida no céu. Exaltado na cruz, humilhado, mas essa humilhação não podia deixar de ser elevação. A economia humana, figurada em João Batista, diminuía cada vez mais; a economia divina crescia em nosso Senhor Jesus Cristo. Demonstraram-no os dias do nascimento dos dois. João Batista, conforme a tradição da Igreja, nasceu a 24 de junho, quando os dias começam a diminuir. O Senhor, porém, nasceu a 25 de dezembro, quando os dias começam a crescer. Escuta a declaração do próprio João: “É necessário que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30). A paixão de cada um deles também o indica. O Senhor foi exaltado na cruz; João, decapitado, diminuiu. Cristo, pois, é a luz exaltada. Dele provém o orvalho do Hermon. Se quiserdes viver em comum, desejai o orvalho, a chuva de lá. De outra forma, não podereis manter o que professais, nem mesmo ousaríeis prometer, a não ser que ele faça ouvir o seu trovão. Nem podereis permanecer, se faltar o subsídio, subsídio que desce sobre os montes de Sião. | |
§ 12 | “Montes de Sião”, os grandes de Sião. O que é Sião? A Igreja. E nela, quais os montes? Os grandes. Montes têm significado idêntico ao da barba, da orla da veste. Barba só se aplica aos perfeitos. Não habitam em comum senão aqueles nos quais é perfeita a caridade de Cristo. Se viverem em comum os que não têm a caridade perfeita de Cristo odeiam-se, molestam-se, são turbulentos, perturbam os outros com seu desassossego e procura saber o que deles se diz. O jumento inquieto em parelha não apenas não puxa, mas escoiceia o seu par. Se, porém, recebe o orvalho do Hermon, “que desce sobre os montes de Sião”, é quieto, plácido, tolerante e reza em vez de murmurar. Certa passagem da Escritura descreve magnificamente os murmuradores: “Os sentimentos do estulto são como uma roda de carro” (Eclo 33,5). Que sentido tem a frase: “Os sentimentos do estulto são como uma roda de carro?” Carrega feno e murmura. As rodas de um carro não podem deixar de murmurar. Assim também são muitos irmãos. Vivem em comum só corporalmente. Quais seriam os que vivem unidos em comum? Aqueles dos quais foi dito: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma em Deus. “Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles” (At 4,32). Foram designados, foram descritos os que constituem a barba, os pertencentes à orla da veste, os enumerados entre os montes de Sião. E se ali existem murmu-radores, lembrem-se da palavra do Senhor: “Um é tomado e outro deixado” (Mt 24,40). | |
§ 13 | “Ali derramou o Senhor a sua bênção”. Onde? Sobre irmãos unidos que vivem em comum. Ali derramou a bênção, ali bendizem o Senhor os que vivem em concórdia. Pois, a discórdia não bendiz o Senhor. Em vão tua língua canta o louvor do Senhor, se de coração não o proferes. Bendizes com a boca, maldizes no coração. “Bendiziam-me com a boca, e amaldiçoavam-me no coração” (Sl 61,5). São palavras nossas? Aplicam-se a alguns. Bendizes o Senhor ao rezar, mas prossegues a prece, maldizendo teu inimigo. Não ouvistes do próprio Senhor a ordem: “Amai os vossos inimigos”? (Mt 5,44). Se o fizeres, se amares teu inimigo, rezares por ele, “o Senhor derrama a sua bênção, e terás a vida para todo o sempre”, isto é, eternamente. Muitos, amando esta vida, maldizem seu inimigo. Por que motivo, senão por causa desta vida, dos bens deste mundo? Como te oprimiu o inimigo, impelindo-te a maldizer? Estás angustiado na terra? Emigra, mora no céu. Como, dirás, habitarei no céu, ainda revestido da carne, sujeito à carne? Precede com o coração; para lá seguirás com o corpo. Não te faças de surdo, ao ouvires: Corações ao alto! Mantém ao alto o coração e ninguém te afligirá no céu. Continuação bem adequada constitui o salmo seguinte. 1 Cf Com. s/salmo XIX, 13. 2 Saudação dos circunceliões. 3 Saudação dos monges. | |