ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 131 | ||
§ 131:1 | ᶊ Senhor, o meu coração não é soberbo, nem os meus olhos são altivos; não me ocupo de assuntos grandes e maravilhosos demais para mim. | |
§ 131:2 | Ꝓ Pelo contrário, tenho feito acalmar e sossegar a minha alma; qual criança desmamada sobre o seio de sua mãe, qual criança desmamada está a minha alma para comigo. | |
§ 131:3 | ⱻ Espera, ó Israel, no Senhor, desde agora e para sempre. | |
O SALMO 131 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1 Seria mais justo, caríssimos irmãos, ouvirmos meu irmão e colega, presente entre nós1. Ele agora não recusou falar, mas apenas adiou. E eu o refiro a V. Caridade, para que comigo reclameis o cumprimento da promessa. V. Caridade não julgue absurdo que eu tenha primeiro obedecido a sua ordem. Ele exigiu de mim que pudesse agora ser ouvinte, com a condição, porém, de que por mi-nha vez seja ouvinte dele, porque a caridade nos faz a todos ouvintes do único Mestre que está no céu (cf Mt 23,10). Por conseguinte, atenção ao salmo que havemos de comentar, como sabeis, segundo a ordem. Traz primeiro anotado: “Cântico gradual”. É um pouco mais longo do que os demais que têm tal título. Não nos detenhamos, a não ser nos pontos necessários, a fim de podermos explicar todo ele, se Deus o permitir. Não precisais ouvir tudo de novo como se o ignorásseis; deveis ajudar-nos com o que ouvistes de outras vezes, para não necessitarmos dizer tudo de novo. De fato, devemos ser novos, porque não devem insinuar-se os antigos costumes, mas precisamos crescer e aperfeiçoar-nos. Deste progresso, na verdade, diz o Apóstolo: “Embora em nós, o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia-a-dia” (2 Cor 4,16). Não avancemos de tal modo que de novos nos façamos velhos, mas cresça a própria vida nova. | |
§ 2 | 2 “Lembra-te, Senhor, de Davi e de sua grande mansidão. Como fez este julgamento ao Senhor e este voto ao Deus de Jacó”. Davi, na realidade, foi rei de Israel, filho de Jessé. Era, de fato, manso, conforme indica e relembra a Escritura divina (cf 1Rs 24,4-15), e tão manso que a Saul, seu perseguidor, não pagou o mal com o mal. Teve para com ele tamanha humildade que o chama rei e a si mesmo de cão. E não respondia ao rei com insolência ou soberba, embora fosse mais poderoso diante de Deus, mas procurava antes aplacá-lo pela humildade, do que excitá-lo com orgulho. O Senhor Deus entregou Saul ao seu poder, de sorte que teria podido fazer o que quisesse. Mas como Deus não lhe ordenou que matasse, e apenas o entregou ao seu poder (é lícito ao homem empregar o poder que lhe foi confiado), pendeu para a indulgência, em vez de utilizar a concessão. Se preferisse matar, ficaria livre do inimigo; como poderia, contudo rezar: Perdoa-me as minhas ofensas, assim como eu perdôo aos que me têm ofendido? (cf Mt 6,12). Saul entrou na gruta onde estava Davi, ignorando o fato; entrara para satisfazer às necessidades naturais. Davi se levantou de mansinho e cuidadosamente por detrás cortou um pedacinho da veste de Saul, para lhe mostrar que ele estivera em seu poder e que ele o poupara não por necessidade, mas voluntariamente, e não quisera matá-lo. Talvez seja tal a mansidão aqui recomendada: “Lembra-te, Senhor, de Davi e de sua grande mansidão”. Tal é a realidade dos fatos narrados pela Escritura divina, segundo dissemos. Costumamos nos salmos, e em qualquer profecia, não atender à letra, mas perscrutar o mistério através da letra. V. Caridade se recorda de que costumamos ouvir a voz de certo homem em todos os salmos; um só homem, Cabeça e corpo. A Cabeça se encontra no céu e o corpo na terra; o corpo, porém, há de seguir a Cabeça lá onde ela o precedeu. E já não digo qual é a Cabeça e qual o corpo; falo a entendidos. | |
§ 3 | Recomenda-se, portanto, a humildade de Davi, a mansidão de Davi; diz-se a Deus: “Lembra-te, Senhor, de Davi, e de sua grande mansidão. Por que: “Lembra-te, Senhor, de Davi? Como fez ao Senhor este juramento, este voto ao Deus de Jacó”. Que ele se lembre, portanto, a fim de cumprir sua promessa. Davi fez um voto, como se estivesse em seu poder o objeto do juramento; no entanto roga a Deus que cumpra o que ele prometeu. Dedicação de quem vota, humildade de quem reza. Ninguém presuma cumprir o que prometeu por suas próprias forças. Se Deus te exorta a fazeres um voto, ele ajuda a cumpri-lo. Vejamos o que ele prometeu e daí entenderemos como tomar a figura de Davi. Pois, Davi se interpreta: Mão forte. Era, de fato, grande guerreiro. Presumindo, contudo do Senhor seu Deus, entrou nas guerras, prostrou todos os seus inimigos, com o auxílio de Deus, conforme os desígnios de Deus sobre aquele reino; prefigurava, contudo, certo guerreiro forte em vencer os inimigos, o diabo e seus anjos. A Igreja, porém, debela esses inimigos. Como? Pela mansidão. Nosso próprio Rei venceu pela mansidão o diabo. Este estava enfurecido; o Senhor suportava. Foi vencido aquele que se enfurecia e venceu o que sofria. Nesta mansidão o corpo de Cristo, a Igreja, vence os inimigos. Seja mão forte, vença em sua ação. O corpo de Cristo é igualmente templo, casa, cidade; aquele que constitui sua Cabeça é também habitante da casa, santificador do templo, rei da cidade. Como a Igreja é tudo aquilo, Cristo é tudo isto. Que prometemos a Deus, senão sermos seu templo? Nada de mais agradável a seus olhos podemos lhe oferecer do que dizer-lhe o que disse Isaías: “Toma posse de nós” (cf Is 26,13). Com efeito, quanto às propriedades terrenas confere-se alguma coisa ao pai de família quando se lhe entrega a sua posse; não acontece o mesmo nesta possessão que é a Igreja; ela é quem ganha de ter tal proprietário. | |
§ 4 | 3.5 Que significa: “Como fez ao Senhor este juramento e este voto ao Deus de Jacó?” Vejamos que voto é esse. Pois, jurar é prometer firmemente. Considerai este voto, isto é, o que prometera, com que ardor, com que amor, com que desejo; entretanto, para cumpri-lo suplicara ao Senhor: “Lembra-te, Senhor, de Davi e de sua grande mansidão”. Com esta mansidão, fizera o voto de se tornar casa de Deus: “Se eu entrar na tenda em que moro, se subir ao leito onde repouso, se der sono aos meus olhos”. Julgou que não bastava dizer: “sono aos meus olhos, e repouso às minhas pálpebras”, mas se der ainda “descanso às minhas têmporas, até que ache um lugar para o Senhor, um tabernáculo para o Deus de Jacó”. Onde procurava um lugar para o Senhor? Se era manso, procurava em si. Pois, como é um lugar para o Senhor? Escuta o profeta: “Eis sobre quem repousa o meu Espírito. Sobre o humilde, o manso, aquele que treme diante de minha palavra” (cf Is 66,2). Queres ser um lugar para o Senhor? Sê humilde, quieto, treme diante das palavras de Deus, e te tornarás aquilo que desejas ser. Se, porém, isso não se realizar em ti, que aproveita a ti se em outro se realiza? Na verdade, Deus às vezes opera apenas a salvação de outro por meio de um anunciador da palavra, se ele diz e não faz; e assim o outro se torna, através de suas palavras, um lugar para o Senhor, enquanto ele mesmo, não. Aquele que pratica exatamente o que ensina, e assim ensina a outrem, ele e o outro se tornam lugar para o Senhor, porque todos os que crêem constituem juntos um só lugar para o Senhor. Com efeito, o lugar para o Senhor é o coração, e o coração de todos os que estão unidos pelos laços da caridade é um só. | |
§ 5 | Quantos milhares acreditaram, meus irmãos, quando depuseram o preço de seus bens aos pés dos apóstolos (At 4,35). Mas que diz a Escritura a respeito deles? Certamente se tornaram templo de Deus; não foi apenas cada um em particular que se fez templo de Deus, mas todos juntos se tornaram templo de Deus. Por conseguinte, tornaram-se lugar para o Senhor. E para saberdes que todos se tornaram um só lugar para o Senhor, diz a Escritura: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4,32) em Deus. Muitos, porém, não se tornam lugar para o Senhor, se procuram seus próprios interesses, amam o que é seu, alegram-se com seus poderes, ambicionam ter bens particulares. Quem, contudo, quer arranjar um lugar para o Senhor, contente fica não com seus bens particulares, mas com os comuns. Foi isso que os fiéis então fizeram com seus próprios bens; puseram-nos em comum. Então perderam o que tinham de seu? Se os possuíssem sozinhos, cada qual teria o que era seu; teria apenas isso; ao tornarem comuns seus bens particulares, também os bens dos outros se fizeram seus. V. Caridade esteja atenta. Por causa dos bens que cada um de nós possui, existem contendas, inimizades, discórdias, lutas entre os homens, tumultos, dissensões, escândalos, pecados, iniqüidades, homicídios. Por que razão? Por causa do que possuímos em particular. Acaso brigamos por causa do que possuímos em comum? Em comum respiramos o mesmo ar, vemos em comum o mesmo sol. Felizes, portanto, os que de tal modo dispõem um lugar para o Senhor, que não gostam de ter bens particulares. O salmista descrevia tal espécie de homens, nesses termos: “Se eu entrar na tenda em que moro”. Era um bem particular. Sabia que este bem privado era um obstáculo a que ele preparasse um lugar para o Senhor e menciona o que lhe pertencia; “não entrarei na tenda em que moro, até que eu ache”. Como? Ao encontrares um lugar para o Senhor, entrarás em tua tenda? Ou será a tua tenda o lugar que encontrarás para o Senhor? Por quê? Porque serás um lugar para o Senhor, e com aqueles que forem um lugar para o Senhor serás uma coisa só. | |
§ 6 | Abstenhamo-nos, portanto, irmãos, da posse de bens particulares; ou do amor aos bens particulares, se não podemos abster-nos da posse e providenciemos um lugar para o Senhor. É demais para mim, diz alguém. Mas vê quem és, que haverás de arranjar um lugar para o Senhor. Se um senador quisesse hospedar-se em tua casa, ou antes, não digo um senador mas um procurador de um grande neste mundo e te dissesse: Em tua casa há alguma coisa que me desagrada; embora gostasses desse objeto, tu o retirarias para não ofenderes aquele cuja amizade ambicionas. E de que te serve a amizade de um homem? Talvez nela não encontrarás auxílio algum, mas até será um perigo. Pois, muitos não incorriam em perigo antes de procurarem a companhia dos grandes; optaram por sua amizade para incorrerem em maiores perigos. Opta com segurança pela amizade de Cristo. Ele quer hospedar-se em tua casa; dá-lhe lugar. Que quer dizer: dá-lhe lugar? Não ames a ti mesmo e sim a ele. Se amares a ti mesmo, fechas-lhe a porta; se o amares, abres. Se, porém, lhe abrires e ele entrar, não perecerás amando-te a ti mesmo, mas te encontrarás com aquele que te ama. | |
§ 7 | “Se eu entrar na tenda onde moro, se subir ao leito onde repouso”. Pois os bens particulares em que o homem repousa, torna-o soberbo; por isso disse o salmista: “Se subir”. Necessariamente se torna soberbo quem possui bens particulares; daí vem que um homem ataca a outro, embora ambos sejam carne. Que é o homem, irmãos? Carne. E que é o outro? Carne. E no entanto a carne do rico se ergue contra a carne do pobre; como se tivesse trazido alguma coisa aquela carne quando nasceu ou leva algo quando morre. Teve mais o rico para mais se orgulhar. Mas, o salmista que quer encontrar um lugar para o Senhor, diz: “Se subir ao leito onde repouso”. | |
§ 8 | “Se der sono aos meus olhos”. Muitos, de fato, quando dormem, não dão lugar ao Senhor. O Apóstolo os acorda: “Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” (Ef 5,14); e em outra passagem: “Nós que somos do dia, vigiemos e sejamos sóbrios. Quem dorme, dorme de noite; quem se embriaga, embriaga-se de noite” (1 Ts 5,5-8). Chama de noite a iniqüidade, em que eles dormem cobiçando as riquezas terrenas. E tudo o que ao mundo parece felicidade é sonho daqueles que dormem. Assemelha-se ao que vê tesouros em sonho, e é rico durante o sono; quando acorda é pobre. Assim todas as vaidades mundanas de que se regozijam os homens, gozam delas num sonho. Acordarão quando não querem, se não estão despertos quando lhes é útil; e verificam que tudo foi sonho e passou, conforme diz a Escritura: “como ao despertar de um sonho” (Sl 72,20); e em outro lugar: “Dormiram, sonharam e esses homens ricos nada encontraram nas mãos (Sl 75,6). Dormiram, sonharam”, terminou o sonho e “nada encontraram nas mãos”, porque viam em sonho riquezas transitórias. Portanto, este salmista que quer encontrar um lugar para o Senhor, disse também: “Se der sono aos meus olhos”. Existem alguns que não dormem, mas cochilam. Retraem-se um pouco do amor dos bens temporais, e novamente vêm se revolver neles; como os que cochilam, freqüentemente inclinam a cabeça. Acorda, sacode o sono: cochilando podes cair. O salmo não quer que entregue os olhos ao sono, nem dê repouso às pálpebras, aquele que tenciona encontrar um lugar para o Senhor. | |
§ 9 | “E descanso as minhas pálpebras”. Se as pálpebras repousam, o sono vem aos olhos. As pálpebras estão perto dos olhos. Ao chegar o sono, as pálpebras ficam pesadas. Quando os homens vão dormir, as pálpebras começam a pesar; ao sentirem pesadas as pálpebras, estão quase dormindo; se querem entregar os olhos ao sono, dão descanso às pálpebras e o sono chega; se não repousarem as pálpebras, o sono não vem. Então, se algo de temporário começar a te deleitar para pecares, as pálpebras já te estão pesando. Queres vigiar, não dormir, nem dormitar? Não te confies a tais deleites; terão mais dores do que suavidades. Com esta reflexão esfregando a fronte, repeles o sono e preparas um lugar ao Senhor. | |
§ 10 | “Até que ache um lugar para o Senhor, um taber-náculo para o Deus de Jacó”. Embora por vezes se chame o tabernáculo de Deus de casa de Deus, e a casa de Deus se denomine tabernáculo de Deus, há uma distinção, meus caríssimos irmãos. Tabernáculo é a Igreja do tempo presente; casa, porém, é a Igreja da Jerusalém celeste, para onde iremos. O tabernáculo é próprio dos que militam e combatem; as tendas pertencem aos soldados de prontidão, em expedição; daí chamarem-se contubernais os soldados, porque têm por habitação as mesmas tendas. Por conseguinte, enquanto temos inimigo a combater, levantamos um tabernáculo para Deus. Ao terminar o tempo de combate, e vier aquela paz que ultrapassa todo entendimento, conforme declara o Apóstolo: “A paz de Cristo que excede toda a compreensão” (Ef 4,7), por mais que medites naquela paz, a alma menos a apreende enquanto o corpo pesa sobre ela; ao chegar à pátria, já estará em casa, e nenhum adversário a provará de tal sorte que se possa falar em tabernáculo. Não avançaremos para lutar, mas permaneceremos a louvar. Que se diz daquela casa? “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). No tabernáculo ainda gememos, em casa louvaremos. Por que razão? Porque os gemidos são próprios dos peregrinos, e o louvor dos que já permanecem na pátria. Aqui, em primeiro lugar se procura um tabernáculo para o Deus de Jacó. | |
§ 11 | 6 “Ouvimos dizer que ela estava em Éfrata”. Que é “ela”? A sede do Senhor. “Ouvimos dizer que estava em Éfrata. Encontramo-la nos campos do bosque”. Ouviu dizer onde a encontrou; ou ouviu numa parte e encontrou em outra? Investiguemos o que é “Éfrata”, onde o sal-mista ouviu; e ainda procuremos saber o que são os “campos do bosque”, onde ele a encontrou. Éfrata é palavra hebraica que se traduz ao latim por espelho, speculum, conforme informaram os que traduziram para outras línguas as palavras hebraicas da Escritura, a fim de que nós pudéssemos entendê-las. Pois, de hebraico traduziram para o grego, foram vertidas para o latim. Eram vigilan-tes acerca das Escrituras. Se, então, Éfrata significa espe-lho, o salmista ouviu falar daquela casa que se encontra nos campos do bosque, em espelho. O espelho produz uma imagem; toda profecia é imagem dos eventos futuros. Por isso, a futura casa de Deus, foi anunciada sob as imagens proféticas. Ouvimos falar dela, pois, em espelho, isto é: “Ouvimos dizer que ela estava em Éfrata. Encontra-mo-la nos campos do bosque”. Quais são os campos do bos-que? Os campos da floresta. Não se trata do que se diz vulgarmente: aquele bosque, por exemplo, consta de tantas centenas. Bosque propiamente é um lugar ainda inculto e silvestre. Alguns códices trazem: “nos campos da selva”. Quais eram, então, os campos dos bosques senão os povos incultos? Quais os campos dos bosques, a não ser os que ainda se achavam nos espinheiros da idolatria? No entanto, como ali existiam os espinheiros da idolatria, ali encontramos lugar para o Senhor, um tabernáculo para o Deus de Jacó. Aquilo que “ouvimos dizer em Éfrata, encon-tramos nos campos do bosque”; o que foi anunciado em imagem aos judeus, foi revelado na fé aos gentios. | |
§ 12 | 7 “Entraremos em seu tabernáculo”. De quem? Do Senhor Deus de Jacó. Os que entram para habitar são os mesmos que entram para serem habitados. Entras em tua casa para ali habitares, entras na casa de Deus para seres habitado. Pois, o Senhor é bom. Quando começar a habitar em ti, far-te-á feliz. Com efeito, se não fores habitado por ele, serás infeliz. Quis ser senhor de si o filho que disse ao pai: “Dá-me a parte da herança que me cabe” (Lc 15,12). Ele estava bem guardado junto do pai, para não dissipar seus bens com meretrizes. Recebeu a herança, que passou para sua posse; partiu para uma região longínqua, gastou tudo com meretrizes. Finalmente passou fome e lembrou-se do pai; voltou, a fim de ter pão com fartura. Por isso, entra, para seres habitado; não sejas dono de ti mesmo, e sim posse dele: “Entraremos em seu tabernáculo”. | |
§ 13 | “Prostrar-nos-emos no lugar onde se detiveram seus pés”. De quem são os pés? Do Senhor, ou da própria casa do Senhor? Pois é na casa do Senhor que ele há de ser adorado. “Prostrar-nos-emos no lugar onde se detiveram seus pés”. Fora de sua casa, Deus não atende relativamente à vida eterna. Pertence à casa do Senhor aquele que está integrado pela caridade entre as pedras vivas. Quem não tiver a caridade, arruína-se; enquanto ele cai, a casa permanece de pé. Ninguém ameaça a casa, de onde começou a ser uma pedra, como se prejudicasse à casa se ele quiser cair. Foi desta maneira que se orgulhou em primeiro lugar o povo judaico, dizendo: Deus não há de falhar na promessa feita ao patriarca Abraão de uma grande descendência. E eles cometiam todos os pecados, falsamente seguros das promessas de Deus, de sorte que não lhes retribuiria de acordo com seus méritos, quando cometiam crimes, mas os pouparia em consideração aos méritos de Abraão, e reuniria quaisquer dos maus filhos de Abraão em sua casa, para a vida eterna. Mas, que pregava João? “Raça de víboras”. Quando se aproximavam deles os filhos de Abraão, para serem batizados na água da penitência, não lhes disse: Raça de Abraão, mas “de víboras”. Pois eram tais quais os povos que eles imitavam; não eram filhos de Abraão, mas filhos dos amorreus, dos cananeus, dos gergeseus, dos jebuseus, e de todos os que ofendiam a Deus. Eram filhos deles porque seguiram seu modo de agir. “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, então, fruto que prove a vossa conversão e não penseis que basta dizer: Temos por pai a Abraão, pois eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3,7-9). Não sei que pedras ele então via nos campos do bosque, onde foram suscitados filhos a Abraão. São antes filhos os que imitaram sua fé e não os nascidos de sua raça. Ninguém, portanto, ameace a casa de Deus, dizendo de certo modo: Subtraio-me e a casa ruirá. Seria melhor que ele tivesse a caridade para nela ser coedificado. Pois, mesmo que ele caia, a casa ficará de pé. Por conseguinte, irmãos, a casa de Deus consta daqueles que Deus predestinou e soube de antemão que haveriam de perseverar. Deles foi dito: “Onde se detiveram seus pés”. Alguns há que não perseveram, nem seus pés se detêm. Não são dos que constituem a Igreja; não pertencem agora ao tabernáculo, nem depois à casa. Mas onde se detiveram seus pés? “Pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará”. Não se detêm os pés daqueles cujo amor esfriou. Mas como continua? “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24,12.13). Eis em quais se detiveram seus pés; adora-o neste lugar, isto é, sê do número daqueles nos quais se detiveram os pés do Senhor. | |
§ 14 | Se quiseres, porém, tomar no sentido de que é a própria casa: “Onde se detiveram os seus pés”, teus pés se detenham em Cristo. Os pés se deterão, se perseverares em Cristo. Pois, que se diz do diabo? “Ele foi homicida desde o princípio, e não permaneceu na verdade” (Jo 8,44). Portanto, os pés do diabo não se detiveram. O mesmo se diz a respeito dos soberbos: “Não me pisoteie a soberba, nem as mãos dos pecadores me sacudam. Tombaram os obreiros de iniqüidade. Foram expulsos e não puderam manter-se em pé” (Sl 35,12.13). Portanto é casa de Deus a que tem os pés firmes. Daí, alegrando-se, que diz João? “Quem tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo que está presente e o ouve. Se não está de pé ali, não ouve. É tomado de alegria à voz do esposo” (Jo 3,29). De direito está de pé, porque se alegra à voz do esposo; se ele se ale-grasse com a própria voz, cairia. Já podeis perceber porque caíram aqueles que se alegram com sua própria voz. Aquele amigo do esposo dizia: “Ele é que batiza” (Jo 1,33). Alguns dizem: Nós batizamos. Tendo-se alegrado à sua própria voz, não puderam estar de pé; e não pertencem à casa da qual se diz: “Onde se detiveram seus pés”. | |
§ 15 | 8 “Levanta-te, Senhor, para ir ao lugar de teu repouso”. Chama ao Senhor que dorme: “Levanta-te”. Já sabeis quem dormiu e quem ressuscitou. Ele diz em determinado lugar de um salmo: “Dormi inquieto” (Sl 56,5). Com razão se lhe diz: “Levanta-te, Senhor, para ir ao lugar de teu repouso”. Já não te inquietarás, porque Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele (cf Rm 6,9). É sua a voz em outro salmo: “Eu adormecí, caí em sono profundo. Despertei, porque o Senhor me acolherá” (Sl 3,6). Ao que dormiu se diz: “Levanta-te, Senhor, para ir ao lugar de teu repouso, tu e a arca de tua santificação”, isto é, levan-ta-te, para que também se levante a arca de tua santifi-cação, aquela que santificaste. Ele é nossa Cabeça; sua arca é sua Igreja; ele ressurgiu primeiro, mas a Igreja também ressurgirá. O corpo não ousaria prometer a si mesmo a ressurreição, se a Cabeça não tivesse ressurgido em primeiro lugar. “Levanta-te, Senhor, para ir ao lugar de teu repouso, tu e a arca de tua santificação”. Alguns interpretam que a arca da santificação é o corpo de Cristo, nascido de Maria, de sorte que o salmista poderia dizer: “Levanta-te, Senhor, para ir ao lugar de teu repouso, tu e a arca de tua santificação”. Levanta-te com o corpo, a fim de que apalpem os que não acreditavam. “Levanta-te, Senhor, para ir ao lugar de teu repouso, tu e a arca de tua santificação”. | |
§ 16 | 9 “Teus sacerdotes se revistam de justiça e exultem os teus santos”. Depois que ressurgiste dos mortos e subiste ao Pai, revista-se o sacerdócio real de fé, porque o justo vive da fé (cf 1Pd 2,9; Rm 1,17); e tendo recebido o penhor do Espírito Santo, os membros devem alegrar-se na esperança da ressurreição, em que a Cabeça os precedeu. Pois, o Apóstolo lhes diz: “Alegrando-vos na esperança” (Rm 12,12). | |
§ 17 | 10 “Por amor de Davi, teu servo, não apartes a face de teu Cristo”. Dirige-se a Deus Pai: “Por amor de Davi, teu servo, não apartes a face de teu Cristo”. O Senhor foi crucificado na Judéia; foi crucificado pelos judeus; afligido por eles dormiu. Levantou-se para julgar aqueles cruéis, entre cujas mãos ele dormiu. O Senhor diz em certo salmo: “Ergue-me e dar-lhes-ei a merecida retribuição” (Sl 40,11). Deu e há de dar. Pois quanto os judeus tiveram de sofrer depois da morte do Senhor, eles mesmos o sabem. Todos foram expulsos da própria cidade, onde o mataram. E então? Pereceram todos da estirpe de Davi e da tribo de Judá? Não. Pois, dentre eles alguns acreditaram, muitos milhares acreditaram, e isto após a ressurreição do Senhor. Enfureceram-se e crucificaram-no; depois começaram a ver os milagres realizados em nome do crucificado. Tremeram diante do poder de seu nome tanto mais quanto ele parecera, quando estava em suas mãos, nada poder. Arrependidos de coração, já acreditavam na divindade oculta daquele que haviam julgado semelhante aos demais homens, e pedindo conselho aos apóstolos, ouviram deles: “Convertei-vos, e seja cada um de vós batizado em nome de Jesus Cristo”, nosso Senhor (At 2,37.38). Por isto, uma vez que Cristo ressuscitou para julgar os que o crucificaram, e desviou sua face dos judeus, voltando-se para os gentios, roga de certo modo a Deus, por causa do resto de Israel, e diz-lhe: “Por amor de Davi, teu servo, não apartes a face de teu Cristo”. Se a palha é condenada, o trigo é recolhido no celeiro. “Um resto se salvará” (cf Is 10,21; Rm 9,27), diz Isaías. Sem dúvida, o resto se salvou; dele saíram os doze apóstolos, e mais de quinhentos irmãos, aos quais o Senhor apareceu depois da ressurreição (cf 1Cor 15,6); dele provêm tantos milhares que foram batizados, os que depositaram o preço de suas propriedades aos pés dos apóstolos (cf At 2,41; 4,34). Por conseguinte, cumpriu-se o que aqui, neste salmo, se pediu a Deus: “Por amor de Davi, teu servo, não apartes a face de teu Cristo”. | |
§ 18 | 11 “O Senhor jurou a Davi uma promessa, e não se arrependerá”. Que quer dizer: “jurou”? Promessa que confirmou por si mesmo. E que significa: “Não se arrependerá”? Não mudará. Deus não tem contrição, nem se engana, de sorte que queira corrigir um erro. Mas como o homem se arrepende quando quer mudar o que fez; assim se aqui se diz que Deus se arrepende, esperas uma mudança. Deus age de modo diferente do teu, embora se use o nome de arrependimento. Tu te arrependes, porque tinhas errado; ele, porém, porque vinga ou liberta. Tirou o reino de Saul, e foi dito que Deus se arrependeu. Mas no mesmo lugar em que a Escritura diz: Arrependeu-se, declara pouco depois: “Não é um homem para se arrepender” (1Rs 15,11.29). Quando, pois, muda suas obras segundo seu desígnio imutável, diz-se que ele se arrependeu por causa da mudança nas obras e não no seu desígnio. No salmo, porém, prometeu de tal maneira que não mudaria. De acordo com esta outra palavra: “Jurou o Senhor e não se arrependerá. Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec” (Sl 109,4). Assim também neste salmo prometeu de tal forma que não mudaria, porque necessariamente tal coisa aconteceria e permaneceria; disse: “O Senhor jurou a Davi uma promessa e não se arrependerá. Do fruto de tuas entranhas, eu porei em teu trono”. Poderia dizer: Do fruto de tua coxa. Por que preferiu: “Do fruto de tuas entranhas?” Se dissesse aquilo, seria verdade; mas é mais significativo dizer: “do fruto de tuas entranhas”, porque Cristo nasceu de uma virgem. | |
§ 19 | 12 E então? “O Senhor jurou a Davi uma promessa. Do fruto de tuas entranhas, eu porei em teu trono. Se teus filhos guardarem a minha aliança e os meus testemunhos que lhes ensinarei, também os seus filhos se sentarão no teu trono eternamente”. Se teus filhos guardarem, os filhos deles se sentarão no trono eternamente. Com razão, os pais obtem-no para os filhos. Que acontecerá se os filhos dele guardarem, e os filhos deles não guardarem? Por que se promete felicidade aos filhos devido aos méritos dos pais? Pois, por que disse o salmista: “Se teus filhos guardarem, também os seus filhos se sentarão no trono eternamente” (não disse: Se teus filhos guardarem, se sentarão no teu trono; e se os filhos deles guardarem, também eles se sentarão no teu trono; mas disse: “Se teus filhos guardarem, também os seus filhos se sentarão no teu trono”) senão porque deu a entender que filhos aqui significam seus frutos? “Se teus filhos guardarem a minha lei, e os mandamentos que lhes ensinarei”, teus filhos guardarem; “também os seus filhos se sentarão no teu trono”, isto é, será este o fruto que obterão, que eles se sentem no teu trono. Agora, irmãos, todos nós que trabalhamos em Cristo, todos os que tememos suas palavras, que agora de algum modo nos empenhamos em cumprir a sua vontade, e gememos pedindo que nos ajude a cumprir o que ele manda, acaso já nos sentamos naqueles tronos da bem-aventurança, que nos foi prometida? Não; mas cumprindo seus mandamentos esperamos que isso há de suceder. Sob o nome de filhos designa-se a própria esperança. A esperança do homem nesta vida são os filhos, os frutos são os filhos. Por isso, os homens quando querem se desculpar de sua avareza, dizem que guardam sua reserva para os filhos; e se não querem dar ao necessitado, desculpam-se sob o pretexto de amor aos filhos, porque seus filhos são a sua esperança. Pois, todos os que vivem segundo este mundo, dizem que sua esperança está em gerar filhos e deixá-los após si. Por isso, o salmista sob o nome de filhos designa a própria esperança, dizendo: “Se teus filhos guardarem a minha aliança, e os meus testemunhos que lhes ensinarei, também os seus filhos se sentarão no teu trono eternamente”, isto é, terão tais frutos: não os decepcionará a esperança de chegarem aonde esperam chegar. Agora, portanto, são como pais, homens de esperança a se realizar; ao alcançarem, porém, o que esperam, são filhos, porque através de boas obras geraram, deram à luz o que obtiveram. E isto lhes será reservado posteriormente, por-que os filhos costumam ser denominados posteridade. | |
§ 20 | Ou se interpretas que filhos são os próprios homens, entende que é referente a eles o versículo: “Se teus filhos guardarem a minha aliança e os meus testemunhos que lhes ensinarei”, de tal forma que seja este o sentido: “Se teus filhos guardarem a minha aliança e os meus testemunhos que lhes ensinarei, também os seus filhos”, isto é, se guardaram; aqui deves subdistinguir e em seguida concluir: “se sentarão no teu trono eternamente”, isto é, teus filhos e os filhos deles, mas todos eles, se guardarem. Que será, então, se não guardarem? A promessa de Deus falhará? Não; mas assim foi dito e prometido, porque Deus o previu; o que, se não que eles haveriam de acreditar? Mas para que ninguém usasse as promessas de Deus como ameaças, e tentasse tornar dependente de seu poder a realização das promessas de Deus, por isso disse: “jurou”. Mostra com isso que sem dúvida há de vir. Como, então, colocou a condição: “Se guardarem?” Para que não te glories das promessas, e deixes de guardar. Serás filho de Davi se guardares; se não, não serás filho de Davi, Deus fez a promessa aos filhos de Davi. Não digas: Sou filho de Davi, se degeneras. Se os judeus, que nasceram de sua estirpe, não o dizem ou antes, dizem, mas deliram. O Senhor declarou abertamente: “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão” (Jo 8,39). Com isso, negou que sejam filhos de Abraão, porque não praticavam as suas obras, como podemos nós, que não somos de sua raça segundo a carne, dizer-nos filhos de Davi? Resta que não sejamos seus filhos, a não ser que imitemos sua fé e adoremos a Deus, como ele adorou. Se, então, não podes esperar isso devido à raça, e não queres praticar as suas obras, como em ti se realizará a promessa de te sentares no trono de Davi? E se não se cumprir em ti, pensas que não se cumprirá? E como a encontrará nos campos do bosque? E como se deterão aí seus pés? De qualquer forma que fores, aquela casa ficará de pé. | |
§ 21 | 13 “Porque o Senhor escolheu Sião e a preferiu para sua morada”. Sião é a Igreja, aquela Jerusalém cuja paz queremos alcançar e que é peregrina, não quanto aos anjos, mas quanto a nós, e que espera ter parte no melhor da herança. Desta Jerusalém vêm-nos as cartas que cotidianamente são lidas. É a cidade, a Sião que o Senhor preferiu. | |
§ 22 | 14 “Este é o lugar de meu repouso pelos séculos dos séculos”. São palavras de Deus, “Meu repouso”: ali des-canço. Quanto Deus nos ama, irmãos! Diz que descansa quando descansamos nós! Ora, ele não fica por vezes aflito e depois repousa; mas diz que repousa porque nele temos nós repouso. “Aqui habitarei porque o escolhi”. | |
§ 23 | 15 “Abençoarei largamente a sua viúva e fartarei de pão os seus pobres”. É viúva toda alma que compreende estar privada de todo auxílio, exceto do auxílio de Deus. Como o Apóstolo descreve a viúva? “Aquela que é verdadeiramente viúva, que permaneceu sozinha, põe a confiança em Deus”. Trata-se daquelas que a Igreja denomina viúvas. Havia dito: “A viúva que só busca prazer, mesmo se vive, já está morta”, e não a enumerou entre as viúvas. Descrevendo as viúvas santas, o que diz? “Aquela que é verdadeiramente viúva, que permaneceu sozinha, põe a sua confiança em Deus e persevera em súplicas e orações dia e noite”. E acrescenta: “A que só busca prazer, mesmo se vive, já está morta (1 Tm 5,5.6). Que é, então, que constitui uma viúva? Não ter outro auxílio senão o que vem de Deus. Aquelas que têm marido, de certo modo se orgulham do auxílio que deles recebem; as viúvas parecem abandonadas, no entanto o auxílio que recebem é maior. Por conseguinte, a Igreja inteira constitui uma só viúva, quer nos homens, quer nas mulheres, ou nos casados e nas casadas, ou nos adolescentes, ou nos velhos, ou nas virgens; a Igreja toda é uma só viúva, sozinha neste mundo, se o percebe, se conhece sua viuvez; então lhe advém o auxílio pronto. Não reconheceis, meus irmãos, a viúva do evangelho, quando o Senhor disse que importa orar sempre, sem jamais esmorecer? “Havia numa cidade um juiz que não temia a Deus e não tinha consideração para com os homens. Nesta mesma cidade, existia uma viúva que vinha a ele todos os dias, dizendo: Faz-me justiça contra o meu adversário”. E a viúva interpelando-o cotidianamente, dobrou-o. “Disse o juiz, que não temia a Deus e não tinha consideração para com os homens, pensando consigo mesmo: Embora eu não tema a Deus, nem respeite os homens, como esta viúva está me dando fastio, vou fazer-lhe justiça” (Lc 18,1-8). Se o juiz iníquo atendeu à viúva, para se livrar do fastio, Deus não ouvirá a Igreja, a quem exorta a que suplique? | |
§ 24 | Ainda: “Fartarei de pão os seus pobres”. Que significa isto, irmãos? Sejamos pobres e então seremos saciados. Muitos que presumem do mundo e são soberbos, são cristãos; adoram a Cristo, mas não são saciados. Pois estão saturados e fartos de soberba. Destes diz um salmo: “O opróbrio dos que vivem na abundância e o desprezo dos soberbos” (Sl 122,4). Estes têm em abundância; por isso, comem, mas não são saciados. Que diz deles outro salmo? “Comeram e adoraram todos os poderosos da terra” (Sl 21,30). Adoram a Cristo, veneram a Cristo, suplicam a Cristo; mas não se saciam de sua sabedoria e justiça. Por quê? Porque não são pobres. Os pobres, porém, isto é, os humildes de coração, quanto mais fome têm, mais comem; e tanto mais estão famintos quanto desprovidos neste mundo. Quem está na fartura, seja o que for que lhe deres, há de recusar, porque está farto. Apresenta-me um faminto, apresenta-me um daqueles dos quais foi dito: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6); e serão do número daqueles pobres aqui mencionados: “E fartarei de pão os seus pobres”. Pois, naquele salmo onde está escrito: “Comeram e adoraram todos os poderosos da terra” encontra-se também a respeito dos pobres sentença inteiramente igual à que está neste salmo: “Os pobres hão de comer e saciar-se. Louvarão o Senhor aqueles que o procuram” (Sl 21,30.27). Lá foi dito: “Comeram e adoraram todos os poderosos da terra e também: Os pobres hão de comer e saciar-se”. Por que motivo se diz que os poderosos adoraram e não que foram saciados; e quando se fala dos pobres, diz-se que foram saciados? De que foram saciados? Que saciedade é esta, irmãos? Deus é pão. O pão, a fim de se tornar leite para nós, desceu à terra; e disse aos seus: “Eu sou o pão vivo, descido do céu” (Jo 6,41). Por isso, se acha naquele salmo: “Os pobres hão de comer e saciar-se”. De que se saciarão? Escuta como prossegue o salmo: “Louvarão o Senhor aqueles que o procuram”. | |
§ 25 | Sede pobres, portanto, sede dos membros daquela viúva. Somente Deus seja vosso auxílio. O dinheiro nada vale; não é dele que vos virá o auxílio. Muitos por causa do dinheiro se precipitaram no abismo, muitos pereceram por causa dele; muitos devido à quantidade de dinheiro que tinham foram atingidos pelos ladrões; estariam em segurança se não tivessem o que eles procurassem. Muitos presumiram de seus amigos poderosos; caíram aqueles em quem confiavam e envolveram na queda também aqueles que deles presumiram. Considerai os exemplos do gênero humano. Que há de extraordinário no que vos dizemos? Não falamos apenas do que se encontra nas Escrituras; podeis ler essas coisas por toda a terra. Cuidai de não presumir do dinheiro, de um homem amigo, de honras e vaidades do mundo. Tira tudo isso; mas se os possuis, dá graças a Deus se o desprezas. Se, porém, com isso, te inchas de orgulho, não consideres quando serás presa dos homens; já és presa do diabo. Se, porém, não presumires dessas coisas, serás dos membros daquela viúva, a Igreja, da qual foi dito: “Abençoarei largamente a sua viúva”. Serás também o pobre, daqueles mencionados no salmo: “E fartarei de pão os seus pobres”. | |
§ 26 | Às vezes, contudo, o que não devo omitir, encontrarás um pobre soberbo, e um rico humilde; diariamente suportamos tais homens. Ouves um pobre a gemer sob o poder de um rico, e quando um rico mais poderoso o oprime, então vês que tem uma atitude humilde; às vezes, nem então, mas ainda é soberbo; daí conclues o que seria se tivesse alguma coisa. Por conseguinte, o pobre segundo Deus é pobre pelo espírito, e não conforme a bolsa. Aparece por vezes alguém que tem uma casa completa, terras férteis, muitas propriedades, muito ouro e prata e ele sabe que dessas coisas não há de presumir; humilha-se diante de Deus e faz bem; assim seu coração se ergue para Deus, e sabe que as riquezas não somente em nada lhe são proveitosas, mas ainda impedem seus passos, a não ser que o Senhor domine e ajude. Ele é contado entre os pobres que se saciam de pães. Encontras outro, mendigo orgulhoso, ou antes não inchado de orgulho porque nada tem, entretanto procurando obter o que o fará soberbo. Deus não olha o que tem, mas sua cupidez; e julga-o segundo a ambição que tem de bens temporais, e não segundo as riquezas que ele não consegue obter. Daí exortar o Apóstolo aos ricos: “Aos ricos deste mundo, exorta-os que não sejam orgulhosos, nem ponham sua esperança na instabilidade das riquezas, mas em Deus vivo, que nos provê tudo com abundância, para que nos alegremos”. Que, então, devem fazer de suas riquezas? Continua: “Enriqueçam-se com boas obras, sejam pródigos, capazes de partilhar”. E vê que eles na terra são pobres: “Estão assim acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro, a fim de obterem a verdadeira vida” (1 Tm 6,17-19). Quando obtiverem, então serão ricos. Enquanto, porém, não as possuem, saibam que são pobres. Assim, todos os humildes de coração, estabelecidos na prá-tica da dupla caridade, tenham o que tiverem neste mundo, Deus os enumera entre seus pobres, que se saciam de pães. | |
§ 27 | 16.17 “Revestirei de salvação os seus sacerdotes e seus santos exultarão de alegria”. Já estamos no final do salmo. V. Caridade dê-me ainda um pouco de atenção. “Revestirei de salvação os seus sacerdotes e seus santos exultarão de alegria”. Quem é nossa salvação senão Cristo nosso Senhor? Que quer dizer, então? “Revestirei de salvação os seus sacerdotes? Todos vós, que fostes batizados em Cristo vos vestistes de Cristo” (Gl 3,27). “E seus santos exultarão de alegria”. Por que “exultarão de alegria?” Porque revestidos de salvação, mas não por si mesmos. Tornaram-se, de fato, luz, mas no Senhor; pois, antes eram trevas (Ef, 5,8). E por isso acrescenta o salmista: “Aí suscitarei o chifre de Davi”, para que se conte com Cristo. Ele será a exaltação de Davi. Chifre significa exaltação. Qual? Não a carnal. Pois, todos os ossos estão protegidos pela carne. O chifre é uma excrescência na carne. A exaltação espiritual é representada pelo chifre. Qual a elevação espiritual, a não ser contar com Cristo. E não afirmar: Eu faço, eu batizo, e sim: “Ele é que batiza”? (Jo 1,33). Aí está o chifre de Davi. Para saberdes que aí se acha o chifre de Davi, notai como continua o salmo: “Preparei uma lâmpada para meu Cristo”. Que lâmpada? Já conheceis as palavras do Senhor acerca de João: “Ele foi o facho que arde e ilumina” (Jo 5,35). E, ao invés, como se exprime João? “Ele é que batiza”. Assim é que exultarão os santos, assim exultarão os sacerdotes; pois tudo de bom neles, não provém deles mesmos, mas daquele que tem o poder de batizar. Com segurança, portanto, aproxima-se de seu templo todo aquele que recebeu o batismo. Este não deriva de um homem e sim daquele que suscitou o chifre de Davi. | |
§ 28 | 18 “Sobre ele, porém, florescerá a minha santificação”. Sobre quem? Sobre meu Cristo. “Meu Cristo” — é a voz do Pai, que diz: “Abençoarei largamente a sua viúva, e fartarei de pão os seus pobres. Revestirei de salvação os seus sacerdotes e os seus santos exultarão de alegria”. É Deus quem fala: “Aí suscitarei o chifre de Davi”. Ele mesmo declara: “Preparei uma lâmpada para meu Cristo”, porque Cristo é nosso e Cristo é do Pai. Cristo é nosso, ao nos salvar e nos governar, assim como é nosso Senhor; mas é Filho do Pai. Enquanto Cristo, é nosso e do Pai. Pois, se Cristo não fosse do Pai, não teria sido declarado mais acima: “Por amor de Davi, teu servo, não apartes a face de teu Cristo. Sobre ele, porém, florescerá a minha santificação”. Florescerá sobre Cristo. Ninguém a assuma para si, porque é ele próprio quem santifica; de outra forma não seria exata a afirmação: “Sobre ele, porém, florescerá a minha santificação”. A glória da santificação florescerá. Por conseguinte, a santificação de Cristo está no próprio Cristo, o poder de santificação de Deus acha-se em Cristo. “Florescerá” refere-se à glória. As árvores são belas quando florescem. A santificação acha-se no batismo; ali floresce e brilha. Por que reconhece o mundo tal beleza? Porque floresce em Cristo. Se a colocas em poder de um homem, como há de florescer, se toda carne é feno, e toda a sua graça como a flor do feno? (Is 40,6). 1 Os Maurinos julgaram tratar-se do bispo Severo de Mileve, cf Com. s/sl 95,1 e 5. | |