ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 129 | ||
§ 129:1 | ʛ Gravemente me angustiaram desde a minha mocidade, diga agora Israel; | |
§ 129:2 | ɠ gravemente me angustiaram desde a minha mocidade, todavia não prevaleceram contra mim. | |
§ 129:3 | Ꝋ Os lavradores araram sobre as minhas costas; compridos fizeram os seus sulcos. | |
§ 129:4 | Ꝋ O Senhor é justo; ele corta as cordas dos ímpios. | |
§ 129:5 | ᶊ Sejam envergonhados e repelidos para trás todos os que odeiam a Sião. | |
§ 129:6 | ᶊ Sejam como a erva dos telhados, que seca antes de florescer; | |
§ 129:7 | ɔ com a qual o segador não enche a mão, nem o regaço o que ata os feixes; | |
§ 129:8 | ɲ nem dizem os que passam: A bênção do Senhor seja sobre vós; nós vos abençoamos em nome do Senhor. | |
O SALMO 129 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1.3 Presumimos que estais vigilantes, não somente com os olhos corporais abertos, mas ainda de coração; por isso, devemos cantar com inteligência: “Das profundezas clamei a ti, Senhor, Senhor, escuta a minha voz”. De fato, esta voz é de alguém que sobe, e pertence aos cânticos graduais. Por esta razão, veja cada um de nós as profun-dezas onde se encontra, e de lá clame ao Senhor. Jonas clamou das profundezas, do ventre da baleia. Achava-se não somente debaixo das ondas, mas ainda nas vísceras da baleia; todavia, nem aquele corpo, nem aquelas ondas, impediram que sua oração chegasse até Deus, e o ventre do animal não pôde reter a voz do suplicante. Penetrou tudo, rompeu todos os obstáculos, chegou aos ouvidos de Deus. Se, no entanto, se pode dizer que atravessando tudo chegou aos ouvidos de Deus, quando os ouvidos de Deus já estavam atentos ao coração daquele que rezava. Qual a voz fiel que não tem Deus presente? Todavia, também nós devemos entender de quais profundezas havemos de clamar ao Senhor. Profundezas para nós constitui nossa vida mortal. Todo aquele que entende encontrar-se nas profundezas, clama, geme, suspira, até ser arrancado das profundezas, e chegar àquele que está sentado acima de todos os abismos, sobre os querubins, acima de tudo que ele criou, não somente os seres corporais, mas também os espirituais. Até a alma, alcançar a Deus até que ele liberte a sua imagem, o homem, imagem apagada e varrida por assíduas ondas nessas profundezas e até que seja renovada e restaurada por Deus, que a imprimiu quando formou o homem (este pôde ser capaz de cair, mas não é capaz de se ressuscitar), este acha-se sempre nas profundezas. Se não for libertado, conforme disse, estará sempre nas profundezas. Mas ao clamar dessas profundezas, ergue-se de lá e o próprio clamor não o deixa ficar muito no fundo. Estão mergulhados nas profundezas os que de lá nem ao menos clamam. Diz a Escritura: “O pecador, chegando ao profundo dos males, despreza” (cf Pr 18,3). Já podeis notar, irmãos, quais são essas profundezas, lá onde se despreza a Deus. Quando alguém percebe que está acabrunhado de pecados cotidianos e oprimido por um acervo e uma grande quantidade de iniqüidades, se lhe for dito que reze a Deus, ele zomba. De que modo? Em primeiro lugar, responde: Se os crimes desagradassem a Deus, eu estaria vivo? Se Deus se preocupasse com os eventos humanos, diante de tantos crimes que pratiquei, não só ainda estaria vivo, mas gozaria de tal bem-estar? Isto costuma suceder aos que estão mergulhados nas profundezas, e prosperam no meio de seus pecados; e tanto mais submergem quanto mais se julgam felizes. Uma felicidade falaz é a maior infelicidade. Em seguida, costumam dizer: Uma vez que já cometi muitos pecados e minha condenação é iminente, perco se não faço tudo o que posso; e: Estou perdido, porque não faço tudo o que posso? Deste modo costumam os ladrões dizer, quando desesperados: O juiz há de me matar por dez homicídios, da mesma forma que por cinco, ou por um só; por que não hei de fazer tudo que me ocorrer? É isto o que significa: “O pecador, chegando ao profundo dos males, despreza”. Mas nosso Senhor Jesus Cristo que não desprezou nem mesmo as nossas profundezas, que se dignou vir a esta vida, prometendo a remissão de todos os pecados, estimulou o homem, mesmo o que estava nas profundezas, a clamar destas profundezas, sob o grande peso dos pecados, e fez com que a voz do pecador chegasse até Deus. De onde clamava ele, senão das pro-fundezas de seus males? | |
§ 2 | E observai como a voz do pecador clama do fundo do abismo: “Das profundezas clamei a ti, Senhor; Senhor, escuta a minha voz. Teus ouvidos estejam atentos ao clamor de minha súplica”. De onde clama? Das profundezas. Quem é, então, que clama? O pecador. Qual a esperança que o leva a clamar? Porque o Senhor que veio perdoar os pecados, deu esperança até ao pecador mergulhado nas profundezas. E como prossegue o salmista depois destas palavras? “Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, quem, Senhor, poderá subsistir?” Eis que ele revela de que profundezas clamava. Pois, clama sob o peso e as vagas de suas iniqüidades. Examina-se, examina sua vida; verifica que está de todos os lados coberta de delitos e crimes. Para qualquer lado que volte o olhar, descobre que em si não há bem algum, nada da serenidade da justiça lhe ocorre. E vendo de todas as partes tão grandes e tantos pecados e a multidão de seus crimes, apavorado exclamou: “Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, quem, Senhor, poderá subsistir?” Não disse: Eu não subsistirei; mas: “quem poderá subsistir?” Constata que quase todas as vidas humanas estão cercadas do tropel de seus pecados, todas as consciências são acusadas por seus próprios pensamentos e que não existe coração casto a presumir de sua própria justiça. Se, portanto, não se encontra coração casto que presuma de sua justiça, presumam todos os corações da misericórdia de Deus e digam: “Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, quem, Senhor, poderá subsistir?” | |
§ 3 | 4.6 Mas, por que há esperança? “Mas em ti se encontra a propiciação. E que propiciação é esta, senão o sacrifício? E qual o sacrifício, senão o que foi oferecido por nós? O sangue inocente que foi derramado apagou todos os pecados dos malvados; foi pago um preço tão grande que remiu todos os cativos das mãos do inimigo que os prendera. Portanto, “em ti se encontra a propiciação”. Se em ti não se encontrasse a propiciação, se quisesses ser apenas juiz, sem misericórdia, observasses todas as nossas iniqüidades e as procurasses, quem subsistiria? Quem compareceria diante de ti, dizendo: Sou inocente? Quem subsistiria em teu juízo? Por conseguinte, só existe uma esperança: “Mas em ti se encontra a propiciação. Por amor de tua lei, eu te sustive, Senhor”. Qual lei? A que fez réus? Aos judeus foi dada uma lei santa, justa, boa; mas pôde torná-los réus. Não foi dada uma lei que pudesse vivificar, e sim que revelasse ao pecador seus pecados (cf Rm 7,12; Gl 3,21). O pecador estava esquecido de si mesmo, não se via; foi-lhe dada uma lei para que se visse. A lei fez réus, o Legislador libertou. Pois o Legislador é também o Imperador. Foi dada uma lei que atemorizasse e obrigasse sob pena de culpa; e a lei não libertou dos pecados, mas os demonstrou. Talvez o salmista, estando sob a lei, notou nas profundezas quanto pecou contra a lei, e por isso exclamou: “Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, quem, Senhor, poderá subsistir?” Existe, portanto, uma lei da misericórdia de Deus, lei da propiciação de Deus. Aquela, primeira, foi a lei do temor, mas existe outra lei, a da caridade. A lei da caridade perdoa os pecados, apaga os delitos passados, adverte do perigo dos futuros. Não abandona o parceiro da viagem, torna-se companheiro daquele que conduz pelo caminho. Mas deves concordar com o adversário, enquanto estás com ele no caminho (cf Mt 5,25). A palavra de Deus, de fato, é teu adversário, enquanto não concordares com ela. Concordas, porém, quando começas a te deleitar na prática daquilo que ordena a palavra de Deus. O adversário já se torna amigo: então, no fim do caminho, não te entregará ao juiz. Portanto, “por amor de tua lei, eu te sustive, Senhor”, porque tu te dignaste trazer-me uma lei de misericórdia, perdoar todos os meus pecados, dar-me além disso advertências para não te ofender; e se hesitar diante destes avisos, deste-me remédio, o de te suplicar: “Perdoa as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6,12). Estabeleceste por lei que eu seja perdoado da mesma forma que eu perdoar. “Por amor” desta “tua lei, eu te sustive, Senhor”. Esperei que viesses e me libertasses de todas as necessidades, porque nesta situação não abandonaste a lei da misericórdia. | |
§ 4 | Escuta a que lei o salmo se refere, se ainda não entendeste que agora se trata da lei da caridade; ouve o Apóstolo: “Carregai o peso uns dos outros e assim cum-prireis a lei de Cristo” (Gl 6,2). Quais são os que carregam os fardos dos outros, a não ser os que têm a caridade? Os que não têm a caridade, sentem o próprio peso; os que a têm carregam-se mutuamente. Alguém te lesou e te pede perdão; se não perdoas, não carregas o peso de teu irmão; se perdoas, carregas aquele que é fraco. E se acaso alguma enfermidade te atacar, enquanto és homem, deve teu irmão te carregar, como tu o carregaste. Escuta as palavras que precederam o trecho acima: “Caso alguém seja apanhado em falta, vós, os espirituais, corrigi esse tal com espírito de mansidão” (Gl 6,1). E logo acrescenta, visto que ele admoestara espirituais a não se sentirem seguros: “Cuidando de ti mesmo, para que também tu não sejas tentado”. Em seguida, vês as palavras que citei: “Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo”. Daí dizer também: “Por amor de tua lei, eu te sustive, Senhor”. Narra-se que os cervos, quando atravessam as águas, em direção às ilhas próximas, à busca de pastagens, apoiam a cabeça uns nos outros; somente um que está à frente deles, sustenta a própria cabeça, sem apoiá-la em outro; mas quando ele se cansa, sai da frente e fica no último lugar, a fim de descansar apoiado em outro; e assim todos carregam o peso dos outros e chegam aonde desejam; e não naufragam, porque a caridade lhes serve de navio. Portanto, a caridade carrega os fardos; mas não tenha medo de ser esmagada por tal peso; cuide cada qual de não ser oprimido por seus próprios pecados. Pois, quando carregas as fraquezas de teu irmão, os pecados dele não te oprimem. Com efeito, se consentes nos pecados dele, oprimem-te os pecados que se tornam teus, e já não são dele. Todo aquele que concorda com um pecador, fica onerado com os pecados seus, não com os dele. Concordares com o pecado de outrem, torna-se pecado teu; e não te queixes de que os pecados alheios te oneram. Poder-se-á te dizer: Oprimem-te, mas os teus pecados. “Se vias um ladrão, corrias com ele” (cf Sl 49,18). Que significa isto? Andaste com teus pés para praticar um furto; ou antes, tu te uniste de ânimo a um ladrão e o furto que era ato somente dele, se tornou também teu, porque o aprovaste. Se te desagradou, porém, e rezaste por ele, e a seu pedido lhe concedeste o perdão, de tal sorte que possas de fronte erguida repetir a oração que o celeste jurisperito te ditou: “Perdoa as nossas dívidas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6,12), aprendeste a carregar o fardo de teu irmão e então outro carregará o que talvez tiveres e acontecerá convosco o que disse o Apóstolo: “Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2). E assim cantarás com segurança o que agora disse o salmo: “Por amor de tua lei, eu te sustive, Senhor”. | |
§ 5 | Quem não observa esta lei, não carrega o Senhor; nem se quiser carregar, não tem motivo para isto, é em vão que o suporta. Pois, o Senhor há de vir, e descobrirá teus pecados; não achará que viveste em perfeita justiça. Talvez não encontre em ti homicídios (pois é um pecado mais grave, muito maior); não encontrará adultério, nem furto, nem rapina, nem malefícios, nem idolatria. Nada disso encontrará em ti. Então, nada achará? Escuta a palavra do evangelho: “Aquele que chamar a seu irmão: Cretino!” (Mt 5,22). Quem evita estas faltas miúdas da língua? Mas talvez dizes: São pequenas. Diz o Senhor: “Terá de responder ao julgamento da geena de fogo”. Se te parecia pequena falta, ou insignificante, dizer ao irmão: “Cretino!” que, pelo menos, te pareça grande a geena de fogo; se desprezas um pecado como sendo pequeno, que ao menos a gravidade do castigo te atemorize. Mas replicas: São faltas menores, são minúsculas, e sem elas não decorre a vida. Ajunta miudezas e se tornarão um montão. Pois também os grãos são diminutos e no entanto constituem uma massa; as gotas são pequeninas e enchem os rios, arrastam volumes. Por isso, o salmista considerando quantas faltas pequenas comete o homem diariamente, se não por outro modo a não ser por pensamentos e palavras, percebe a sua quantidade; e se nota como são pequenas, verifica que muitas coisas insignificantes formam um montão; e não mais cogitando acerca de seus pecados passados, mas considerando a própria fragilidade humana, clama enquanto sobe: “Das profundezas clamei a ti, Senhor, escuta a minha voz. Teus ouvidos estejam atentos ao clamor de minha súplica. Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, quem, Senhor, poderá subsistir?” Podem-se evitar os homicídios, os adultérios, as rapinas, os perjúrios, os malefícios, a idolatria; acaso também os pecados por palavras? Ou os pecados do íntimo do coração? Está escrito: “O pecado é a iniqüidade” (1Jo 3,4). “Quem, portanto, poderá subsistir, se observares, Senhor as nossas iniqüidades?” Se quiseres agir para conosco como severo juiz e não enquanto pai misericordioso, quem ficará de pé diante de teus olhos? “Mas em ti se encontra a propiciação. Por amor de tua lei, eu te sustive, Senhor”. Que lei é esta? “Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2). Quais os que carregam mutuamente os seus fardos? Os que rezam com fé: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6,12). | |
§ 6 | “Minha alma esperou em tua palavra”. Só espera quem ainda não recebeu o objeto da promessa. Pois quem já recebeu, como há de esperar? Recebemos a remissão dos pecados, mas foi-nos prometido o reino dos céus; nossas ofensas foram perdoadas, mas nossa recompensa será no futuro; recebemos o perdão, mas ainda não possuímos a vida eterna. Quem deu o perdão, contudo, é o mesmo que prometeu a vida eterna. Se fosse palavra humana, devíamos ter receios, mas como se trata da palavra de Deus, esta não falha. Por conseguinte, esperamos com confiança a realização de sua palavra que não pode falhar. “Desde a vigília matutina até a noite a minha alma esperou no Senhor”. Que sentido tem esta frase? Esperou no Senhor durante um só dia, e terminou toda a sua esperança? “Desde a vigília matutina até a noite, esperou no Senhor”. Esta vigília matutina é o fim da noite; daí: “até a noite a minha alma esperou no Senhor”. Portanto, devemos compreender e não pensar que só durante um dia devemos esperar no Senhor: “Da vigília matutina até a noite”. Que pensais disso, irmãos? É o seguinte: “Desde a vigília matutina até a noite, a minha alma esperou no Senhor”, porque o Senhor que nos perdoou os pecados, na vigília matutina ressuscitou dos mortos, a fim de esperarmos que futuramente nos sucederá o que aconteceu primeiro ao Senhor. Pois, já foram perdoados nossos pecados, mas ainda não ressuscitamos. Se ainda não ressuscitamos, ainda não se realizou em nós o que aconteceu primeiro à nossa Cabeça. Que sucedeu primeiro a nossa Cabeça? A carne de nossa Cabeça ressuscitou: por acaso morreu seu espírito? Mas a parte que morreu, ressuscitou. Ressurgiu ao terceiro dia; de certa maneira assim nos falou o Senhor: O que vistes em mim, esperai para vós, isto é, uma vez que ressuscitei, vós também ressurgireis. | |
§ 7 | Mas existem alguns que dizem: De fato, o Senhor ressuscitou; então, por isso, devo esperar que poderá também ressuscitar-me? Sim; por isso. O Senhor ressuscitou a carne que recebeu de tua natureza. Pois, não resurgiria se não tivesse morrido, e não teria morrido se não possuísse carne. Que recebeu de tua natureza o Senhor? A carne. Quem veio? O Verbo de Deus, que existia antes de todas as coisas e pela qual tudo foi feito. Mas para receber de ti alguma coisa, o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (cf Jo 1,3.14). Recebeu de ti, o que havia de ofe-recer por ti, do mesmo modo que o sacerdote recebe de ti a vítima que por ti há de oferecer, quando queres aplacar a Deus, devido a teus pecados. Já aconteceu isto, assim se fez. Nosso sacerdote recebeu de nós o que havia de ofe-recer por nós. Pois recebeu de nós o corpo; com este corpo tornou-se vítima, fez-se holocausto, fez-se sacrifício. Na paixão realizou-se o sacrifício; na ressurreição restaurou o que fora morto, e entregou-o a Deus, como primícias tuas e te disse: Tudo o que é teu já foi consagrado, quando tais primícias do que era teu foram oferecidas a Deus; espera, portanto, que se realize em ti no futuro o que precedeu em tuas primícias. | |
§ 8 | Por conseguinte, uma vez que ele ressuscitou na vigília matutina, nossa alma começou a esperar também isso. E até quando? “Até a noite”, até que morramos. Pois, nossa morte carnal é uma espécie de sono. Começaste a esperar desde que o Senhor ressuscitou; não desanimes de esperar até que saias desta vida. Pois, se não esperares até a noite, apagar-se-á tudo o que esperavas. Há alguns que começam a esperar, mas não perseveram até a noite. Começam a sofrer algumas tribulações, começam a suportar tentações, vêem os maus e iníquos gozarem de felicidade temporal; e como esperar obter do Senhor esses dons, para serem felizes na terra, observam os que cometeram crimes e que possuem aquilo mesmo que eles ambicionavam ter; e seus pés resvalam e desistem de esperar. Por quê? Porque não começaram a esperar desde a vigília matutina. Ao invés, esperavam que, se fossem cristãos receberiam do Senhor uma casa repleta de trigo, vinho, óleo, prata, ouro; ninguém ali morreria cedo; quem não tivesse filhos, haveria de tê-los; os que não eram casados, haveriam de se casar; não somente a esposa, mas nem mesmo os animais em sua casa haveriam de abortar; seu vinho não fermentaria, não caíria granizo em sua vinha. Os que esperavam obter essas coisas do Senhor, notam que as têm em abundância os que não adoram o Senhor e seus pés resvalam (cf Sl 72,2.3); não esperaram até a noite, porque não começaram a esperar desde a vigília matutina. | |
§ 9 | Quem, então começa a esperar desde a vigília matutina? Quem espera obter do Senhor o que ele começou a mostrar da vigília matutina em que ressuscitou. Pois, antes dele ninguém ressuscitara para viver para sempre. V. Caridade, preste atenção. Ressuscitaram alguns mortos antes da vinda do Senhor; pois, tanto Elias quanto Eliseu ressuscitaram mortos, mas ressuscitaram para morrer de novo (cf 1Rs 17,22; 2Rs 4,35). Os que o Senhor ressuscitou, ressurgiram para morrer novamente. Quer o filho da viúva (cf Lc 7,15), quer a menina de doze anos, filha do chefe da sinagoga (cf Lc 8,55), quer Lázaro (cf Jo 11,14) foram ressuscitados de maneira diferente, pois todos haveriam de morrer novamente; nasceram uma só vez, mas morreram duas. Somente o Senhor ressuscitou para não mais morrer. Quando foi que o Senhor ressuscitou para não mais morrer? “Desde a vigília matutina”. Também tu, espera isto do Senhor; ele há de te ressuscitar, não da maneira que Lázaro ressuscitou, nem como o filho da viúva e a filha do chefe da sinagoga ressuscitaram, nem como ressurgiram os antigos profetas; mas espera que hás de ressuscitar da mesma forma que o Senhor, de sorte que depois da ressurreição por que passarás, não terás mais medo de ter de morrer; e começaste a esperar desde a vigília matutina. | |
§ 10 | Espera, contudo, até a noite, até que termine a vida presente, até que seja noite para todo o gênero humano no ocaso destes séculos. Por que até então? Porque depois desta noite já não haverá esperança, mas será a própria realidade. Diz o Apóstolo: “Ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,24.25). Se, portanto, devemos aguardar pacientemente o que não vemos, esperemos até a noite, isto é, até o fim desta nossa vida ou o do mundo. Tendo passado esta noite, virá o que esperávamos; e já não esperaremos, sem contudo estarmos desesperados. Pois, são censuráveis os desesperançados. Às vezes, detestamos alguém e dizemos: Ele não tem esperança. Não é sempre um mal-estar sem esperança. Mas enquanto estamos nesta vida, é um mal não ter esperança; pois os que agora não têm esperança, não possuirão depois a realidade. Por conseguinte, agora devemos ter esperança. Mas ao chegar a realidade, acaso haverá esperança? “Acaso alguém espera o que vê?” Virá o Senhor nosso Deus, primeiro revelando-se ao gênero humano na forma em que foi crucificado e ressuscitou, a fim de que vejam piedosos e ímpios. Uns verão, congratulando-se de ter encontrado aquele em quem acreditaram antes de vê-lo; outros se envergonharão por não terem crido naquele que hão de ver. Os que se envergonharem serão condenados e os que se alegrarem serão coroados. Dir-se-á aos que estarão confundidos: “Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos: e aos que estarão felizes: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,41.34). Quando eles o tiverem recebido, terá acabado a esperança, porque já possuirão o objeto da mesma. Uma vez terminada a esperança, passará aquela noite; mas até que isso aconteça, espere no Senhor a nossa alma desde a vigília matutina. | |
§ 11 | E repete a expressão: “Desde a vigília matutina espere Israel no Senhor. Desde a vigília matutina até a noite, a minha alma esperou no Senhor”. Mas, o que esperou? “Desde a vigília matutina espere Israel no Senhor”. Não somente “espere Israel no Senhor, mas desde a vigília matutina espere Israel”. Portanto, estou censurando uma esperança que queira obter de Deus bens mundanos? Não; mas a esperança peculiar a Israel é outra. Não espere Israel qual bem supremo para si as riquezas, a saúde corporal, a fartura de bens terrenos; ao contrário terá de sofrer na terra tribulação, quando lhe advierem aflições por causa da verdade. Não se pode dizer que os mártires não tivessem esperado em Deus; contudo, sofreram o que sofrem os ladrões, os iníquos: lançados às feras, queimados na fogueira, feridos pela espada, rasgados com as unhas de ferro, presos às cadeias, mortos no cárcere; tudo isso padeceram e não esperavam no Senhor? Ou esperavam, a fim de isentos de todos esses males, gozarem da vida presente? Certamente não; porque esperavam desde a vigília matutina. Que significa isto? Consideravam a vigília matutina em que seu Senhor ressuscitou, e viam que antes de ressuscitar, também ele sofreu o mesmo que eles, e não perdiam a esperança de que igualmente após esses sofrimentos eles deviam ressuscitar para a vida eterna. “Desde a vigília matutina até a noite, esperou Israel no Senhor”. | |
§ 12 | 7.8 “Porque no Senhor se acha a misericórdia e nele é copiosa a redenção”. Magnífico! Não se poderia encontrar melhor expressão neste lugar, por causa das palavras do salmo: “Desde a vigília matutina, espere Israel no Senhor”. Por quê? Porque desde a vigília matutina, o Senhor ressuscitou; espere o corpo o mesmo que primeiro aconteceu à Cabeça. Mas não se insinue este pensamento: A Cabeça pôde ressuscitar porque não estava onerada de pecados, não tinha pecado; e nós? Havemos de esperar tal ressurreição qual a que primeiro adveio ao Senhor, estando carregados de nossos pecados? Mas vê o que segue: “Porque no Senhor se acha a misericórdia e nele é copiosa a redenção. E ele há de resgatar Israel de todas as suas iniqüidades”. Por isso, se Israel sentia-se oprimido por seus pecados, assistiu-o a misericórdia de Deus. Por essa razão, precedeu-vos aquele que não tinha pecado, a fim de apagar os pecados de seus seguidores. Não tenhais presunção de vossas forças, mas presumi por causa da vigília matutina. Vede que vossa Cabeça ressuscitou e subiu ao céu. Nele não havia culpa; mas ele apaga as vossas: “E ele há de resgatar Israel de todas as suas iniqüidades”. De fato, Israel pôde vender-se, ser vendido por causa do pecado; mas redimir-se de suas iniqüidades não lhe é possível. Pôde resgatar aquele que não pôde vender-se. É redentor dos cativos do pecado aquele que não cometeu pecado. “Ele há de resgatar Israel”. De que resgatará? Desta ou daquela iniqüidade? “De todas as suas iniqüidades”. Quando alguém tenciona aproximar-se de Deus, não tenha receio por causa de alguns de seus pecados; somente aproxime-se de todo o coração, e desista de fazer o que antes fazia; não diga: Tal pecado não me será perdoado. Pois, se assim se exprimir, não se converte por causa do pecado que pensa não lhe será perdoado, e cometendo outros, não lhe serão perdoados aqueles de que não tinha receio. Diz: Uma vez que cometi grave pecado, que não me pode ser perdoado, cometerei os outros; pois perco o que não faço. Não tenhas medo: estás nas profundezas, não deixes de clamar pelo Senhor das profundezas: “Se observares, Senhor, as nossas iniqüidades, Senhor, quem poderá subsistir?” Observa-o, espera nele, e suporta, por causa de sua lei. Que lei ele te deu? “Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Tem confiança de que hás de ressuscitar, e então estarás livre de todo pecado, porque ressuscitou aquele que foi o primeiro a não ter pecado. Espera desde a vigília matutina. Não digas: Não sou digno por causa de meus pecados. Não és digno: mas “nele é copiosa a redenção, e ele há de resgatar Israel de todas as suas iniqüidades”. | |