ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 127 | ||
§ 127:1 | ᶊ Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. | |
§ 127:2 | ᵻ Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois ele supre aos seus amados enquanto dormem. | |
§ 127:3 | ⱻ Eis que os filhos são herança da parte do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão. | |
§ 127:4 | Ƈ Como flechas na mão dum homem valente, assim os filhos da mocidade. | |
§ 127:5 | Ꞗ Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava; não serão confundidos, quando falarem com os seus inimigos à porta. | |
O SALMO 127 | ||
SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 1.4Conforme diz o Apóstolo, irmãos caríssimos: “Exprimimos realidades espirituais em termos espirituais. O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus” (1 Cor 2,13). Por isso, devemos precaver-nos não aconteça que os homens que vivem segundo a carne, não percebendo o que vem do Espírito de Deus, mais se escandalizem com este salmo do que se instruam. Brevemente (embora o tenhamos ouvido ao ser cantado), porque ele é breve, vou percorrê-lo, lendo em vez de comentá-lo. Notai que se alguém desejar as coisas contidas neste salmo, pensando obtê-las de Deus como coisas valiosas e talvez não as obtenha porque Deus o ama e não porque o abandona, e se verificar que o que consta como prêmio para os que temem a Deus, foi concedido fartamente aos que não temem, seus passos vacilem e resvalem, e ele diga em seu coração que foi inútil temer a Deus, porque não mereceu os dons reservados aos que o temem; além disso receberam-nos aqueles que não só não temeram a Deus, mas até blasfemaram. Pois, vede como se exprime o salmo: “Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos. Comerás do trabalho dos teus frutos. Serás feliz, cumulado de bens”. Nessas palavras, apesar de homens carnais, ainda podemos ver a felicidade do século futuro; mas vede como continua o salmo: “Tua esposa será qual vide fecunda no interior de tua casa. Teus filhos quais vergônteas de oliveira ao redor de tua mesa. Assim será abençoado o varão que teme o Senhor”. Como? Se sua esposa é qual vinha fecunda no interior de sua casa, e seus filhos quais vergônteas de oliveira ao redor de sua mesa, então perderam sua recompensa os que por causa de Deus não quiseram contrair matrimônio? Mas dirá quem não quis se casar: Deus me abençoará de outro modo… Não é assim. Ou abençoará desta maneira ou não abençoará; a sentença é clara: “Assim é abençoado o varão que teme o Senhor”. | |
§ 2 | Que sentido, então, tem isso, irmãos? O profeta nos apresentou uma espécie de pacote, a fim de não desejarmos a felicidade temporal e terrena, perdendo a celeste. Não sei o que está dentro desse invólucro. V. Caridade deve estar lembrada de que ao comentar o salmo precedente, encontramos um versículo obscuro, nesses termos: “Quais setas nas mãos de um valente guerreiro são os filhos dos que foram sacudidos”. E quando examinamos o que seriam os “filhos dos que foram sacudidos”, pareceu-nos, por uma iluminação do Senhor como cremos, que os apóstolos foram chamados filhos dos que foram sacudidos, filhos dos profetas. Com efeito, os profetas falaram em figura, e a realidade do mistério estava encoberta pelos invólucros dos símbolos. Os homens não puderam extrair dali o sentido, sem sacudir aqueles invólucros. Os apóstolos foram denominados, portanto, “filhos dos que foram sacudidos”, porque, sacudidos os profetas, eles disso tiraram proveito. Por conseguinte, também nós sacudamos este invólucro para não nos enganarmos, e tocando o que está dentro sem ver, afirmemos talvez que é madeira em vez de ouro, ou argila em vez de prata. Sacudamos, se apraz a V. Caridade. O Senhor nos assistirá, para extrairmos o que está lá dentro; principalmente, meus irmãos, porque estamos celebrando a festa natalícia dos mártires. Quantos males padeceram os mártires, quantos perigos, quantos tormentos, a imundície dos cárceres, as cadeias apertadas, a crueldade das feras, o ardor das chamas, os espinhos dos ultrajes! Teriam sofrido tudo isso, se não vissem algo a que tendessem, e que não pertence à felicidade deste mundo? É inconveniente, porém, celebrarmos as festas dos mártires, destes servos de Deus que desprezaram este mundo em vista da felicidade eterna, e considerarmos felicidade agora o que no salmo está escrito, e dizermos talvez de um homem de Deus, fiel, cidadão da Jerusalém do alto, que mesmo que casado, não tenha filhos: Este homem não teme o Senhor; pois se temesse o Senhor, sua esposa seria como uma vide fértil em sua casa, e não estéril, sem filhos; e se este homem temesse o Senhor, seus filhos cercariam sua mesa, como ramos de oliveria. Se dissermos isto, somos carnais, e não percebemos o que é do Espírito de Deus. Comecemos a sacudir-nos, para sermos também nós filhos dos que foram sacudidos. Pois, se formos filhos dos que foram sacudidos, estaremos nas mãos de valente guerreiro quais setas, e ele nos lançará, conforme seu preceito, ao coração dos homens que ainda não amam, a fim de que feridos pelas setas das palavras de Deus, comecem a amar. Com efeito, se começarmos a lhes pregar: Meus filhos, ou meus irmãos, temei o Senhor, a fim de possuirdes filhos e netos, para alegria de vossa casa. Então, não lançamos setas para que seja amada aquela Jerusalém eterna; eles se deterão no amor dos bens terrenos e verificando que os ímpios os possuem com fartura, embora não ousem responder-nos, dirão em seu coração: Por que aquele que não teme a Deus, tem a casa cheia de filhos? Talvez outro lhe replique: Ainda não sabes o que pode lhe acontecer. E se lhes foram concedidos, porque não temem a Deus, justamente em tal número para que sofram dor maior com a morte deles? Mas se deres esta resposta, ele poderá contestar: Eu conheço um homem ímpio, pagão, sacrílego, adorador dos ídolos (e talvez conheça mesmo e diz a verdade, e não é um só, nem são dois ou três); e foi sepultado depois de velho, decrépito, tendo morrido em seu leito, cercado da multidão dos filhos e netos. Eis que ele não temia o Senhor, e uma grande descendência de sua casa fechou-lhe os olhos. Que diremos diante disso? Nada de mal pode lhe suceder, de forma que em sua vida lhe sejam tirados os filhos; já morreu e foi levado ao sepulcro com honra pelos filhos. | |
§ 3 | Sacudamos, portanto, sacudamos, se queremos ser filhos dos que foram sacudidos; alguma coisa retiraremos daí. Pois, existe certo homem que assim é abençoado. Ninguém teme o Senhor se não estiver entre os membros deste homem. Consta de muitos e é um só. Muitos cristãos, um só Cristo. Os cristãos unidos a sua Cabeça, que subiu ao céu, formam um só Cristo. Não digo que ele é um só e nós somos muitos, mas que nós, sendo muitos, naquele que é um, somos um só. Por conseguinte, Cristo é um só, Cabeça e corpo. Qual é o seu corpo? Sua Igreja, conforme a palavra do Apóstolo: “Porque somos membros do seu corpo” (Ef 5,30). E: “Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros” (1 Cor 12,27). Compreendamos, pois, a voz deste homem, em cujo corpo somos um só homem; e então veremos os verdadeiros bens de Jerusalém. No final, o salmo se exprime da seguinte maneira: “Vejas a prosperidade de Jerusalém”. Se, porém, olhares com olhos terrenos tal prosperidade, isto é, a abundância de filhos e netos, a fertilidade e fecundidade da esposa, não se trata dos bens da Jerusalém terrestre. Esta prosperidade é peculiar à terra dos que morrem, e aquela Jerusalém é a terra dos vivos. Não consideres coisa importante ter filhos, filhos que hão de morrer, senão antes de ti, com toda certeza depois de ti. Queres ter filhos que jamais haverão de morrer, e viverão sempre contigo? Sê membro daquele corpo, do qual foi dito: “Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros”. | |
§ 4 | Efetivamente, para demonstrá-lo, o mesmo salmo, tão obscuro que nos convida a batermos à porta, tão oculto que necessita ser sacudido, começa a dirigir-se a muitos: “Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos”. Fala a muitos; mas como esses muitos são um só em Cristo, continua no singular: “Comerás do trabalho de teus frutos”. Mais acima dissera: “Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos”. Por que então agora: “Comerás do trabalho de teus frutos” e não: Comereis? E por que razão: “Comerás do trabalho de teus frutos”, e não: do trabalho de vossos frutos? Tão logo se esquece de que falava a vários? Mas se já sacudiste, que te responde? Ao dirigir-me a vários cristãos, em Cristo que é um, subentendo um só. Por conseguinte sois vários e sois um só; somos vários e somos um só. Como somos vários e somos um só? Aderindo àquele de quem somos membros. Se a Cabeça está no céu, os membros a seguem. | |
§ 5 | Por conseguinte, descreva o salmista, porque é claro de quem fala. Assim serão evidentes as coisas que seguem: apenas temei o Senhor, andai por seus caminhos e não tenhais inveja daqueles que não seguem suas vias, se verificardes que de maneira infeliz são felizes. Os homens mundanos infelizmente são felizes, os mártires, ao invés, eram felizmente infelizes. Pois, eram infelizes por algum tempo, mas eternamente felizes; e pelo fato mesmo de serem infelizes temporariamente, eram considerados mais infelizes do que de fato eram. Como se exprime o Apóstolo? “Como tristes e, não obstante, sempre alegres” (2 Cor 6,10). Por que “sempre”? Aqui e lá; efetivamente, aqui e lá. Aqui, na terra, de onde vem nossa alegria? Da esperança. E lá, por que nos alegraremos? Com a realidade. A esperança causa grande alegria. E se nos alegramos “na esperança” (cf Rm 12,12), vede como continua o Apóstolo: “perseverantes na tribulação”. Os mártires, portanto, eram pacientes na tribulação, porque se alegravam na esperança. Mas como ainda não se tratava do objeto da promessa, que diz o Apóstolo? “Ver o que se espera, não é esperar. E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,24.25). Eis por que os mártires tudo suportaram. Aguardavam pela paciência o que não viam. Seus carrascos amavam o que viam; eles, que eram mortos, suspiravam por aquilo que não viam e tinham pressa de alcançar as coisas invisíveis; e se a morte tardava, sentiam essas delongas. | |
§ 6 | Por isso, irmãos, o mártir Feliz, verdadeiramente feliz pelo nome e pela coroa, cuja festa comemoramos hoje1, desprezou o mundo. Por acaso era feliz porque temia o Senhor, era feliz porque sua esposa era na terra uma vide fértil e seus filhos estavam ao redor de sua mesa? Perfeitamente ele possuía tudo isso, mas no Corpo daquele de que fala o salmo. E como entendeu essas coisas, desprezou os bens presentes para receber os futuros. Deveis saber, porém, irmãos, que ele não sofreu a mesma morte que os outros mártires. De fato, ele confessou a Cristo e seus tormentos foram adiados; no dia seguinte seu corpo foi encontrado exânime. Haviam-no prendido no cárcere, mas somente o corpo, não o espírito. Os verdugos viram que se ausentara aquele que eles estavam prontos a torturar; perderam a sua crueldade. Ele jazia exânime, insensível; não podia ser torturado; mas, junto de Deus tinha percepção para ser coroado. Como teria sido feliz, irmãos, não somente pelo nome, mas ainda pelo prêmio da vida eterna, se amasse as coisas presentes? | |
§ 7 | Conseqüentemente, ouçamos este salmo em referência a Cristo, e todos nós unidos ao corpo de Cristo e transformados em seus membros, andemos pelos caminhos do Senhor; temamos o Senhor com temor casto, que permanece pelos séculos dos séculos. Existe outro temor, que a caridade exclui, conforme diz S. João: “Não há temor no amor; mas o perfeito amor lança fora o temor” (1Jo 4,18). Não é de qualquer temor que se diz que a caridade lança fora; pois tens em outro salmo: “O temor do Senhor é casto, permanece pelos séculos dos séculos” (Sl 18,10). Por conseguinte, um temor permanece e outro é lançado fora. O temor que é lançado fora não é casto; é casto aquele que permanece. Qual o temor que é excluído? Prestai atenção. Alguns têm medo de sofrer algo de mal aqui na terra: não lhes advenha uma doença, não sofram dano, orfandade, não percam algum ente querido, não passem por exílio, condenação, cárcere, tribulação. Por tudo isso temem e tremem. Este temor ainda não é casto. Escuta ainda. Outro não receia sofrer nesta terra, mas tem medo do inferno, a respeito do qual atemorizou-nos o próprio Senhor. Escutastes a leitura do evangelho: “Onde o verme deles não tem fim e onde o fogo não se extingue” (Mc 9,48). Os homens ouvem estas coisas; e como na verdade hão de vir para os ímpios, eles temem e abstêm-se do pecado. Têm temor, e pelo temor abstêm-se do pecado. Temem de fato, mas não amam a justiça. Enquanto pelo temor se abstêm do pecado, habituam-se à justiça, o que era duro começa a ser amado e Deus se lhes torna suave. O homem inicia uma vida na justiça, não por temer o castigo, mas por amor à eternidade. Por conseguinte, o amor expulsou o temor, mas sucedeu-lhe o temor casto. | |
§ 8 | Que é este temor casto? Devemos, meus irmãos, de acordo com este entender o versículo: “Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos”. Se eu conseguir expressar devidamente o que é este temor casto, com o auxílio do Senhor, nosso Deus, muitos talvez partindo deste temor casto se inflamem num amor casto. Talvez não possa explicar, a não ser com uma comparação. Imagina uma esposa casta, que teme seu esposo; e outra, adúltera, que teme seu esposo. A esposa casta receia que ele se afaste dela; a adúltera, que ele venha. E se ambos estão ausentes? Uma tem medo de que ele venha; a outra, que ele demore. De certa maneira está ausente aquele a quem somos desposados, está ausente aquele que nos deu o penhor do Espírito Santo, ausente quem nos redimiu com seu sangue; aquele esposo mais belo do que todos os homens, mas que se mostrou sem beleza entre as mãos dos perseguidores, e do qual pouco antes dizia Isaías: “Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar” (Is 53,2). Então, nosso esposo é feio? De forma alguma. Como o amariam as virgens, que não procuraram esposo na terra? No entanto, apareceu sem beleza diante dos perseguidores; e se não o considerassem feio, não o assaltariam, não o feririam com flagelos, não o coroariam de espinhos, não o injuriariam com escarros. Mas como lhes parecia feio, fizeram-lhe tudo isso; não tinham olhos para ver a beleza de Cristo. A que olhos Cristo se revelou belo? Quais os olhos que desejava o próprio Cristo, quando dizia a Filipe: “Há tanto tempo estou convosco e não me conheceis”? (Jo 14,9). Estes olhos precisam ser purificados para poderem ver aquela luz; e por menos que sejam atingidos por seu esplendor, inflamam-se de amor de sorte que querem ser curados e são iluminados. Com efeito, para saberdes que é belo o Cristo amado, disse o profeta: “Muito belo, acima dos filhos dos homens” (Sl 44,3). Sua beleza supera a de todos os homens. O que amamos em Cristo? Os membros crucificados, o lado aberto, ou o amor? Quando ouvimos dizer que padeceu por nós, que amamos? É a caridade que é apreciada. Ele nos amou para que retribuíssemos seu amor; e para podermos retribuir com amor, visitou-nos com seu Espírito. Ele é belo, mas está ausente. Interroga-se a esposa, se é casta. Todos nós somos seus mem-bros, meus irmãos; estamos entre seus membros, por isso somos um só homem. Veja cada qual que temor possui. Se aquele que a caridade expulsa, ou o temor casto que permanece pelos séculos dos séculos. Agora o experimentou; digo, e o experimentará. Nosso esposo está ausente. Interro-ga tua consciência. Queres que venha ou ainda queres que tarde? Vede, irmãos. Bati à porta de vossos corações. O Senhor ouviu a voz dos que lá habitam. Não foi possível chegar a meus ouvidos, porque sou homem, o que agora dis-se a consciência de cada qual. Escutou-vos aquele que está ausente corporalmente, mas presente pelo vigor de sua majestade. Quantos são os que dirão: Oxalá venha! se lhes for dito: Eis que Cristo já está aqui, amanhã é o dia do juí-zo. Muito amam os que assim falam. Se lhes for dito, ao in-vés: Ainda demora, receiam que tarde, porque seu temor é casto. Da mesma forma que agora se receia que tarde, assim quando vier, ter-se-á receio de que se afaste. Será, porém, casto nosso temor, se for tranqüilo e seguro. Pois, ele depois de nos encontrar, não nos abandonará, visto que nos procurou antes que o buscássemos. O temor casto, portanto, meus irmãos tem esta característica: vem do amor. Ao contrário, o temor que ainda não é casto, teme a presença e o castigo. Faz por temor tudo de bom que faz; não pelo temor de perder aquele bem, mas pelo medo de sofrer aquele mal. Não teme perder o amplexo do esposo belíssimo, mas teme ser lançado na geena. É bom este temor, é útil. Não permanecerá pelos séculos dos séculos; ainda não é o temor casto que permanece pelos séculos dos séculos. | |
§ 9 | Em que é casto? De novo pergunto o que deveis perguntar a vós mesmos. Se Deus viesse e nos falasse de própria voz (embora não cale em suas Escrituras), e dissesse ao homem: Queres pecar, peca. Pratica tudo o que te apraz. Torne-se teu tudo o que amares na terra. Morra aquele contra o qual te irares. Seja roubado aquele a quem quiseres roubar; ferido, quem quiseres ferir; condenado quem desejares condenar. Apossa-te do que quiseres ter. Ninguém te resista, te diga: Que fazes? Ninguém: Não faças. Ninguém: Por que o fizeste? Tenhas fartamente todos os bens terrestres que ambicionares, e vive com eles, não por algum tempo, mas para sempre. Mas, jamais vereis a minha face. Meus irmãos, porque gemestes, senão porque brotou em vós o temor casto, que permanece pelos séculos dos séculos? Por que vosso coração se comoveu? Se Deus dissesse: Jamais verás a minha face; eis que terás em abundância esta felicidade terrena, todas as coisas, cercar-te-ão os bens temporais; não os perderás, não os deixarás; que queres mais? O temor casto, de fato, haveria de chorar e gemer, dizendo: Prefiro que tudo me seja tirado, e veja a tua face. O temor casto exclamaria, de acordo com o salmo: “Converte-nos, ó Senhor, Deus dos exércitos. Mostra-nos a luz de tua face e seremos salvos” (Sl 79,8). O temor casto exclamaria com o salmo: “Uma só coisa pedi ao Senhor e a procurarei”. Observa como é ardente esse temor casto, esse amor verdadeiro, amor sincero. “Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei. Qual? Habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida”. E se fosse por causa da felicidade terrena? Ouve como continua: “Para contemplar as delícias do Senhor. E ele me proteja como a seu templo” (Sl 26,4), isto é, ser o templo seu, ser protegido por ele, foi a única coisa que pedi ao Senhor. Se pedirdes essa coisa única, se exercitardes vosso coração nessa única coisa, se receardes perder somente isso, se não invejardes a felicidade terrena e esperardes a felicidade verdadeira, estareis no corpo de Cristo, sobre o qual se canta: “Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos”. | |
§ 10 | “Comerás do trabalho de teus frutos”. Ó vós todos e tu, vós que de muitos sois um. “Comerás do trabalho de teus frutos”. Parece errado aos que não entendem o versí-culo. Dever-se-ia dizer: Comerás do fruto de teus trabalhos. Pois, muitos comem o fruto de seus trabalhos. Trabalham na vinha, e não comem o próprio trabalho; mas comem o que nasce de seu trabalho. Trabalham em torno das árvores frutíferas; quem come o trabalho? Mas o que aquelas árvores produzem, o fruto do trabalho é que alegra o agricultor. Que quer dizer: “Comerás do trabalho de teus frutos?” Agora temos os trabalhos; os frutos virão depois. Mas como os próprios trabalhos não são desprovidos de contentamento, por causa da esperança, de que falamos pouco acima: “Alegrando-nos na esperança, perseverando na tribulação” (Rm 12,12), agora os próprios trabalhos nos alegram e tornam-nos contentes na esperança. Se, portanto, nosso labor pôde ser comido, pôde alegrar-nos, que será comer o fruto do labor? Comiam de seus trabalhos, os que “ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes”; com e que mais profunda alegria hão de comer do fruto de seus trabalhos, os “que ao voltarem, vêm exultantes, trazendo os seus feixes” (Sl 125,6). E para saberdes, irmãos, que se come deste trabalho, ouvis-tes no salmo precedente o que foi dito aos soberbos, que queriam levantar-se antes do amanhecer, isto é, antes de Cristo, mas não pela humildade, através da qual Cristo ressuscitou: “Erguei-vos após terdes estado sentados”, isto é, humilhai-vos e depois erguei-vos, porque Cristo veio para ser humilhado, ele que foi exaltado por vossa causa. Que se lhes disse? “Vós que comeis o pão da dor” (Sl 126,2). Tal o labor dos frutos, o pão da dor. Se não pudesse ser comido, não seria chamado pão; se não tivesse algum sabor este pão, ninguém o comeria. Com que suavidade não chora e geme o orante? São mais suaves as lágrimas dos orantes do que as alegrias dos teatros. E escuta qual a chama do desejo com que se come este pão, assim denominado: “Vós que comeis o pão da dor”. Em outra passagem diz este homem que ama, cuja voz reconhecemos muitas vezes nos salmos: “Minhas lágrimas dia e noite se tornaram o meu pão”. Como as lágrimas se transformaram em pão? “Quando se me diz cada dia: Onde está o teu Deus?” (Sl 41,4). Antes de contemplarmos aquele que nos amou, que nos deu um penhor, ao qual estamos desposados, os pagãos nos injuriam: Onde está o Deus que os cristãos adoram? Mostrem-nos aquele que adoram. Eis que eu lhes aponto o meu Deus; que eles nos mostrem seu Deus. Ao te dizer isso um pagão, não encontras o que lhe mostrar, porque não existe um objeto que possas lhe apresentar como teu Deus. Voltaste, então para teu Deus e te lamentas; porque suspiras por ele antes de o contemplares, e gemes por causa desse desejo; e como choras devido a teu desejo, suaves são estas lágrimas, e serão teu alimento, porque se tornaram teu pão dia e noite, enquanto se te diz diariamente: “Onde está o teu Deus?” Mas virá o teu Deus, a respeito do qual te perguntam: “Onde está?” e enxugará tuas lágrimas (cf Ap 21,4) e será o teu pão em lugar das lágrimas e te saciará eternamente; porque estará conosco a Palavra de Deus, que alimenta os anjos. Entretanto, agora temos os trabalhos para os frutos, depois o fruto do trabalho. “Comerás do trabalho de teus frutos, és feliz; serás cumulado de bens. És feliz”, no presente; “serás cumulado de bens”, no futuro. Ao comeres do trabalho de teus frutos, serás feliz; ao alcançares o fruto de teus trabalhos, “serás cumulado de bens”. Como? Se serás cumulado de bens, na verdade serás feliz; e se fores feliz, serás cumulado de bens. Mas há diferença entre a esperança e a realidade. Se a esperança já é tão agradável, como não será suave a realidade! | |
§ 11 | Já chegamos àquele ponto: “Tua esposa”. Fala-se a Cristo; portanto, sua esposa é sua Igreja; sua Igreja, sua esposa, todos nós. “Qual vide fecunda”. Mas, em quem ela é vide fecunda? Vemos que essas paredes encerram muitos que são estéreis; vemos que encerram muitos ébrios, usurários, charlatães, muitos que procuram sortilégios, que vão aos feiticeiros e feiticeiras quando têm dor de cabeça. É esta a fertilidade da vide? É esta a fecundidade da esposa? Não. São os espinhos; mas ela não contém espinhos em toda parte. Tem certa fertilidade e é uma vinha fértil. Mas, em quais? “Nos lados de tua casa”. Nem todas as paredes são laterais. Pergunto quais são as laterais; que dizer? São paredes, pedras fortes? Se me referisse a esta moradia material, talvez entenderíamos assim os lados. Chamamos de lados da casa aqueles que aderem a Cristo. Não é sem razão, na linguagem de cada dia que nos referimos a alguém que talvez proceda mal por causa dos maus conselhos dos amigos; dizemos dele: Mala latera habet tem maus conselheiros a seu lado. Que quer dizer isto? Seus companheiros são maus. Portanto, de outro se diz: Bona latera habet, convive com bons conselheiros. Como? Segue bons conselhos. Por conseguinte, as paredes laterais da casa são aqueles que se unem a Cristo. Não foi sem razão que a própria esposa foi formada do lado do homem. Adão dormia e Eva foi formada (cf Gn 2,21.22), e quando Cristo morria, nasceu a Igreja (cf Jo 19,34). Uma, do lado do homem, do qual foi extraída uma costela; outra do lado do homem, quando foi atravessado pela lança, e brotaram os sacramentos. Por conseguinte, “tua esposa será qual vide fecunda”. Onde? “Nos lados de tua casa”. Estéril naqueles que não aderem a Cristo. Mas nem mesmo os conto como pertencentes à vinha. | |
§ 12 | “Teus filhos”. A esposa e os filhos são uma coisa só. Nas núpcias e casamentos carnais, uma é a esposa e outros são os filhos; na Igreja, a esposa identifica-se com os filhos. À Igreja pertenciam os apóstolos, que também eram membros da Igreja. Portanto, constituíam a esposa, e formavam a esposa segundo a parte que lhes cabia como seus membros. Por que motivo, então, se diz a respeito deles: “Dias virão, quando o noivo lhes será tirado; então, sim, jejuarão”? (Mt 9,15). Portanto, esposa e filhos são uma coisa só. É extraordinário, meus irmãos. Entre as palavras do Senhor encontramos que a Igreja se identifica com seus irmãos, suas irmãs, sua mãe. Pois, ao ser-lhe anunciado que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora, o fato de estarem fora constituía-os como tipo. A quem prefigurava a mãe? A sinagoga. E os irmãos carnais? Os judeus que estavam fora. Fora está também a sinagoga. Pois, Maria estava nos lados de sua casa, e seus parentes, consangüíneos da virgem Maria, que acreditaram em Cristo, estavam nos lados de sua casa; não enquanto eram consangüíneos, mas enquanto ouviam o verbo de Deus e o punham em prática. Por isso respondeu o Senhor: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos”? (Mt 12,48). Daí vem que alguns tentaram afirmar que Cristo não teve mãe, porque perguntou: “Quem é minha mãe?” Por quê? Então, Pedro, João e Tiago e outros apóstolos não tiveram pais na terra? No entanto, que lhes diz o Senhor: “A ninguém na terra chameis pai, pois um só é o vosso Pai, o celeste” (Mt 23,9). O ensinamento que dava aos apóstolos a propósito do pai, ele o demonstrou acerca da mãe. O Senhor quer que prefiramos a Deus em relação a nossos consangüíneos terrenos. Honra ao pai porque é pai; honra a Deus porque é Deus. O pai te gerou de sua carne; Deus te criou empregando o seu poder. Não se irrite o pai quando Deus é preferido; ao contrário, alegre-se de tanta honra, e mais ainda por se encontrar quem o supere. Então, o que dizer? Que diz o Senhor? “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E apontando para os discípulos, disse: Aqui estão minha mãe e meus irmãos”. Com efeito, eram irmãos. De que modo era sua mãe? Acrescentou: “Aquele que fizer a vontade de meu Pai, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,46-50). Imagina que o Senhor diz “irmão” relativamente aos membros do sexo viril que a Igreja contém, “irmã” por causa das mulheres que Cristo tem entre seus membros: mãe de que modo, senão porque o próprio Cristo está nos cristãos, gerados diariamente pela Igreja por meio do batismo? Por conseguinte, neles reconheces a esposa, a mãe, os filhos. | |
§ 13 | Então, digamos como devem ser os filhos. Quais? Pacíficos. Por que pacíficos? Porque “bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). A oliveira contém o fruto da paz; pois o óleo significa a paz, significa a caridade; sem caridade não há paz. É manifesto que os que romperam a paz não tinham a caridade. Por isso, já expus a V. Caridade por que motivo a pomba levou à arca folhas e frutos de oliveira. Simbolizava que também os que foram batizados fora, como aquelas árvores fora da arca haviam sido mergulhadas, se não tivessem apenas folhas, isto é, somente palavras, mas tivessem também frutos, isto é, a caridade, a própria pomba os levaria à arca e viriam à unidade2. Tais filhos, portanto devem estar “ao redor da mesa do Senhor quais vergônteas de oliveira”. É perfeita, é grande felicidade. Quem, então, não quer ser desse número? Se vires algum homem blasfemo que possui esposa, filhos, netos e talvez não os tenhas, não invejes; vê que isto também se realizou espiritualmente em ti. Acaso não pertences aos membros de Cristo? Se não pertences, deves lamentar-te porque não os tens aqui, não os terás lá. Se, porém, tiveres lá, fica sossegado; porque embora seja somente lá e não aqui, lá será mais proveitoso do que aqui. | |
§ 14 | Se, porém, temos, por que razão os temos? Porque tememos o Senhor. “Assim é abençoado o varão que teme o Senhor”. Esse “varão” representa os homens, em geral; esses homens constituem um só, homem. Muitos formam um só porque Cristo é um. | |
§ 15 | 5 “De Sião te abençoe o Senhor”. Pois começavas a observar: “Assim é abençoado o varão que teme o Senhor”. Provavelmente percorrias com os olhos aqueles que não temem o Senhor, e vias que têm esposas fecundas, muitos filhos ao redor da mesa do pai. Não sei por onde andavas: “Abençoe-te o Senhor, mas de Sião”. Não ambiciones as bênçãos que não provêm de Sião. Mas, não foi o Senhor que abençoou àqueles homens, meus irmãos? É uma bênção do Senhor (cf Gn 8,11). Ou se não é do Senhor, quem se casaria, se o Senhor não o quisesse? Quem estaria com saúde, se o Senhor não o quisesse? Quem seria rico se o Senhor não o quisesse? Ele dá esses bens; mas não vês que os deu também aos animais? Por conseguinte, esta bênção não é proveniente de Sião. “De Sião te abençoe o Senhor, para que vejas a prosperidade de Jerusalém”. Aqueles bens não são de Jerusalém. Queres constatar que esses bens não são peculiares a Jerusalém? Foi dito até as aves: “Sede fecundas, multiplicai-vos” (Gn 1,22). Queres considerar um dom extraordinário o que foi dado às aves? Quem não sabe que foi dado pela palavra de Deus? Mas, usa destes bens, se os receberes. Pensa antes em como educar os filhos que nasceram do que em que nasçam. Em si não é ainda uma felicidade ter filhos, e sim ter bons filhos. Trabalha por educá-los, se já nasceram; se porém não nasceram, dá graças a Deus. Talvez tenhas menos solicitude, e não será estéril, tua esposa. Pode ser que esta mãe por meio de ti dê à luz espiritualmente filhos que serão como vergônteas de oliveira em torno da mesa do Senhor. O Senhor, portanto, te console “Para que vejas a prosperidade de Jerusalém”. Estes são os verdadeiros bens. Por que são? Porque são eternos. Por que são? Porque lá se encontra o rei: “Eu sou aquele que é” (Ex 3,14). Os bens mencionados são bens e não são; pois não permanecem: resvalam, fluem. Os filhos são ainda pequenos; acaricias os pequeninos, são acariciados. Por acaso, permanecem assim? Ao contrário, desejas que cresçam, desejas que cheguem à idade seguinte. Mas nota que ao chegar uma idade, a outra perece. Vem a puerícia, morre a infância; vem a adolescência, morre a puerícia; vem a juventude, morre a adolescência; vem a velhice, morre a juventude; vem a morte e morrem todas as idades. Quantos os graus que desejas, simultaneamente desejas tantas mortes das idades. Estas, portanto, não são. Com efeito, os filhos que obtivestes na terra viverão contigo, ou antes te excluirão e serão teus sucessores? Alegras-te porque eles nasceram para tu seres excluído? Ao nascerem os filhos, aparentam dizer a seus pais: Vamos, cuidai de partir daqui, para que representemos nossa peça. A peça representada pelo gênero humano é toda a vida que é uma tentação; com efeito, foi dito: “É vaidade todo homem que vive na terra” (Sl 38,6). Entretanto, se nos alegramos de tal modo com os filhos nossos sucessores, quanto mais devemos alegrar-nos com os filhos com os quais havemos de permanecer, junto daquele pai que não morre e para o qual nascemos, a fim de vivermos sempre junto dele? Tais são os bens de Jerusalém, que são bens. “De Sião te abençoe o Senhor, para que vejas a prosperidade de Jerusalém”. Pois, estes bens a que dás atenção, tu os vês como um cego. “Vejas”, mas aqueles bens que se vêem com o coração. E por quanto tempo verei os bens de Jerusalém? “Todos os dias de tua vida”. Mas se tua vida for eterna, eternamente verás os bens de Jerusalém. Se, porém, meus irmãos, estes bens são bens, não os vês todos os dias de tua vida, pois não morres quando deixas o corpo. Tua vida continua; o corpo morre, mas a vida do espírito permanece. Os seus olhos não vêem, porque se apartou a alma que via através dos olhos. Seja onde for que esteja a alma que via, por meio dos olhos, vê alguma coisa. Com efeito, não estava morto aquele rico que na terra se vestia de púrpura e linho fino; se estivesse morto, não seria atormentado no inferno (cf Lc 16,19.23). Seria desejável para ele talvez que morresse, mas para sua infelicidade vivia no inferno. Pois, era atormentado, e não via aqueles bens que deixara na terra; eis que vivia, mas não via aqueles bens. Por conseguinte, deves desejar bens que vejas “todos os dias de tua vida”, isto é, com os quais vivas eternamente. | |
§ 16 | 6 Notai, irmãos, que bens são estes. É possível denominar bens os seguintes: ouro, prata, propriedade amena, paredes de mármore, tetos trabalhados? De forma alguma. Estas coisas, até os pobres têm com certa abundância nesta vida. Vale mais para o pobre ver o céu estrelado do que o rico contemplar o teto dourado. Irmãos, qual é então o bem que nos entusiasma, que nos faz suspirar, nos inflama, faz-nos suportar tantos trabalhos para o alcançarmos e contemplarmos, conforme ouvistes da leitura do Apóstolo que, “aliás, todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos”? (2 Tm 3,12). Nem mesmo agora, considerando que o diabo não se enfurece por intermédio dos reis, os cristãos deixam de sofrer perseguição. Pois, se o diabo morreu, morreram as perseguições; se, porém, vive aquele nosso adversário, onde não sugere tentações? Onde não devasta? Onde não provoca ameaças ou escândalos? Oh! se começas a viver piamente, verás que todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos. Qual o motivo de sofrermos tantas perseguições? Diz o Apóstolo: “Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1 Cor 15,19). Por que os mártires foram condenados às feras? É possível descrever aquele bem? Como a língua pode exprimi-lo? É qual? Que ouvidos podem ouvi-lo? Com efeito, a este bem “os ouvidos não ouviram, e o coração do homem não percebeu” (1 Cor 2,9). Basta-nos amar, progre-dir. Vedes que não faltam as lutas e combatemos nossas concupiscências. Lutamos fora com os homens infiéis e desobedientes, lutamos interiormente com as sugestões e perturbações carnais. Em toda parte ainda lutamos, porque o corpo corruptível pesa sobre a alma (cf Sb 9,15); lutamos ainda, porque “o espírito é vida”, no entanto “o corpo está morto, pelo pecado”. Mas como será depois? “Se o Espírito daquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos habita em vós, ele dará vida também a vossos corpos mortais, mediante seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,10.11). Quando nossos membros mortais tiverem sido vivificados, nada mais resistirá a nosso espírito. Não haverá fome, nem sede, porque elas derivam da corrupção de nosso corpo. Tu te refazes, porque algo se desfez. As concupiscências dos deleites carnais lutam contra nós. Trazemos a morte conosco devido á fraqueza de nosso corpo; mas quando a própria morte for trocada por aquela imutabilidade, e este ser corruptível revestir a incorrup-tibilidade e este ser mortal revestir a imortalidade, que palavras ouvirá a morte? “Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?” E talvez dir-se-á ao morrer: Restam alguns inimigos? Não; “o último inimigo a ser destruído será a morte” (1 Cor 15,53.54.55.26). Destruído este, seguir-se-á a imortalidade. Se não houver mais inimigo, a morte será de certo modo “o inimigo último a ser destruído”. A paz é o bem pelo qual suspiramos. Eis que nosso bem, irmãos, nosso maior bem chama-se paz. Perguntáveis qual era o seu nome: ouro, prata, propriedade, veste? É paz. Não a paz que os homens têm entre si, pérfida, instável, mutável, incerta; nem a paz que um homem tem consigo mesmo. Pois, explicamos que o homem luta consigo mesmo. Até que dome seus de-sejos, luta. Que paz, então, é esta? A paz que o “olho não viu, o ouvido não ouviu”. Que paz? A paz proveniente de Jerusalém, porque Jerusalém se interpreta: Visão de paz. Assim, portanto, “de Sião te abençoe o Senhor, para que vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias de tua vida. E vejas”, não apenas teus filhos, mas “os filhos de teus filhos”. Que significa: teus filhos? As obras que fazes. Quais são os filhos de teus filhos? O fruto de tuas obras. Dás esmolas, são teus filhos. Por causa das esmolas recebes a vida eterna são os filhos de teus filhos. “E vejas os filhos de teus filhos” e sucederá o que segue, a conclusão: “Paz sobre Israel”. É esta a paz que vos anunciamos, a paz que nós amamos, a paz que desejamos que ameis. Alcançam esta paz os que foram pacíficos na terra. Os que são pacíficos aqui, serão também lá; são os que estão em torno da mesa do Senhor como vergônteas de oliveira. Não sejam árvore estéril como a figueira em que o Senhor quando teve fome não encontrou fruto (cf Mt 21,18.19). E vedes o que lhe aconteceu. Tinha apenas folhas, não produzira frutos. Assim são os que têm só palavras e não obras. O Senhor, ao chegar com fome não encontra o que comer, porque o Senhor tem fome de nossa fé e de nossas boas obras. Alimentamo-lo vivendo bem, e ele nos nutrirá eternamente, dando-nos a vida. 1 Narra o martirológio que ele sofreu o martírio em Tinissa ou Timisa, na África, não longe de Hipona. Ignora-se, contudo qual o dia. 2 Cf Tract in Joh. VI, 19,2 ss. | |