SALMO 𝟭𝟚𝟞

Os que semeiam em lágrimas, com cânticos de júbilo segarão.

Aquele que sai chorando, levando a semente para semear, voltará com cânticos de júbilo, trazendo consigo os seus molhos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 126


§ 126:1  Quando o Senhor trouxe do cativeiro os que voltaram a Sião, éramos como os que estão sonhando.

§ 126:2  Então a nossa boca se encheu de riso e a nossa língua de cânticos. Então se dizia entre as nações: Grandes coisas fez o Senhor por eles.

§ 126:3  Sim, grandes coisas fez o Senhor por nós, e por isso estamos alegres.

§ 126:4  Ƒ Faze regressar os nossos cativos, Senhor, como as correntes no sul.

§ 126:5  Os que semeiam em lágrimas, com cânticos de júbilo segarão.

§ 126:6  Aquele que sai chorando, levando a semente para semear, voltará com cânticos de júbilo, trazendo consigo os seus molhos.


O SALMO 126



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 Entre todos os cânticos intitulados:

Cântico gradual” este salmo acrescentou mais alguma coisa ao título:

de Salomão”.

Assim foi anotado no início:

Cântico gradual de Salomão”.

Por isso, chamou nossa atenção o título inusitado, de sorte que nos perguntamos a razão do acréscimo:

De Salomão”.

Pois, quanto ao sentido de “Cântico gradual”, é desnecessário repetir mais vezes; falamos muitas coisas a esse respeito. Canta-o aquele que sobe com piedade e amor àquela Jerusalém do alto, pela qual suspiramos durante nossa peregrinação, e onde nos alegraremos quando regressarmos desta peregrinação. Sobe para lá todo aquele que progride; cai todo o que desanima. Não procures subir com os pés corporais, nem penses que desces com esses pés. Sobes, amando a Deus; amando o mundo, cais. Por conseguinte, esses cânticos pertencem aos que amam, e estão inflamados de um santo desejo. Ardem deste desejo os que os cantam de todo coração. Este coração ardente se encontra também em seus costumes, em seu bom comportamento e relacionamento, nas obras segundo os preceitos de Deus, no desprezo dos bens temporais e amor das coisas eternas. Mas, direi a V. Caridade, quanto me inspirar o Senhor, sobre o motivo do acréscimo:

De Salomão”.



§ 2
Salomão foi outrora um grande rei, filho de Davi. O Espírito Santo operou nas Sagradas Escrituras, através dele, por meio de santos preceitos, salutares avisos e divinos mistérios. Com efeito Salomão amou muitas mulheres e foi reprovado por Deus; mas esta paixão foi uma armadilha para ele a tal ponto que as mulheres o coagiram a sacrificar aos ídolos, conforme o atesta a Escritura (cf 1Rs 11,1ss).

Mas se por sua queda se apagasse o que foi dito através dele, julgar-se-ia que suas palavras não eram do Espírito Santo. Maravilhosamente, portanto, agiu aqui a misericórdia de Deus com o seu Espírito, de forma que tudo o que Salomão proferiu de bom, fosse atribuído a Deus; quanto ao pecado do homem, ao homem. Que há de espantoso em que tenha caído Salomão no meio do povo de Deus? No paraíso não caiu Adão? O anjo não caiu do céu e se tornou diabo? Por isso, aprendemos que em homem algum se deve depor confiança. Este Salomão ainda edificara o templo do Senhor (cf 1Rs 6,1), como tipo e figura da futura Igreja, corpo do Senhor; daí provém que diga no evangelho o Senhor:

Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei(Jo 2,19).

Salomão edificara aquele templo e nosso Senhor Jesus Cristo, o verdadeiro pacífico, verdadeiro Salomão, edificou seu templo. Pois, Salomão significa Pacífico. Ele é, efetivamente, o verdadeiro pacífico, de quem diz o Apóstolo:

Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só(Ef 2,14).

Ele é o verdadeiro pacífico, que uniu em si os dois muros, vindos de direções diferentes, e tornou-se a pedra angular, para o povo fiel vindo da circuncisão e para o povo proveniente dos gentios, também crentes. Dos dois povos fez uma só Igreja, dos quais ele se tornou pedra angular; portanto, é verdadeiramente pacífico. Ele é verdadeiro Salomão. O outro Salomão, filho de Davi por Bersabéia, rei de Israel, era figura deste pacífico, quando edificou o templo (cf 1Sm 12,24).

A Escritura, para evitar que penses no Salomão que construiu a casa de Deus, mostrando-te outro Salomão, assim começa o salmo:

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalharam os que a edificaram”.

O Senhor, portanto, edifica a casa, nosso Senhor Jesus Cristo edifica sua casa. Muitos trabalham na construção, mas se ele não edificar, “em vão trabalharam os que a edificaram”.

Quais são os que trabalham na construção? Todos os que na Igreja pregam a palavra de Deus, os ministros dos sacramentos de Deus. Todos corremos, todos trabalhamos, todos edificamos agora; e antes de nós, muitos correram, trabalharam, construíram; mas “se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalharam os que a edificaram”.

Por esta razão, ao verem certas ruínas os apóstolos, e propriamente Paulo disse:

Observais cuidadosamente dias, meses, estações, anos! Receio ter-me afadigado em vão por vós(Gl 4,10).

Sabia que em si Deus edificava interiormente e lastimava a estes, pois em vão se afadigara por eles. Com efeito, nós falamos exteriormente, e o Senhor edifica interiormente. Notamos como ouvis, mas o que pensais, conhece-o apenas aquele que vê vossos pensamentos. Ele edifica, ele admoesta, ele atemoriza, ele abre o intelecto, ele aplica vosso modo de pensar a fé. Entretanto, nós também, como operários, trabalhamos: mas “se o Senhor não edificar a casa, em vão tra-balharam os que a edificaram”.



§ 3
Casa de Deus identifica-se com cidade de Deus. Pois, casa de Deus é o povo de Deus; casa de Deus é o templo de Deus. E como se exprime o Apóstolo? “Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós(1 Cor 3,17).

Todos os fiéis, porém, são casa de Deus. Não apenas os que existem agora, mas ainda os que existiram antes de nós e já adormeceram no Senhor, os que existirão depois de nós, que ainda devem nascer no gênero humano até o fim do mundo, todos os fiéis congregados na unidade, inúmeráveis, mas computados pelo Senhor, dos quais diz o Apóstolo:

O Senhor conhece os que lhe pertencem(2 Tm 2,19), aqueles grãos que agora gemem entre as palhas, e que constituirão uma só massa, quando a eira for ventilada no fim do mundo (cf Mt 3,12); portanto, o número total dos santos fiéis, que de homens se tornarão iguais aos anjos de Deus, reunidos aos anjos, os quais não peregrinam, mas nos aguardam ao regressarmos de nossa peregrinação; todos esses simultaneamente constituem uma só casa de Deus e uma só cidade. Esta é Jerusalém. Ela tem seus guardas; como tem os que a edificam, os que trabalham na sua construção, assim possui também seus guardas. A essa guarda pertence o que assim diz o Apóstolo:

Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade e da pureza devida a Cristo(2 Cor 11,3).

Paulo guardava, era guarda, vigiava, quanto podia, aqueles que governava. Também os bispos fazem assim. Pois, o bispo está colocado num posto mais alto para superintender e de certo modo guardar o povo. Em grego se diz episcopus, em latim a tradução é vigilante; superintende quem vê de cima. Como o vinhateiro tem um posto mais alto para guardar a vinha, assim também o bispo tem um posto mais elevado, e deste local mais elevado há de prestar contas com perigo para si; a não ser que nos mantenhamos aqui com tal disposição interna que pela humildade estejamos a vossos pés, rezando por vós, a fim de que aquele que conhece vossas mentes, vos guarde. De fato, podemos ver-vos ao entrardes e saírdes; mas não vemos o que pensais em vossos corações, nem podemos ver o que fazeis em vossas casas. Como então vos guardamos? À maneira humana; quanto podemos, com quanto poder recebemos para isso. E como guardamos de modo humano e não podemos guardar perfeitamente, ficareis sem guarda? De forma alguma. Pois, onde fica aquele do qual se disse:

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalharam os que a edificaram?” Trabalhamos nesta vigilância, mas será vão nosso labor, se não guardar aquele que vê vossos pensamentos. Ele vos guarda quando estais despertos, ele vos guarda quando dormis. Ele, de fato, dormiu uma vez na cruz e ressuscitou; agora já não dorme. Sede Israel, porque não dorme, nem dormitará o que guarda Israel (cf Sl 120,4).

Vamos, irmãos. Se queremos ser guardados sob as asas de Deus, sejamos Israel. Com efeito, nós vos guardamos por ofício; mas queremos ser guardados convosco. Para vós somos quais pastores, mas sob aquele Pastor somos ovelhas convos-co. Deste posto, somos para vós quais doutores; mas sob aquele único Mestre nesta escola somos vossos condiscípulos.



§ 4
2 Se queremos ser guardados por aquele que se humilhou por nossa causa, e foi exaltado para nos guardar, sejamos humildes. Ninguém se arrogue coisa alguma. Ninguém possui algo de bom se não tiver recebido daquele que é o único bom. Quem quiser, porém, arrogar-se sabedoria, é estulto. Seja humilde, para que a sabedoria venha e o ilumine. Se, contudo, antes que a sabedoria venha a ele, julgar-se sábio, levanta-se antes da aurora e anda nas trevas. E que ouve ele deste salmo? “Inútil levantar-vos antes do amanhecer”.

Que significa:

Inútil levantar-vos antes do amanhecer?” Se vos levantais antes do amanhecer, necessariamente permanecereis na vaidade, porque estareis nas trevas. Levantou-se a nossa luz que é Cristo. É bom levantar-te depois de Cristo. Não te levantes antes dele. Quais são os que se levantam antes de Cristo? Os que querem prevalecer diante dele. E quais são os que se preferem a si mesmos e não a Cristo? Os que querem ser importantes aqui na terra, onde ele foi humilde. Sejam, portanto, humildes na terra, se querem ser grandes no céu, onde Cristo está exaltado. Pois, ele falou acerca dos que aderiram a ele pela fé, entre os quais estamos nós, se nele acreditamos com coração puro:

Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo(Jo 17,24).

Grande dom, grande graça, grande promessa, meus irmãos! E quem não quer estar com Cristo onde ele está? Mas Cristo já está exaltado. Queres estar onde está quem foi exaltado? Sê humilde onde ele foi humilde. Por isso, diz aquele que é a própria luz:

Não existe discípulo superior ao mestre, nem servo superior ao seu senhor(Mt 10,24).

Os discípulos que queriam estar acima do mestre e os servos que queriam estar acima de seu senhor, queriam levantar-se antes do amanhecer. Andavam inutilmente, porque não iam atrás da luz. A estes diz o presente salmo:

Inútil levantar-vos antes do amanhecer”.

Tais eram os filhos de Zebedeu, que antes de serem humilhados segundo a paixão do Senhor, já escolhiam seus lugares, para se sentarem: um à direita e outro à esquerda. Queriam levantar-se antes da aurora; portanto, caminhavam em vão. O Senhor os reconduziu à humildade, ao ouvir seu propósito e lhes disse:

Podeis beber o cálice que estou para beber”? (Mt 20,21.22).

Vim para ser humilde e vós quereis ser elevados antes de mim? Segui-me para onde vou, disse. Pois se quereis ir para onde eu não vou, “inútil levantar-vos antes do amanhecer”.

Pedro também queria levantar-se antes da aurora, quando queria dar conselho ao Senhor de não padecer por nós. O Senhor predissera sua paixão, pela qual seríamos salvos, devido à própria humildade, pois ele sofreu humildemente. Ao predizer, portanto, a paixão, Pedro assustou-se; havia pouco antes declarado que ele era o Filho de Deus e teve medo de que morresse, e lhe disse:

Deus não o permita, Senhor! Isto jamais te acontecerá!” Queria levantar-se antes do amanhecer, e dar conselho à luz. Mas que fez o Senhor? Fez com que ele se levantasse depois que surgisse a luz:

Arreda-te de mim, Satanás(Mt 16,21-23).

Era Satanás porque queria levantar-se antes do amanhecer.

Arreda-te” de tal modo que eu preceda e tu me sigas. Deves ir aonde eu for e não me levares aonde queres ir.



§ 5
Por conseguinte diz o salmo àqueles que queriam levantar-se antes do amanhecer:

Inútil levantar-vos antes do amanhecer”.

E quando nos levantaremos? Quando tivermos sido humilhados:

Erguei-vos após terdes estado sentados”.

Levantar-se é exaltação, assentar-se representa humilhação. Em outras passagens, sentar-se representa a honra de julgar; em outras ainda, a humildade. Como assentar-se representa a honra de julgar? “Também vós vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel(Mt 19,28).

E como sentar-se é sinal de humilhação? “Fatigado da caminhada, o Senhor sentou-se junto ao poço. Era por volta da hora sexta(Jo 4,6).

Cansaço do Senhor, fraqueza do Senhor, fraqueza do poder, fraqueza da sabedoria; a própria fraqueza é humildade. Portanto, se assentou-se por fraqueza, o ato de assentar-se significa a humildade. Este assentar-se, esta humildade sua, nos salvou, porque “o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens(1 Cor 2,25).

Por este motivo diz certo salmo:

Senhor, tu me conheceste ao sentar-me e ao levantar-me(Sl 138,2), isto é, minha humilhação e minha exaltação. Por que, então, quereis levantar-vos antes do amanhecer, ó filhos de Zebedeu? Assim falamos, e de preferência nomeamos aqueles que contra nós não se encolerizarão, porque o fato foi registrado, a fim de que os demais se precavessem da soberba em que eles caíram. Por que, então, quereis “levantar-vos antes do amanhecer? É inútil”.

Quereis exaltar-vos antes de serdes humilhados? O próprio Senhor, vossa luz, foi humilhado a fim de ser exaltado. Escutai Paulo a falar:

Sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”.

Por que isso não era rapina? Porque era natureza. Nascera sendo igual àquele que o gerou. Mas o que fez? Por nossa causa, “aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, assemelhando-se aos homens. E sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz”.

Foi o ato de sentar-se. Mas ouve como foi a ressurreição:

Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo nome(Fl 2,6-9).

Vós já acorreis para junto daquele nome; “erguei-vos após terdes estado sentados”.

Levantai-vos como quereis, mas primeiro sentai-vos; e erguendo-vos deste estado de humilhação, chegareis ao reino. Pois, se vos apressais em arrebatar o reino, caís de lá antes de vos levantardes. Podeis beber o cálice que estou para beber? Eles responderam: Podemos. Então ele lhes disse: Sim, bebereis de meu cálice. Todavia, sentar à minha direita e à minha esquerda, não cabe a mim concedê-lo; mas é para aqueles aos quais meu Pai o preparou” (Mt 20,22.23).

Que quer dizer:

não cabe a mim concedê-lo?” Não me compete dá-lo aos soberbos; pois eles ainda o eram. Mas se quereis recebê-lo, deixai de ser o que sois. Para outros foi preparado; tornai-vos um destes, e será preparado para vós. Que quer dizer: tornai-vos um destes? Primeiro humilhai-vos, vós que já quereis ser exaltados. Entenderam, então, que a humildade lhes seria proveitosa e corrigiram-se. Em conseqüência disso, também nós ouçamos, conforme o que diz também este salmo:

Erguei-vos após terdes estado sentados”.



§ 6
O salmista, a fim de evitar que alguém julgue que deve sentar-se para ser honrado, e a fim de mostrar que por esse ato quis recomendar a humildade, e ainda para que ninguém pensasse que recebeu ordem de sentar-se para julgar, ou para banquetear-se e alegrar-se, com sober-ba maior, acrescentou como sinal de humilhação:

Vós que comeis o pão da dor”.

Comem o pão da dor os que gemem nesta peregrinação. Eles estão no vale de lágrimas. Deus lhes dispõe ascensões no coração. Mas onde é que ele as dispõe? “Em seu coração preparou ascensões”, diz o salmo. Quem? Deus. Se as ascensões são no coração, então eles cantam o cântico gradual. Humilhemo-nos neste mundo. Subamos. Como? Pelo coração. A ascensão do coração vem do vale de lágrimas. Diz o salmo:

No vale de lágrimas(Sl 83,6.7).

Como os montes se elevaram, os vales se abaixaram. Pois, chamam-se vales as depressões da terra; colinas são lugares mais altos, no entanto, menos do que as montanhas; as partes muito altas da terra chamam-se montanhas. Não basta. Não disse: Erguei-vos da colina; nem disse: do campo, e sim do vale, para mencionar algo de mais baixo do que o campo. Se, portanto, no vale de lágrimas comes o pão da dor, e dizes:

Minhas lágrimas noite e dia se tornaram o meu pão, quando se me diz cada dia: Onde está o teu Deus”? (Sl 41,4).

Levantas-te corretamente, porque estavas sentado.



§ 7
Supondo-se que digas: Quando nos ergueremos? Agora temos ordem de sentarmos; nossa ressurreição será como foi a do Senhor. Sê atento a ele, que te precedeu; pois se não olhas para ele, é inútil levantares antes do amanhecer. Quando ele foi exaltado? Ao morrer. Portanto, aguarda a tua exaltação após a morte, espera-a na ressurreição dos mortos, porque Cristo ressuscitou e subiu ao céu. Mas onde ele dormiu? Na cruz. Dormir na cruz era um sinal, ou antes, cumpria-se o que foi figurado em Adão. Quando Adão dormiu, foi-lhe retirada uma costela, e Eva foi criada (cf Gn 2,21-22); assim também, tendo o Senhor adormecido na cruz, seu lado foi traspassado pela lança, e profluíram os sacramentos, de onde nasceu a Igreja (cf Jo 19,34).

Pois, a Igreja, esposa do Senhor, saiu de seu lado, como Eva foi modelada do lado de Adão. Mas como Eva foi formada do lado de Adão que dormia, assim a Igreja não foi formada senão do lado de Cristo que morria. Se, pois, ele não ressuscitou senão tendo morrido, tu deves esperar a exaltação apenas depois desta vida. Mas para que o salmo te instrua, perguntas: Quando ressurgirei? Talvez depois de ter estado sentado? “Quando eu der”, diz o Senhor, “o sono a meus amigos”.

Isso é o que Deus dá, quando adormecerem seus amigos; ressuscitarão os seus amados, isto é, de Cristo. Pois todos ressuscitarão, mas não do mesmo modo que os seus amigos. A ressurreição dos mortos é de todos; mas como se exprime o Apóstolo? Ressurgiremos todos, “mas não seremos todos transformados(1 Cor 19,34).

Os outros hão de ressurgir para o castigo; nós ressuscitaremos como ressuscitou nosso Senhor, para seguirmos nossa Cabeça, se somos seus membros. Se, porém, somos seus membros, então somos seus amados, então compete-nos a ressurreição, em que o Senhor nos precedeu. A luz se levantou antes de nós, e nós depois dela; porque é inútil levantarmo-nos antes da aurora, isto é, procurar a exaltação antes de morrermos, pois Cristo, nossa luz, não foi exaltado na carne, senão depois que morreu. Estabelecidos, portanto, entre seus membros, e membros de seu amado, depois de passar pelo sono, levantar-nos-emos na ressurreição dos mortos. Somente um ressuscitou para não mais morrer. Lázaro ressuscitou, mas haveria de morrer. Ressuscitou a filha do chefe da sinagoga, mas para morrer. Ressuscitou o filho da viúva, mas para morrer (cf Jo 11,44; Mt 9,25; Lc 7,15).

Ressuscitou Cristo para não mais morrer. Escuta o que diz o Apóstolo:

Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele(Rm 6,9).

Aguarda tal ressurreição; por causa disto sê cristão, não por causa da felicidade terrena. Pois, se queres ser cristão tendo em vista a felicidade desta via, enquanto tua luz não procurou na terra uma felicidade mundana, queres levantar-te antes do amanhecer; necessariamente permanecerás em trevas. Muda, segue tua luz. Levanta-te conforme ela ressuscitou. Senta-te primeiro, depois levanta-te.

Pois o Senhor dá o sono a seus amigos”.



§ 8
3 Perguntarias ainda: A que amigos? “Herança do Senhor são os filhos, recompensa, o fruto das entranhas”.

Quando diz o salmista:

o fruto das entranhas”, esses filhos já nasceram. Existe certa mulher, em quem se revela espiritualmente o que foi dito a Eva:

Na dor darás à luz(Gn 3,16.20).

A Igreja, esposa de Cristo dá à luz seus filhos. Se gera, dá à luz. Simboliza-a Eva, denominada “mãe de todos os viventes”.

Entre os membros da parturiente encontrava-se aquele que dizia:

Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós(Gl 4,19).

Mas não foi em vão que sofreu o parto, nem que deu à luz; haverá uma santa prole na ressurreição dos mortos; os justos, que agora estão espalhados pela terra inteira, serão superabundantes. A Igreja geme por causa deles, a Igreja está de parto; na ressurreição dos mortos revelar-se-á o fruto de seu parto, passará a dor e o gemido. E que se dirá? “Herança do Senhor são os filhos, recompensa, o fruto das entranhas”.

Deste fruto, e não: este fruto.

Recompensa deste fruto das entranhas”.

Qual a recompensa? Ressuscitar dentre os mortos. Qual a recompensa? Levantar-se após ter estado sentado. Qual a recompensa? Alegrar-se após ter comido o pão da dor. De que entranhas? Da Igreja. No seu seio (porque Rebeca era tipo da Igreja), os dois gêmeos, como sendo dois povos lutavam (cf Gn 25,22.23).

Uma só mãe continha em seu seio dois irmãos em desacordo mesmo antes de nascerem; as vísceras maternas pulsavam devido às discórdias internas; ela gemia, sofria devido à violência, mas ao dar à luz distinguia os gêmeos que gerara. Assim também agora, irmãos, enquanto a Igreja geme, enquanto dá à luz, tem dentro de si bons e maus. Fruto das entranhas, porém, era Jacó, que a mãe amava de preferência.

Eu amei a Jacó, diz Deus, e odiei Esaú(Ml 1,2.3; Rm 9,13).

Ambos eram procedentes do mesmo útero; um mereceu ser amado, e o outro ser reprovado. Por conseguinte, o fruto constará dos amados. Com efeito, “recompensa, o fruto das entranhas”.



§ 9
4 “Quais setas nas mãos de um valente guerreiro são os filhos dos que foram sacudidos”.

De onde provém esta herança, irmãos? De onde vem tão grande herança, da qual se diz no fim:

Herança do Senhor, são os filhos, recompensa, o fruto das entranhas?” Foram projetados pela mão do Senhor, como setas e foram longe, encheram toda a terra, onde os santos pulularam. Esta a herança, da qual foi dito:

Pede-me e dar-te-ei as nações por herança. E como propriedade os confins da terra(Sl 2,8).

E como essa possessão se estende e cresce até os confins da terra? Porque “quais setas nas mãos de um valente guerreiro, são os filhos dos que foram sacudidos”.

Do arco se lançam as setas, e quanto maior for a sacudidela, tanto mais longe atinge a seta. Quem, porém, é mais forte para sacudir do que o Senhor? Com seu arco, lança os apóstolos; não houve resíduo que não alcançasse a seta projetada por tão forte guerreiro; chegou até os confins da terra. Não foi além, porque não há nada mais além no gênero humano. Pois, o Senhor possui tanta força que se houvesse um lugar além para lançar a seta, para lá a projetaria. Os filhos dos que foram sacudidos são como estes últimos. Foi-me perguntado a respeito desta palavra, mesmo por aqueles que antes de nós comentaram este salmo. Porque foram chamados filhos dos sacudidos, ou quem são os filhos sacudidos? Alguns emitiram a opinião, como acabo de dizer, que filhos dos sacudidos são os filhos dos apóstolos.



§ 10
V. Caridade, dê-me um pouco de atenção. Pergunta-se por que os apóstolos foram sacudidos. Alguns disseram que foram denominados assim os apóstolos, porque o Senhor lhes ordenou:

Se alguém não dá ouvidos às vossas palavras, saí daquela cidade e sacudi o pó dos vossos pés(Mt 10,14).

Mas outro dirá: Não se devia dizer filhos dos sacudidos, mas filhos dos que sacodem. O Senhor fez com que eles sacudissem, ao dizer-lhes:

Sacudi o pó dos vossos pés”.

Não disse: Sacudi-vos. Quem assim comentou essa palavra, de maneira sutil quis contradizer à sentença precedente; entretanto, à medida que o Senhor nos ajudar, ao buscarmos como se poderia afirmar com razão que eram também sacudidos aqueles aos quais ordenou o Senhor:

Sacudi o pó dos vossos pés”, descobrimos que não é absurdo assim falar. Pois, embora eles sacudissem, sacudiam-se a si mesmos. Digo o seguinte: Quem sacode, ou se sacode, ou sacode alguma coisa. Se sacode alguma coisa, enquanto sacode não é sacudido; se, porém, se sacode, sacode e é sacudido. Atenção! Explanarei de modo mais claro, se puder. Se alguém sacode um objeto, sacode e não é sacudido; se é sacudido por outrem, é sacudido e não sacode; se, porém, sacode-se a si mesmo, sacode porque sacode a si mesmo; e é sacudido porque se sacode. A questão está em saber quem terá sacudido os apóstolos. Sem dúvida, foram eles mesmos; pois, sacudiram a poeira de seus pés. Mas dirá alguém: Não se sacudiram, mas sacudiram a poeira. Sem dúvida, isto é falso. Dizemos que uma coisa é sacudida de dois modos: ou aquilo que é sacudido para longe de si, ou aquilo de onde alguma coisa é sacudida. Pois dizemos também: a poeira foi sacudida e foi sacudida a veste. Alguns seguram a veste, sacodem-na, e salta dali a poeira aderente. Como se fala sobre esta poeira? Foi sacudida. Que dizes da veste? A veste foi sacudida. Se, portanto, tanto o que saltou da veste quando se sacudia, como a veste em que aderia a poeira que saltou, se diz que foi sacudida. A poeira foi sacudida. Também os apóstolos foram sacudidos. Por que, então, não haveriam de ser chamados “filhos dos que foram sacudidos” os filhos dos apóstolos?



§ 11
Mas existe outra opinião que não devemos deixar de mencionar. Talvez estas palavras são um tanto obscuras para que tenham muitos sentidos, e os homens se enriqueçam, porque encontraram escondido o que de muitos modos se revelasse, melhor do que se encontrassem claramente exposto de uma só maneira. Dizemos que se sacode alguma coisa, para que caia o que talvez ali esteja escondido. É diferente se sacudimos uma veste ou se sacudimos a poeira; e é ainda outra coisa sacudir um saco para que caia o que estava lá dentro. Por isso entendo, irmãos, como posso, que filhos dos sacudidos seriam os próprios apóstolos, filhos dos profetas. Os profetas, de fato, continham mistérios ocultos e revelações; foram sacudidos para que dali procedessem palavras manifestas. Imagina, pois, que o profeta disse, como disse na verdade:

O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de me conhecer(Is 1,3).

No momento, ocorreu-me citar essa palavra do profeta; se me lembrasse de outra, teria dito. Ouvindo isso, poderia alguém pensar em asno, boi, animal e jumento que costuma ver e considerará exteriormente o que há interiormente, como num invólucro; desconheceria o que ali se encontra. O asno e o boi significam alguma coisa. Que dizer a quem quer logo responder? Espera; está fechado o que tocas, sacode o invólucro. O profeta teceu algo sob os véus daqueles nomes. Asno e boi significam qualquer coisa que ainda não sei. Pois, o asno é figura do povo de Deus, é o jumento de Deus que carrega seu Senhor a fim de não se desviar no caminho. E boi seria o mencionado pelo Apóstolo:

Não amordaçarás o boi que tritura o grão. Acaso Deus se preocupa com os bois? Não é sem dúvida, por causa de nós que a Escritura assim fala”? (1 Cor 9,9.10).

Com efeito, todo o pregador da palavra de Deus admoesta, repreende, atemoriza; tritura a eira, cumpre o ofício de um boi. O boi vinha do povo judaico; dali vieram, de fato, os apóstolos pregadores; o asno provinha dos gentios, isto é, das nações. Veio para carregar o Senhor; por isso o Senhor montou num jumento, que jamais havia carregado alguém; pois nem a lei, nem os profetas foram enviados aos gentios. Como nosso Senhor Jesus Cristo quis ser nosso alimento, recém-nascido foi colocado num presépio:

O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor”.

Mas, porventura essas coisas apareceriam se o saco não fosse sacudido? Se com diligência não fosse discutida a profecia que estava num invólucro, ter-nos-ia alcançado a revelação? Tudo isto estava fechado até que viesse o Senhor. O Senhor veio, sacudiu as coisas ocultas e elas se revelaram; os profetas foram sacudidos, e nasceram os apóstolos. Como nasceram depois que os profetas foram sacudidos, os apóstolos são filhos dos que foram sacudidos. Eles foram colocados nas mãos do valente guerreiro como setas e alcançaram os confins da terra. Daí dizer-se no fim do salmo:

Herança do Senhor são os filhos; recompensa, os frutos das entranhas”.

Visto que esta herança se congrega dos confins da terra, “quais setas nas mãos de um valente guerreiro são os filhos dos que foram sacudidos”, isto é, os filhos dos profetas, os apóstolos, se tornaram quais setas nas mãos de um valente guerreiro. Se é valente, sacudiu com força; se sacudiu com força, chegaram aos confins da terra os que foram sacudidos.



§ 12
5 “Feliz o homem que neles viu cumprido seu anelo”.

E então, meus irmãos, quem viu cumprido seu anelo neles? Os que não amam o mundo. Quem está cheio de desejos mundanos não dá entrada àquilo que eles pregaram. Derrama o que carregas, para te tornares capaz de reter o que não tens. Isto é, desejas as riquezas; não podes satisfazer com elas teus desejos. Desejas as honras na terra, desejas o que Deus deu até aos jumentos, isto é, a volúpia temporal, a saúde do corpo, etc.; não verás nisso cumpridos teu anelos. Se, porém, desejas como o cervo anseia pelas fontes das águas (cf Sl 41,2); se dizes: Suspira e desfalece a minha alma pelos átrios do Senhor” (Sl 83,3), cumpridos são teus anelos; não que eles possam cumprir teus desejos, mas imitando-os chegas àquele que cumpriu os desejos deles.



§ 13
Não será confundido quando pleitear com seus inimigos à porta da cidade”.

Irmãos, falamos à porta, isto é, todos sabem de que falamos. Quem não quer falar à porta, quer ocultar o que fala; e talvez queira ocultá-lo porque é mal. Se tem confiança, fale à porta; conforme se exprime a Escritura sobre a Sabedoria:

Junto às portas da cidade, fala com audácia(Pr 8,3).

Por quanto tempo os inocentes se mantiverem na justiça, não se envergonharão; é isto que significa anunciar junto à porta. E quem é que anuncia à porta? Quem anuncia em Cristo, porque é Cristo a porta pela qual ingressamos naquela cidade. Muito, se não foi ele próprio que disse:

Eu sou a porta(Jo 10,9).

Se é porta da casa (janua), é também porta da cidade (porta).

Pois, se denomina janua a porta da casa; a da cidade é porta, enquanto a porta da casa se chama janua. Não seria exato chamar de porta, se não se denominasse pelo termo: casa, a cidade. Ambas as coisas foram ditas um pouco mais acima:

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalharam os que a edificaram”.

O salmista disse ainda, a fim de que ouvindo falar de casa, não pensasses em algo de insignificante:

Se o Senhor não guardar a cidade, vigiam debalde as sentinelas”.

Aquela casa, portanto, identifica-se com a cidade. Ela tem porta (janua) como uma casa e tem porta (porta) qual uma cidade. O que é a porta (janua) para a casa, é a porta (porta) para a cidade. Se, pois, Cristo é a porta da cidade, não se envergonha aquele que permanece em Cristo e assim o anuncia. Fecha-se a porta contra aquele que prega contra Cristo. Quais são os que pregam contra Cristo? Os que negam que foram lançadas setas das mãos de valente guerreiro e alcançaram os confins da terra, e que esta é a herança do Senhor, da qual foi dito:

Pede- me e dar-te-ei as nações por herança e como propriedade os confins da terra(Sl 2,8).

Antes que isso se realizasse, foi anunciado, foi ouvido; e alguns não querem reconhecê-lo depois de cumprido. Estão, portanto, fora da porta os que disputam contra Cristo, porque buscam a própria honra e não a de Cristo. Os que anunciam junto à porta, procuram a glória de Cristo, não a sua. Quem anuncia à porta diz: Nada presumais de mim; entrareis pela porta, não por mim. Aqueles, porém, que desejam que os homens confiem em si, querem impedi-los de entrar pela porta. Não é de admirar que a porta se feche contra eles, e inutilmente batam para que se lhes abra. Coragem, portanto, irmãos; amanhã devemos fazer-vos um sermão, que prometemos cumprir com o auxílio do Senhor, acerca do evangelho sobre a pomba1. Pagaremos a promessa por misericórdia daquele em cujo nome prometemos. Mas, a fim de podermos pagar devidamente, sem termos sido audaciosos ao prometermos, rezai por nós. 1 Cf Tract. in Joh. IV, 16; V;VI.