SALMO 𝟭𝟚𝟝

Aqueles que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não pode ser abalado, mas permanece para sempre.

Como estão os montes ao redor de Jerusalém, assim o Senhor está ao redor do seu povo, desde agora e para sempre.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 125


§ 125:1  Aqueles que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não pode ser abalado, mas permanece para sempre.

§ 125:2  Ƈ Como estão os montes ao redor de Jerusalém, assim o Senhor está ao redor do seu povo, desde agora e para sempre.

§ 125:3  Porque o cetro da impiedade não repousará sobre a sorte dos justos, para que os justos não estendam as suas mãos para cometer a iniqüidade.

§ 125:4  Ƒ Faze o bem, ó Senhor, aos bons e aos que são retos de coração.

§ 125:5  ɱ Mas aos que se desviam para os seus caminhos tortuosos, levá-los-á o Senhor juntamente com os que praticam a maldade. Que haja paz sobre Israel.


O SALMO 125



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 Conforme deveis estar lembrados, dos salmos que vos comentamos por ordem este é o centésimo vigésimo quinto, que se encontra entre os salmos intitulados:

Cân-ticos graduais”.

Representa, como sabeis, a voz daqueles que sobem. Para onde, senão para a Jerusalém do alto, mãe de todos nós, que está nos céus? (cf Gl 4,26).

A Jerusalém do alto é eterna; a terrena, era sombra daquela. De fato, a terrena caiu, a outra permanece. A primeira completou o tempo de anúncio, a segunda possui a eterni-dade de nossa restauração. Da Jerusalém do alto estamos longe como peregrinos nesta vida e suspiramos por regressar para lá; somos infelizes e atribulados até que para lá voltemos. Os anjos, nossos concidadãos, nos abandonaram em nossa peregrinação, mas nos anunciaram que o próprio Rei haveria de vir até nós. E veio para o meio de nós, foi desprezado entre nós, por nós, e enfim, conosco; e ensinou-nos como nos portarmos no desprezo, porque ele foi desprezado; ensinou-nos a tolerar, porque ele tolerou; ensinou a sofrer porque sofreu; e prometeu que haveríamos de ressuscitar uma vez que ele ressuscitou, demonstrando em si mesmo o que devemos esperar. Se, portanto, irmãos, os antigos profetas, nossos pais, antes que nosso Senhor Jesus Cristo viesse na carne, antes que morresse, ressuscitasse e subisse ao céu, suspiravam por aquela cidade, quanto mais não nos convém desejar ir para onde ele nos precedeu e de onde nunca se afastou? Pois, o Senhor não veio para junto de nós, abandonando os anjos; permaneceu com eles e veio até nós; permaneceu com eles em majestade, veio até nós na carne. Nós, porém, onde estávamos. Se ele é denominado nosso redentor, estávamos cativos. Onde então estávamos detidos, para que ele viesse redimir os cativos? Onde estávamos presos? Talvez entre bárbaros? Pior do que os bárbaros é o diabo com seus anjos. Eles anteriormente detinham o gênero humano; redimiu-nos de suas mãos aquele que deu por nós, não ouro ou prata, mas seu próprio sangue.



§ 2
Interroguemos ao apóstolo Paulo como foi que o homem caiu em cativeiro. Efetivamente, Paulo geme de modo especial neste cativeiro, suspirando pela eterna Jerusalém; e ensinou-nos a gemer por intermédio do mesmo Espírito de que ele estava repleto e que o fazia gemer. Pois, assim se exprime:

A criação inteira geme e sofre até o presente”.

E ainda:

De fato, a criação foi submetida à vaidade, não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu, na esperança”.

Afirma que toda a criação, mesmo nos homens que ainda não crêem, mas haverão de crêr, toda a criação geme em dores. Acaso somente naqueles que ainda não acreditaram? E naqueles que creram não geme, a criatura em dores de parto? “E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito”, isto é, que já servimos a Deus em espírito, que já acreditamos pela mente em Deus, e apresentamos na fé certas primícias, pois havemos de seguir nossas primícias; portanto, “também nós, gememos interiormente, suspirando pela adoção, pela redenção de nosso corpo”.

Gemia, portanto, ele, e gemem todos os fiéis, esperando a adoção, a redenção de seu corpo. Onde gemem? Nesta vida mortal. Qual a redenção que esperam? A de seu corpo, que precedeu no Senhor, o qual ressuscitou dos mortos e subiu ao céu. Antes que isto nos seja concedido, faz-se mister que gemamos, mesmo que sejamos fiéis, mesmo que esperemos. Por isso naquela passagem continua o Apóstolo, depois de dizer:

Também nós, gememos interiormente, suspirando pela adoção, pela redenção de nosso corpo”, imaginando que alguém lhe dissesse: De que te serviu Cristo, se ainda gemes? E como o Salvador te salvou? Quem geme ainda está doente. Acresenta ele:

Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(Rm 8,20-25).

Eis o motivo por que gememos, e como gememos. O que esperamos, de fato esperamos, mas ainda não possuímos, e até que o consigamos, no tempo suspiramos, por desejarmos o que ainda não temos. Por quê? Porque “fomos salvos em esperança”.

Já a carne que de nós o Senhor assumiu, está salva, não em esperança, mas na plena realidade. Pois a nossa carne salva ressuscitou e subiu ao céu em nossa Cabeça; nos membros ainda deve ser salva. Os membros se alegrem com toda segurança, porque sua Cabeça não os abandonou. Pois, disse a seus membros em tribulação:

Eis que estou convosco até a consumação dos séculos(Mt 28,20).

Assim sucedeu que nos convertemos a Deus. Não tínhamos esperança a não ser neste mundo; e daí vinha que éramos servos infelizes, duplamente infelizes, porque tínhamos posto nossa esperança nesta vida, e voltáramos a face para o mundo e as costas a Deus. Quando, porém, o Senhor nos converter e começarmos a voltar a face para Deus e as costas para o mundo, nós ainda estamos a caminho, porém já tendendo para a pátria; e quando sofremos qualquer tribulação, mas nos mantemos no roteiro e vamos sobre madeiro, o vento pode ser forte, mas é próspero. Com dificuldade, de fato, mas nos conduz rapidamente; logo nos leva ao termo. Como nós gemíamos devido a nosso cativeiro, gemem também aqueles que já acreditaram. Esquecemo-nos de como nos tornamos cativos, mas a Escritura nô-lo recorda. Interroguemos o próprio apóstolo Paulo. Pois ele diz:

Sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado(Rm 7,14).

Eis o motivo de nos termos tornado cativos: fomos vendidos ao pecado. Quem nos vendeu? Nós mesmos, porque consentimos na sedução. Pudemos vender-nos, mas não podemos nos remir. Nós nos vendemos pelo consentimento no pecado, e somos redimidos pela fidelidade à justiça. Pois foi pago por nós o preço do sangue inocente, a fim de sermos remidos. Que espécie de sangue derrama todo aquele que persegue os justos e derrama seu sangue? O diabo derramou, efetivamente, o sangue dos justos; derramou o sangue dos profetas, de nossos pais, dos justos e dos mártires. Todos, porém, de uma raça pecadora. Mas, somente um sangue foi derramado de alguém que não foi justificado, porque nasceu justo; uma vez derramado aquele sangue, o diabo perdeu aqueles que ele retinha presos. De fato, por eles foi pago o sangue inocente, foram redimidos; e voltando do cativeiro, cantam este salmo.



§ 3
Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião, ficamos como que consolados”.

Queria dizer: Ficamos alegres. Quando? “Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião”.

Qual Sião? A própria Jerusalém, a Sião eterna. Como Sião é eterna, e como é cativa Sião? Nos anjos, ela é eterna, nos homens é cativa. Pois, nem todos os cidadãos daquela cidade são cativos; mas os que estão fora dela são cativos. O homem é cidadão de Jerusalém, mas vendido como escravo ao pecado, tornou-se peregrino. De sua descendência nasceu o gênero humano e encheu as terras do cativeiro de Sião. E este cativeiro de Sião como é sombra daquela Jerusalém? É sombra daquela, Sião que os judeus receberam como imagem, e que foi figurada no cativeiro de Babilônia; depois de setenta anos, o povo voltou à sua cidade (cf Jr 25,11; 29,10; 1Esd 1,1ss).

Setenta anos significam todo o tempo que decorre num ciclo de sete dias. Quando tiver passado todo o tempo, então voltaremos também nós a nossa pátria, assim como aquele povo depois de setenta anos voltou do cativeiro de Babilônia. Babilônia, de fato, é este mundo, pois Babilônia se traduz por: Confusão. Vede se não é confusão a vida toda a humana. Tudo aquilo que os homens fazem por uma vã esperança, quando reconhecerem o que fazem, haverão de se envergonhar. Por que razão trabalham? Para quem trabalham? Para meus filhos, respondem. E eles, para quem? Para seus filhos. E estes, para quem? Para seus filhos. Por conseguinte, ninguém para si mesmo. Desta confusão já se haviam convertido aqueles aos quais se dirige o Apóstolo nesses termos:

E que frutos colhestes então daquelas coisas de que agora vos envergonhais”? (Rm 6,21).

Uma confusão, portanto, é toda essa vida dedicada às coisas humanas, e não pertencente a Deus. Nesta confusão, nesta Babilônia, Sião é mantida em cativeiro; mas o Senhor reconduz os repatriados de Sião.



§ 4
Ficamos como que consolados”, isto é, alegramo-nos, como que recebendo um consolo. Precisam de consolo apenas os infelizes, os que gemem, os que choram. Por que “como consolados” senão porque ainda gememos? Gememos na realidade, somos consolados em esperança. Quando os acontecimentos passarem, passar-se-á do gemido à alegria eterna, quando não será mais necessário consolo algum, porque não seremos atacados por nenhuma infelicidade. Por que então disse o salmista:

como que consolados” e não apenas: consolados? Nem sempre se trata de semelhança, quando se emprega esta palavra:

como que, sicut”.

Sicut às vezes se refere ao sentido próprio, outras vezes a uma semelhança. Agora trata-se do sentido próprio. Vamos dar um exemplo da maneira habitual de falarem os homens, para que se entenda mais facilmente. Quando dizemos: Como viveu o pai, assim vive o filho, estamos comparando; e: Como o animal, assim morre o homem; diz-se isto como uma comparação. Ao dizermos, porém: Agiu como um bom homem, acaso não se trata de um homem bom, mas somente de uma aparência de homem bom? Agiu como um justo; esse “como”, não nega que ele fosse justo, mas mostra uma qualidade sua. Agiste como um senador. Se ele disser: Então, não sou senador, responderás: Ao contrário, como és senador, agiste como um senador; e como és justo, agiste como um justo; e como és bom, agiste como um homem bom. Por conseguinte, como estes estavam verdadeiramente consolados, alegravam-se “como que consolados”, isto é, grande era sua alegria, como a dos consolados. Consolava os que haviam de morrer aquele que morreu. Pois todos nós morremos gemendo; consolou-nos aquele que morreu para não temermos a morte. Foi o primeiro a ressuscitar a fim de termos o que esperar. Tendo sido o primeiro a ressuscitar, trouxe-nos a esperança. Estávamos na miséria e fomos consolados com a esperança; daí provém a maior alegria. E como o Senhor reconduziu nossos repatriados, já temos um caminho de regresso do cativeiro, em direção à pátria. Já redimidos, portanto, não temamos os nossos inimigos que nos armam ciladas no caminho. O Senhor nos remiu a fim de que o inimigo não ouse nos armar ciladas, se não nos desviarmos do caminho. Pois, o próprio Cristo se fez o caminho (cf Jo 14,6).

Queres não sofrer da parte dos ladrões? Ele te diz: Abri-te um caminho para a pátria; não te afastes dele. Defendi este caminho de tal sorte que o ladrão não ouse aproximar-se. Não te desvies dele, e o ladrão não ousará aproximar-se de ti. Anda, portanto, em Cristo e canta alegre, canta como consolado, porque te precedeu aquele que ordenou que o seguisses.



§ 5
2 “Encheu-se de risos a nossa boca e a nossa língua de cantos de alegria”.

Como se enche de risos, meus irmãos, a boca que temos no corpo? Não costuma encher-se senão de alimento, bebida, ou qualquer outra coisa que lá metermos. Enche-se por vezes a nossa boca; e dizemos mais a V. Santidade: quando temos a boca cheia não podemos falar. Temos, porém, interiormente uma boca, isto é, no coração, de onde tudo o que procede; se é mal, mancha-nos, se é bom, nos purifica. Ouviste falar a respeito dessa boca, quando era lido o evangelho. Os judeus atacavam o Senhor, porque seus discípulos comiam sem lavar as mãos (cf Mt 15,1).

Eles insultavam; tinham a pureza exterior, mas interiormente estavam cheios de manchas; os que tinham a justiça apenas aos olhos dos homens insultavam. O Senhor, porém, procurava a nossa pureza interior; se ela existir, necessariamente o que está no exterior será puro.

Limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior fique limpo(Mt 23,26).

O mesmo Senhor diz em outra passagem:

Antes, dai o que tendes em esmola e tudo ficará puro para vós(Lc 11,41).

De onde, porém, procede a esmola? Do coração. Se estendes a mão, mas não te compadeces de coração, nada fizeste; se, porém, te compadeces de coração, mesmo que não tenhas o que oferecer, Deus aceita a tua esmola. Aqueles iníquos, contudo, buscavam a pureza exterior. Deste número era o fariseu que convidara o Senhor, quando se aproximou a mulher que era pecadora na cidade, de má fama, e que lavou com lágrimas os pés do Senhor, enxugou-os com os cabelos, ungiu-os com ungüento. O fariseu, no entanto, que convidara o Senhor, e tinha a pureza apenas exteriormente no corpo, mas tinha o coração cheio de iniqüidade e de rapina, disse a si mesmo:

Se esse homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que lhe toca os pés(cf Lc 7,36-50).

Como podia saber se o Senhor conhecia ou não? Mas pensou que ele desconhecia, porque não a repeliu. Se tal mulher se aproximasse do fa-riseu, ele que tinha a pureza na carne aparentemente, teria insultado, repelido, rejeitado, para que a mulher imunda não tocasse a ele que estava puro e não contaminasse sua pureza. Como o Senhor não agiu deste modo, supôs que ele não sabia quem era a mulher que lhe tocava os pés. O Senhor, contudo, não somente a conhecia, mas ouvia também os pensamentos do fariseu. Se o contacto corporal produz alguma coisa, ó imundo fariseu, a carne do Senhor poderia ser manchada com o contato da mulher, ou antes a mulher se purificaria ao contato com o Senhor? O médico, com efeito, permitia que a doente tocasse o remédio; e aquela que o procurara conhecia o médico, e ela que era insolente talvez em sua fornicação, tornou-se mais insolente para obter a salvação. Irrompeu na casa onde não era convidada; mas estava chagada, e ali viera, onde o médico estava à mesa. Aquele que convidara o médico, pensava que estava sadio; por isso, não foi curado. Sabeis como o evangelho continua, como o fariseu foi confundido, ao lhe demonstrar o Senhor que conhecia aquela mulher e descobrira os seus pensa- mentos.



§ 6
Mas voltemos ao ponto que acaba de ser lido no evangelho, e que tem relação com o presente versículo:

Encheu-se então de risos a nossa boca e a nossa língua de cantos de alegria”.

Perguntamo-nos que boca e que língua. V. Caridade esteja atenta. Atacaram o Senhor, porque seus discípulos comiam sem lavar as mãos. O Senhor lhes respondeu como era conveniente, e tendo chamado as turbas, disse:

Ouvi-me todos e entendei! Nada há no exterior do homem que, penetrando na boca, o possa tornar impuro, e sim o que sai do homem(cf Mt 15,1-20; Mc 7,5-23).

Que significa isto? Tendo dito o evangelista:

O que entra pela boca”, designa a boca que está no corpo. Pois entram os alimentos, e os alimentos não mancham o homem, visto que “para os puros, todas as coisas são puras(Tt 1,15).

E:

Tudo o que Deus criou é bom, e nada é desprezível, se tomado com ação de graças(1 Tm 4,4).

Entre os judeus havia certas coisas que eram ditas impuras, figuradamente (cf Lv 11,4ss).

Mas depois que veio a luz, as sombras se dissiparam. Não estamos presos à letra, mas somos vivificados pelo espírito; e não é imposto aos cristãos o jugo da observância, que era imposto aos judeus; pois o Senhor disse:

O meu jugo é suave e o meu fardo é leve(Mt 11,30).

E diz o Apóstolo:

Para os puros, todas as coisas são puras; mas para os impuros e descrentes, nada é puro; tanto a mente como a consciên-cia deles estão corrompidas(Tt 1,15).

Que quis dar a entender? Para o puro tanto o pão como a carne de porco são puros, para o impuro, nem o pão nem a carne de porco são puros.

Para os impuros e descrentes, nada é puro”.

Por que nada é puro? “Tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas”.

Se o que está no interior é impuro; do que está fora, nada pode ser puro. Se, portanto, para aqueles cujo interior é impuro, o exterior não pode ser puro, se quiseres que o exterior seja puro, purifica o interior. Lá se encontra a boca que se encherá de risos mesmo quando calas; pois quando calas e te alegras, tua boca clama por Deus. Mas vê qual o motivo de tua alegria. Se te alegras por causa do mundo, clamarás por Deus com uma alegria impura; se, porém, te alegras por causa de tua redenção, como diz este salmo:

Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião, ficamos como que consolados”, então encheu-se de risos a tua boca e tua língua de cantos de alegria. É evidente que te alegras na esperança, e é agradável a Deus tua alegria. Com esta alegria, comemos e bebemos, com a boca que temos no interior. Como a boca carnal serve para a refeição do corpo, assim a outra para a refeição do coração. Daí a palavra:

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).



§ 7
Se, porém, não torna impuro senão o que sai da boca, e isto nós o ouvimos do evangelho, e o entendemos a respeito da boca do corpo, seria absurdo e loucura pensarmos que o homem não se torna impuro quando come, e julgarmos que fica impuro se vomita. Pois, o Senhor disse:

Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isso sim o torna impuro”.

Ao comeres não te tornas impuro; e se vomitares, te tornas impuro? Quando bebes, não és impuro; e quando cospes, és impuro? Pois, quando cospes, sai alguma coisa de tua boca. Que quis dizer o Senhor:

Não é o que entra pela boca, mas o que sai, que torna o homem impuro?” Outro evangelista, na mesma passagem, disse que são as coisas que saem da boca, para entenderes que não se referia à boca corporal, mas à boca do coração. De fato, disse:

Com efeito, é do coração que procedem más intenções, forni-cações, assassínios, blasfêmias. São essas coisas que tornam o homem impuro; mas o comer sem lavar as mãos não o torna impuro(Mt 15,11.19.20).

Essas coisas, portanto, meus irmãos, saem da boca, porque “procedem do coração”, conforme diz o próprio Senhor. Não é quando as nomeamos que nos tornamos impuros. Ninguém diga: Quando falamos tais coisas, elas saem de nossa boca, porque as palavras e os sons são emitidos por nossa boca; e quando falamos coisas más, tornamo-nos impuros. Se alguém não fala, e apenas pensa coisas más, está puro, porque de sua boca carnal nada saiu? Mas o que proferiu a boca do coração Deus já o ouviu. Aí está, meus irmãos. Prestai atenção ao que digo. Nomeio o furto; agora mesmo nomeio o furto; acaso por que nomeei o furto, o furto me contaminou? Saiu de minha boca e não me tornou impuro. O ladrão, porém, surge de noite, e nada profere com a boca, mas praticando o mal torna-se impuro. Não somente não falou, mas conteve o crime com um silêncio completo; tinha medo até de que fosse ouvida sua voz, e não queria que soasse nem o ruído de seus passos; pelo fato de calar-se a esse ponto, está limpo? Digo mais, meus irmãos. Eis que ele ainda está esticado em sua cama e não se levantou para praticar o furto; acorda e espera que os homens durmam; já clama diante de Deus, já é ladrão, já está impuro, já procedeu o crime de sua boca interior. Com efeito, quando o crime saiu de sua boca? Quando a vontade determinou praticá-lo. Decidiste fazer o mal; falaste, fizeste. Se não praticaste exteriormente o furto, talvez aquele que te dispunhas a despojar não merecia o prejuízo; ele nada perdeu, tu serás condenado por furto. Decidiste matar alguém; falaste em teu coração, o homicídio procedeu de tua boca interior; o homem ainda está vivo e tu és culpado de homicídio. Importa o que és junto de Deus e não o que aparentas entre os homens.



§ 8
Certamente já sabemos e devemos saber e reter na memória que existe uma boca do coração, uma língua do coração. Essa boca se enche de alegria; com essa boca, em nosso íntimo, rezamos a Deus, quando os lábios estão cerrados, mas a consciência está presente. Tudo em silêncio, mas clama o coração; a que ouvidos? Não aos do homem, mas aos de Deus. Fica, portanto, tranqüilo; ouve aquele que tem compaixão. De outro lado, se ninguém ouve as palavras más que procedem de tua boca, não confies, porque ouve aquele que condena. Susana não era ouvida pelos juízes injustos; calava-se e orava. Os homens não escutavam o que saía de seus lábios, seu coração clamava por Deus. Por acaso, uma vez que sua voz não foi emitida pela boca corporal, não mereceu ser escutada? (cf Dn 13,35ss).

Foi atendida; quando orava, homem algum o sabia. Por conseguinte, irmãos, pensai no que temos na boca interior. Cuidar de não proferir coisa alguma iníqua interiormente e nada de mal fazer exteriormente. O homem não pode fazer exteriormente coisa alguma que não tenha dito interiormente. Guarda a boca do coração de todo mal, e serás inocente; inocente será a língua do corpo, inocentes as mãos, inocentes também os pés, os olhos serão inocentes, os ouvidos; todos os teus membros combaterão pela justiça, porque o imperador justo tomou-te o coração.



§ 9
2.3 “Então se dirá entre as nações: Grandes coisas o Senhor fez por eles. Grandes coisas o Senhor fez por nós. Nós nos regozijamos”.

Vede, irmãos, se agora Sião não profere essas palavras no meio dos povos, por todo o orbe da terra; verificai se não acorre o povo à Igreja. Na terra inteira é recebido o sangue que é nosso preço e se responde: Amém. Repitam, portanto, no meio dos povos os jerosolimitanos cativos, os jerosolimitanos repatriados, peregrinos que suspiram por sua pátria. O que dizem? “Grandes coisas o Senhor fez por nós. Nós nos regozijamos”.

Acaso eles mesmos o fizeram a si? Fizeram o mal a si mesmos, porque venderam-se ao pecado. Veio o redentor, e fez-lhes o bem e “grandes coisas o Senhor fez por eles. Grandes coisas o Senhor fez por nós. Nós nos regozijamos”.



§ 10
4 “Reconduzi nossos cativos, Senhor, como a torrente no sul”.

V. Caridade, preste atenção para saber o que é isto. Já dissera o salmista:

Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião”.

Parecia falar do passado; mas o profeta costuma falar como se fosse passado o que prenuncia do futuro. Falava como se fosse de um fato passado o salmista, em outra passagem de um salmo:

Traspassaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos(Sl 21,17).

Não disse: hão de traspassar; não disse: contarão, não disse: dividirão entre si as minhas vestes; não disse: sobre a minha túnica lançarão sortes. Eram eventos futuros, e eram cantados como feitos do passado. Pois, tudo o que há de vir, para Deus já está feito. Neste salmo, portanto, tendo dito:

Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião, ficamos como que consolados. Encheu-se de risos a nossa boca e nossa língua de cantos de alegria”; no intuito de mostrar que sob a figura do passado, ele pensava no futuro, disse:

Então se dirá entre as nações”.

Se dirá, já se trata do futuro.

Grandes coisas o Senhor fez por nós. Nós nos regozijamos”.

Ao serem cantados esses versículos, os fatos eram futuros, mas parecem presentes. Reza, portanto, como se fosse do futuro, quem cantava o futuro como passado:

Reconduz nossos cativos, Senhor”.

Os cativos ainda não tinham sido repatriados, porque ainda não viera o Redentor. Por isso, quando foram cantados os salmos, já se realizou o que então se pedia:

Reconduz, Senhor, nossos cativos, como a torrente no sul”.

Converte nossos cativos como se voltam as torrentes no sul. Pergunta-se o que quer dizer isto; mas logo se esclarecerá, com o auxílio de Deus e de vossas orações. A Escritura em determinado lugar, ordenando e admoestando sobre as boas obras diz:

Como gelo ao sol, assim os teus pecados serão dissolvidos(Eclo 3,15).

Efetivamente, os pecados nos prendiam. Como? Como o frio impede que a água corra. E nós, presos pelo frio de nossos pecados, gelamos. O sul é um vento quente; quando sopra o vento sul, o gelo se derrete, e enchem-se as torrentes. Chamam-se todavia torrentes os rios hibernais; elas correm impetuosas, repentinamente cheias com as águas do degelo. Tínhamos, portanto, ficado gelados no cativeiro; nossos pecados nos oprimiam; soprou o vento sul do Espírito Santo, nossos pecados foram perdoados e fomos libertados do gelo da iniqüidade; como o gelo ao sol, nossos pecados se dissolvem. Corramos em direção à pátria, como as torrentes no sul. Por muito tempo labutamos, e labutamos mesmo na prática do bem. Pois a própria vida humana em que ingressamos é infeliz, cheia de trabalhos, dores, perigos, tribulações, tentações. Não vos deixeis seduzir pelo gozo das coisas humanas; notai o que há de lastimável nas coisas humanas. A criança ao nascer poderia primeiro rir; por que começa a viver pelo choro? Ainda não sabe rir; por que já sabe chorar? Porque começa a ingressar na vida. Quanto àqueles cativos, aqui choram e gemem; mas virá a alegria.



§ 11
5 Prossegue o salmo:

Os que semeiam entre lágrimas, ceifarão com alegria”.

Semeemos nesta vida, que é repleta de lágrimas. O que semearemos? Boas obras. As obras de misericórdia são nossas sementes. Destas sementes fala o Apóstolo:

Não desanimemos na prática do bem, pois, se não desfalecermos, a seu tempo colheremos. Por conseguinte, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas sobretudo com os irmãos na fé(Gl 6,8-10).

Como se expressa ele a respeito das esmolas? “Sabei que quem semeia com parcimônia, com parcimônia também colherá(2 Cor 9,6).

Portanto, quem semeia muito, “colherá muito, quem semeia com parcimônia, com parcimônia também colherá”, e quem nada semeia, nada colherá. Por que desejais grandes campos, para lançardes muitas sementes? Mais amplo terreno onde podereis semear não existe do que Cristo, que quis receber as sementes. Vossa terra é a Igreja; semeai quanto puderdes. Mas tendes pouco para isso. Tens a boa vontade. Como nada seria o que tendes, sem a boa vontade, assim também se não tens, não te entristeças, se tens boa vontade. Pois, que é que semeias? A misericórdia. E o que é que colhes? A paz. Por acaso disseram os anjos: Paz na terra aos homens ricos? Disseram sim:

Paz na terra aos homens de boa vontade(cf Lc 2,14).

Zaqueu tinha uma vontade magnânima, grande caridade. Recebeu o Senhor como hóspede, recebeu-o alegremente, e prometeu dar metade de seu patrimônio aos pobres, e devolver ao quádruplo se tivesse tirado algo de alguém (cf Lc 19,6.8).

Assim se entende que ele guardou metade, não para ter posses, mas para poder pagar o que devia. Vontade magnânima; deu muito, semeou muito. Então aquela viúva (cf Sl 21,1-4) que lançou duas moedinhas no tesouro, semeou pouco? Ao contrário, tanto quanto Zaqueu. Oferecia bens menores, mas tinha uma boa vontade igual. Lançou as duas moedinhas de tão boa vontade quanto Zaqueu distribuiu metade de seu patrimônio. Se ponderas o que deram, encontrarás quantias diversas; se observas de onde provinham, encontrarás vontades iguais. Ela deu tudo o que tinha, ele deu o que tinha.



§ 12
Imagina que alguém não possui nem duas moedas; existe algo de menor valor a semear, a fim de obtermos aquela messe? Existe:

E quem der, nem que seja um copo d’água fria a um de meus discípulos, não perderá a sua recompensa(Mc 9,40; Mt 10,42).

Um copo d’água fria não custa duas moedas, mas é gratuito; contudo, às vezes o que é gratuito, um tem e outro não tem. Se, pois, quem tem der àquele que não tem, deu tanto, se deu com inteira caridade, deu tanto quanto a viúva ao dar duas moedinhas, quanto Zaqueu ao distribuir metade de seus bens. Não foi inútil ter acrescentado:

fria”, para mostrar como é pobre. Disse, pois:

Um copo d’água fria? para que alguém não se desculpasse por não ter lenha para esquentar a água.

Quem der um copo de água fria a um desses pequeninos, não perderá a sua recompensa”.

E se não tiver nem isso? Fique sossegado, se não tiver nem isso:

Paz na terra aos homens de boa vontade(cf Lc 2,14).

Receie apenas ter e não dar. Pois, se tem e não faz a boa obra, interiormente gelou; seus pecados ainda não foram apagados como a torrente no sul, porque sua vontade é fria. De que valem tantos bens que possuímos? Acrescente-se uma vontade ardorosa, e já se dissolve ao calor do vento do sul; apesar de nada ter, tudo lhe é computado. Como se ajudam os mendigos! Observe V. Caridade como se pratica a esmola. Certamente são os mendigos que recebem esmola, eles precisam. Talvez atendeis a vossos irmãos, se precisam de alguma coisa; dais, se Cristo está em vós, até aos estranhos. Mas se eles são mendigos, que têm a profissão de pedir, nas necessidades eles também têm como se ajudar mutuamente. Deus não os abandona; dá-lhes oportunidade de se provar que fazem esmolas. Um não pode andar; quem pode andar, empresta seus pés ao coxo; quem vê, empresta os olhos ao cego; o jovem sadio empresta suas forças ao velho doente, carrega-o. Um é indigente e o outro é rico.



§ 13
Às vezes um rico mostra-se pobre e um pobre lhe presta algum auxílio. Chega alguém às margens de um rio. É tanto mais delicado quanto mais rico. Não pode atravessar. Se atravessasse com pés descalços, resfriaria, adoeceria, morreria. Aparece um pobre, com um corpo mais exercitado. Atravessa o rico, faz-lhe uma esmola. Por isso, não consideres pobres apenas os que não têm dinheiro. Nota em que é pobre cada qual. Talvez és rico naquilo em que ele é pobre, e tens o que lhe emprestar. Talvez emprestas teus membros e é mais do que se emprestasses dinheiro. Precisa de um conselho e tu és cheio de prudência; em prudência ele é pobre e tu és rico. Eis que nem trabalhas, nem perdes coisa alguma; dás um conselho e fizeste uma esmola. Agora, meus irmãos, enquanto falamos, sois quais outros pobres ao nosso lado; e do que Deus se dignou dar-nos, nós vô-lo transmitimos. E todos dele recebemos, pois só ele é rico. Assim se mantém o corpo de Cristo. Os membros associados assim se coadunam e unem-se na caridade e no vínculo da paz, quando cada qual dá ao que não tem daquilo que tem. É rico com aquilo que tem; relativamente ao que não tem é pobre. Assim amai-vos uns aos outros, assim tende caridade mútua. Não atendais somente a vós mesmos; mas atendei aos necessitados em torno de vós. Mas não desanimeis porque isto custa nesta vida trabalhos e tribulações. Semeais entre lágrimas, para colherdes com alegria. E então, meus irmãos? Quanto o próprio agricultor, quando sai com o arado e leva a semente, algumas vezes o vento não está frio e a chuva o assusta? Observa o céu, vê que está carregado, treme de frio, todavia avança e semeia. Tem receio de que, se esperar passar o dia nublado e aguardar um dia claro, passe a época e depois não tenha o que colher. Não deveis adiar, meus irmãos; semeai no inverno, semeai as boas obras, mesmo chorando; porque “os que semeiam entre lágrimas, ceifarão com alegria”.

Lançam suas sementes: boa vontade e boas obras.



§ 14
6 “Ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes”.

Por que choravam? Por se acharem entre infelizes; e eram infelizes. Seria melhor, irmãos, que não existissem infelizes do que precisares praticar a misericórdia. Quem, a fim de praticar a misericórdia, preferir que haja infelizes, tem uma misericórdia cruel. Seria como o médico que para exercer a medicina desejasse que houvesse muitos doentes; seria uma medicina cruel. É melhor que todos estejam sadios do que exercer-se a medicina. É melhor, portanto, que todos reinem felizes naquela pátria do que haver alguns a quem se possa oferecer a misericórdia. No entanto, enquanto existam os que necessitam de misericórdia, não desanimemos nesta tribulação de espalhar sementes. Apesar de semearmos com lágrimas, colheremos com alegria. Pois, na ressurreição dos mortos cada qual receberá seus feixes, isto é, o produto da semeadura, a coroa de alegrias e exultação. Então será o triunfo dos que se alegram e desafiam a própria morte, que os fazia gemer; dir-lhe-ão:

Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão”? (1 Cor 15,55).

Mas por que já se alegram? Porque “trazem os seus feixes. Ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes”.

Por que, “lançando suas sementes?” Porque “os que semeiam em lágrimas, ceifarão com alegria”.



§ 15
Neste salmo vos exortamos principalmente a prati-cardes a misericórdia, porque assim se sobe; e vedes que aquele que sobe canta o cântico gradual. Tende na memória; não ameis descer e não subir. Pensai na subida. Aquele que descia de Jerusalém a Jericó, caiu em poder de ladrões (cf Lc 10,30).

Não descesse e não encontraria ladrões. Já Adão desceu e caiu em poder dos ladrões; pois todos nós somos Adão. Mas o sacerdote passou e menosprezou; passou o levita e desprezou, porque a lei não pôde curar. Passou certo samaritano, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo. A ele foi dito:

Não dizíamos, com razão, que és samaritano e tens um demônio? Ele não disse: Não sou samaritano; mas disse: Eu não tenho demônio(Jo 8,48).

Samaritano se traduz por: Guarda. Se dissesse: Não sou samaritano, teria dito: Não sou guarda. Que outro guarda teríamos? Em seguida, narra a parábola:

Certo samaritano chegou junto dele e moveu-se de compaixão(Lc 10,33), como sabeis. O homem jazia ferido no caminho, porque desceu. O samaritano de passagem, não nos desprezou: cuidou de nós, colocou-nos no jumento, sua carne, levou à hospedaria, isto é, à Igreja; recomendou ao hospedeiro, isto é, aos apóstolos; deu dois denários para que fosse cuidado, a caridade a Deus e ao próximo; desses dois mandamentos depende toda a lei e os profetas (cf Mt 22,40).

Disse ao hospedeiro:

O que gastares a mais, em meu regresso te pagarei(Lc 10,35).

O Apóstolo deu mais, pois como a todos os apóstolos fora permitido receber como soldados de Cristo o estipêndio dos funcionários de Cristo, trabalhou com as próprias mãos, e doou seu salário aos provinciais (cf 1 Cor 4,12; 1Ts 2,7-9; 2Ts 3,8.9).

Tudo isso se realizou. Se descemos e fomos feridos, subamos, cantemos, avancemos para chegarmos ao termo.