ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 124 | ||
§ 124:1 | ᶊ Se não fora o Senhor, que esteve ao nosso lado, ora diga Israel: | |
§ 124:2 | ᶊ Se não fora o Senhor, que esteve ao nosso lado, quando os homens se levantaram contra nós, | |
§ 124:3 | ⱻ Eles nos teriam tragado vivos, quando a sua ira se acendeu contra nós; | |
§ 124:4 | ɑ as águas nos teriam submergido, e a torrente teria passado sobre nós; | |
§ 124:5 | ʂ sim, as águas impetuosas teriam passado sobre nós. | |
§ 124:6 | Ꞗ Bendito seja o Senhor, que não nos entregou, como presa, aos dentes deles. | |
§ 124:7 | ⱻ Escapamos, como um pássaro, do laço dos passarinheiros; o laço quebrou-se, e nós escapamos. | |
§ 124:8 | Ꝋ O nosso socorro está no nome do Senhor, que fez os céus e a terra. | |
O SALMO 124 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | 1.2 Este salmo, pertencente ao número dos cânticos graduais (título de que já falamos muito nos outros salmos, e não queremos repetir aqui, para não suceder ocasionarmos mais confusão do que instrução), ensina-nos, ao subirmos e erguermos nossas almas ao Senhor nosso Deus com afetos de amor e piedade, a não nos impressionarmos com os que prosperam neste mundo, com uma felicidade falsa, aérea e inteiramente sedutora. Esta felicidade nutre apenas o orgulho, e o coração deles permanece frio em relação a Deus e impenetrável à chuva de sua graça, de sorte a não frutificar. Eles, presumindo de que têm tudo com fartura do que é necessário ao sustento da vida presente, e além do necessário, se exaltam; e sendo homens inferiores a todos pela malícia, julgam-se superiores a todos os homens, devido à soberba. Oxalá se considerassem ao menos iguais aos outros. Vendo e observando demais, por vezes, a tais homens, mesmo os que adoram a Deus, vacilam e hesitam, como se estivesse perdida a recompensa dos que cultuam a Deus, por se verem em trabalhos, em pobreza, em tribulação, com doenças e dores, passando necessidade, e notam que outros têm saúde corporal, fartura de bens temporais, alegram-se com a incolumidade dos seus, florescem com o brilho das honrarias; e estes não apenas não adoram a Deus, mas ainda são adversários de todos os homens; observando-os, hesitam e repetem interiormente o que está claramente escrito em outro salmo: “Como sabe Deus? Ou será que o Altíssimo tem conhecimento? São assim os pecadores e opulentos no mundo; aumentam suas riquezas. E prossegue: Foi então inutilmente que justifiquei meu coração e lavei minhas mãos entre os inocentes”? (Sl 72,11-13). Por acaso fui um tolo querendo viver com justiça e inocência no meio dos homens, quando sei que os que não querem conservar a inocência, gozam de tamanha felicidade e os felizes em sua iniqüidade injuriam os justos? | |
§ 2 | Mas, quem foi que proferiu essas palavras do salmo? Alguém que ainda não tinha reto o coração. Foi assim que começou o salmo que acabamos de citar (não este que agora empreendemos meditar e comentar), nesses termos: “Como sabe Deus? Ou será que o Altíssimo tem conhecimento? São assim os pecadores e opulentos no mundo, aumentam suas riquezas. Foi então inutilmente que justifiquei meu coração e lavei minhas mãos entre os inocentes”? (Sl 72,11-13). Com efeito, o salmo em que vedes a alma periclitando, os pés quase resvalando, assim começa: “Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração! Os meus pés quase escorregaram e por um triz não resvalaram os meus passos. Por quê? Ao ter inveja dos maus, observando a paz dos pecadores” (Sl 72,1-3). Aquele que olhou e inspecionou a felicidade dos pecadores e verificou que gozavam de paz, enquanto ele estava em tribulação, declara que por isso seus pés se abalaram e quase resvalaram seus passos, caindo para sua ruína, longe de Deus. Narrou isto, porém, quando já escapara, e tendo-se corrigido de coração aderira a Deus; narrou seus perigos passados. Portanto, “é bom o Deus de Israel”. Mas, para quem? “Para os retos de coração”. Quais são os retos de coração? Os que não acusam a Deus. Quais são os retos de coração? Os que orientam sua vontade conforme a vontade de Deus e não se esforçam por dobrar a vontade de Deus à sua. É um curto preceito: que o homem corrija seu coração. Queres ter um coração reto? Cumpre o que Deus quer; e não procures que faça Deus o que tu queres. São corações perversos, isto é, não têm o coração reto os que se sentam e discutem como Deus devia agir; não louvam o que fez, mas criticam. Querem corrigi-lo; ainda não basta que não queiram ser corrigidos por ele, mas dizem: Deus não devia fazer os pobres, mas somente deviam existir os ricos; eles somente deviam viver. Para que o pobre? Para que vive? Censuram o Deus dos pobres. Quanto melhor seria que fosse ele um pobre de Deus, e seria rico dos dons de Deus, isto é, seguiria a vontade de Deus, e veria que sua pobreza é temporal, transitória, enquanto no futuro serão suas as riquezas espirituais que de forma alguma podem acabar; e teria como riqueza a fé no coração, se não lhe sucede ter ouro no cofre? Se tivesse ouro no cofre, teria medo do ladrão, e mesmo não querendo perderia o ouro do cofre; quanto à fé do coração não a perderia se ele mesmo não a expulsasse de lá. Rapidamente, porém, se poderia responder, caríssimos irmãos. Deus fez o pobre, para experimentar os homens; e Deus fez o rico para experimentá-lo acerca do pobre. E tudo o que Deus fez, fez bem. Se não podemos ver seu plano, o motivo porque fez um assim e outro assim, é bom subme-termo-nos à sua sabedoria, e acreditarmos que fez bem todas as coisas, mesmo desconhecendo ainda por que o fez; e teremos um coração reto, presumindo do Senhor e nele confiando. Nossos pés não se abalarão, e acontecer-nos-á em nossa subida o que se encontra no começo deste salmo: “Os que confiam no Senhor, são como o monte de Sião, não serão abalados eternamente”. | |
§ 3 | Quem são eles? “Os que habitam em Jerusalém”. Eles mesmos “não serão abalados eternamente, os que habitam em Jerusalém”. Se entendermos que se trata da Jerusalém terrena, todos os que lá habitavam foram expulsos pelas guerras e destruição da própria cidade; se agora procuras um judeu na cidade de Jerusalém, não encontras. Por que, então, “não serão abalados eternamente os que habitam em Jerusalém”, senão por existir outra Jerusalém, da qual estais acostumados a ouvir muitas coisas? Ela é nossa mãe, pela qual suspiramos e gememos nesta peregrinação, até que voltemos para lá. Desviamo-nos dela, e não encontrávamos caminho; veio o próprio Rei e tornou-se caminho para nós, a fim de podermos voltar para lá. Nela é que “se detiveram os nossos pés, nos átrios de Jerusalém”, conforme ouvistes num salmo gradual anterior, que já expusemos e comentamos em vossa presença. Por esta cidade, suspirava o salmista que cantava: “Jerusalém, construída como uma cidade, que participa em idipsum” (Sl 121,2-3). Seus habitantes, portanto, “não serão abalados eternamente”. Foram abalados os habitantes da Jerusalém terrena; primeiro no coração, depois no exílio. Quando foram abalados no coração e caíram, então crucificaram o Rei da Jerusalém do alto. Já estavam fora espiritualmente e expulsaram o próprio Rei. Lançaram-no para fora de sua cidade e o crucificaram fora. E ele os expulsou de sua cidade, isto é, da Jerusalém eterna, mãe de todos nós, que está nos céus (cf Mt 27,32; Jo 19,17.18). | |
§ 4 | Como é esta Jerusalém? Descreve-a brevemente o salmo. “Montes estão em torno dela”. Tem alguma importância estarmos numa cidade cercada de montanhas? É esta toda a nossa felicidade, termos uma cidade cercada de montanhas? Acaso não sabemos o que são montanhas? Ou que são as montanhas a não ser elevações de terra? Existem, pois, outros montes amáveis, excelsos, pregadores da verdade, quer sejam anjos, quer apóstolos quer profetas. Estes estão em torno de Jerusalém; cercam-na e formam em torno dela uma espécie de muralha. A Escritura se refere assiduamente a estes montes amáveis e deleitáveis. Notai-o ao ouvirdes ou lerdes; em muitas passagens encontrareis referência a montes deleitá-veis, que não podemos mencionar. Contudo, quanto o Senhor nos sugerir, apraz-nos falar muitas coisas a respeito destes montes: e os testemunhos divinos das Sagradas Letras vêm à nossa lembrança. São montes iluminados por Deus; primeiro são iluminados, e através deles a luz atinge os vales ou as colinas, que não são tão altas quanto os montes. Por meio deles, quer na profecia, quer nos apóstolos, quer no evangelho é que a Escritura nos é ministrada. Destes montes cantamos: “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio”, porque nesta vida vem-nos o auxílio por meio da Escritura. Mas, visto que os próprios montes não se protegem a si mesmos, nem por si cuidam de nós, nem nossa esperança deve estar depositada nos montes, para não sermos amaldiçoados por depormos num homem a nossa esperança (cf Jr 17,5), já dissera o salmista: “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio. O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 120,1.2). São os montes dos quais diz ainda o salmista: “Recebam os montes a paz para o povo e as colinas a justiça” (Sl 71,3). As montanhas são grandes e as colinas, menores. Os montes, portanto, vêem e as colinas acreditam; os que vêem, receberam a paz e transmitiram-nos aos que crêem. Pois os que crêem, recebem a justiça; efetivamente o justo vive da fé (cf Rm 1,17). Os anjos vêem, anunciam o que vêem e nós acreditamos. Pois, disse João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Ele via e nos anunciou para que crêssemos. E recebendo a paz através dos montes, as colinas receberam a justiça. Com efeito, que disse ele dos próprios montes? Não afirmou: Têm a paz por si mesmos, ou instituem a paz, ou geram a paz, mas recebem a paz. Do Senhor é que recebem a paz. Levanta, portanto, teus olhos aos montes por causa da paz, a fim de que teu auxílio venha do Senhor, que fez o céu e a terra. Além disso, o Espírito Santo alude àqueles montes, nesses termos: “Vieste, esplendente de luz, das montanhas eternas” (Sl 75,5). Não disse que os montes iluminam, mas: “Vieste, esplendente de luz, das montanhas eternas”. Por meio destes montes, que quiseste fossem eternos, a pregar o evangelho, tu “vies-te, esplendente de luz” e não os montes. Tais “montes”, portanto, estão “em torno” de Jerusalém. | |
§ 5 | E a fim de conhecerdes quais são os montes que estão em torno dela, logo que a Escritura cita montes bons, é muito raro e difícil, ou mesmo jamais deixa de imediatamente nomear o Senhor, ou o assinala simultaneamente, a fim de que a esperança não seja depositada nos montes. Vede quantas coisas relembrei. “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio” e a fim de não parares nisso, disse: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra”. E ainda: “Recebam os montes a paz para o povo” e tendo dito: “recebam”, mostra que outra é a fonte da paz de onde eles recebem. E ainda: Iluminando “dos montes”, mas o salmista acentua: “tu, vieste, esplendente de luz, das montanhas eternas”. De novo, neste salmo, tendo dito: “Montes estão em torno dela”, para que desta vez ainda não parasses nos montes, logo acrescentou: “Cerca também o Senhor ao seu povo”, a fim de que tua esperança não esteja nos montes, mas naquele que ilumina os montes. Como ele habita nos montes, isto é, nos santos, ele cerca também o seu povo; e ele mune seu povo de uma defesa espiritual, a fim de não ser abalado eternamente. Ao contrário, quando a Escritura se refere aos montes maus, não acrescenta a palavra: Senhor. Tais montes, conforme já dissemos freqüentemente, significam certas almas grandes, mas malvadas. Pois, não penseis, irmãos, que as heresias foram criadas por algumas almas pequenas. Não criaram heresias, senão grandes homens; mas quanto maiores, eram piores esses montes. Pois, não eram montes que recebessem a paz para que as colinas recebessem a justiça; mas eles receberam as dissensões do diabo, seu pai. Por conseguinte, eram montes; cautela para não te refugiares em tais montes. Pois, podem vir alguns que te dirão: Grande varão, grande homem! Assim foi Donato! Tal é Maximiano! E certo Fotino, que homem foi! E aquele Ario que homem foi! Nomeou todos esses montes, montes, porém, que causam naufrágio. Vedes que deles cai uma faísca de palavra, e acende-se uma pequena chama. Se navegais num barco de madeira, durante a noite, isto é, na escuridão desta vida, não vos enganem, nem orienteis para ali a nave; ali se acham rochedos, que causam grandes naufrágios. Se, portanto, forem louvados diante de ti esses montes, e alguns começarem a te persuadir a procurares esses montes, como te trazendo auxílio e repouso, responde: “No Senhor eu confio. Por que dizeis a minha alma: Foge para os montes como o pássaro”? (Sl 10,2). É bom para ti ergueres os olhos para aqueles montes de onde te virá o auxílio do Senhor, e escaparás como pássaro do laço dos caçadores, sem fugires para os montes. Pois, o pás-saro é instável; move-se rapidamente, rapidamente voa daqui para ali. Mas tu confia no Senhor, e serás como o monte de Sião; não serás eternamente abalado, não fugirás para os montes como o pássaro. Acaso ao nomear ali os montes queria falar do Senhor? | |
§ 6 | Mas, ama os montes, nos quais se acha o Senhor. Então os próprios montes te amarão, se neles não puseres tua esperança. Vede, irmãos, quais são os montes de Deus. Pois eles assim são nomeados em outra passagem: “A tua justiça é como as montanhas de Deus” (Sl 35,7). Não a justiça deles, mas “a tua justiça”. Escuta o Apóstolo, um dos tais montes: “Para ser achado nele, não tendo a justiça da lei, mas a justiça que vem de Deus, apoiada na fé em Cristo” (Fl 3,9). Aqueles, contudo, que por sua justiça quiseram ser montes, como certos judeus, ou alguns fariseus dentre seus príncipes, assim são censurados: “Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (Rm 10,3). Os que estão sujeitos à justiça de Deus, se estão elevados, mantém-se humildes. E como são grandes, denominam-se montes, mas como estão sujeitos a Deus, são vales; e como são capazes de piedade, recebem abundância de paz, e transmitem essas águas transbordantes às colinas. Agora, no entanto, vê que montes deves amar. Se queres que os bons montes te amem, não deposites tua esperança nesses bons montes. Pois, que espécie de monte era Paulo? Quando se encontrará outro igual? (Refiro-me às grandezas humanas). É possível encontrar com facilidade quem possua graça em tal grau? E no entanto, receava que aquele pássaro colocasse nele a esperança. Como se exprime? “Paulo teria sido crucificado em vosso favor”? (1 Cor 1,13). Mas, ergui os olhos para os montes para ver de onde vos virá o auxílio; porque “eu plantei, Apolo regou”, mas vosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra, pois é Deus quem fazia crescer (1 Cor 3,6). Conseqüentemente, “montes estão ao redor dela”. Mas, como “montes estão ao redor dela”, assim “também o Senhor cerca o seu povo, desde agora e para sempre”. Se, portanto, “montes estão em torno dela, e cerca o Senhor o seu povo”, o Senhor congrega seu povo num só vínculo de caridade e de paz, de tal sorte que aqueles que confiam no Senhor sejam como o monte de Sião e não se abalem eternamente, isto é, “desde agora e para sempre”. | |
§ 7 | 3 “O Senhor não deixará o cetro dos pecadores sobre a sorte dos justos, para que não estendam os justos suas mãos à iniqüidade”. Agora, de fato, os justos pelejam um tanto, e os injustos às vezes dominam os justos. De que maneira? Por vezes, os injustos obtêm as honrarias do século; quando as alcançarem e se tornarem, por exemplo, juízes, ou reis, porque Deus assim age para disciplina de seu povo, não se pode deixar de exibir-lhes a honra devida a seu poder. Pois, Deus assim dispôs na sua Igreja, de forma que todo poder estabelecido no mundo recebe honra, por vezes dos que são melhores. Para exemplo, digo um só fato. Daí podeis calcular os graus de todos os poderes. O primeiro e cotidiano poder de um homem sobre outro é o do senhor sobre o escravo. Quase todas as casas têm essa espécie de poder. Existem senhores e escravos. São denominações diferentes; enquanto homens e homens são nomes de seres iguais. E como se expressa o Apóstolo, ao ensinar aos servos a serem sujeitos a seus senhores? “Servos, obedecei a vossos senhores” segundo a carne, porque existe um senhor segundo o espírito. É o senhor verdadeiro e eterno; os outros são temporais, segundo a época. Cristo não quer te fazer soberbo, enquanto caminhas pela via, enquanto vives nesta vida. Acontece que te tornas cristão e tens um senhor humano; não te tornaste cristão para desdenhares servir. Ao seguires a ordem de Cristo, servindo a um homem, não serves a ele, e sim àquele que o ordenou. Assim diz o Apóstolo: “Servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, em simplicidade de coração, servindo-os, não quando vigiados, para agradar aos homens, mas como servos de Cristo, que atendem à vontade de Deus com toda a alma, com boa vontade” (Ef 6,5.6). Eis que ele não nos transformou de servos em homens livres, e sim de maus servos em bons servos. Quanto não devem os ricos a Cristo, que lhes pôs em ordem a casa! Se lá havia um escravo infiel, Cristo o converta e não lhe dirá: Abandona teu senhor; já conheces o verdadeiro Senhor. Talvez ele seja ímpio e iníquo e tu já és fiel e justo. Não convém que um justo e fiel sirva a um iníquo e infiel. Ele assim não se expressou, mas antes disse: Serve. E para fortalecer o servo disse: Serve segundo meu exemplo; fui o primeiro a servir aos iníquos. Pois, o Senhor que suportou tamanhos sofrimentos, de quem suportou, senão o senhor de seus servos? E de que servos, a não ser dos malvados? De fato, se fossem bons servos, teriam honrado o Senhor. Mas como eram maus servos, o injuriaram. Que fez ele, em contra-posição? Pagou o ódio com amor. Pois disse: “Pai, perdoa-lhes, não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Se o Senhor do céu e da terra, por quem tudo foi feito, serviu os indignos, rogou pelos homens cruéis e enfurecidos, e como médico mostrou-se em sua vinda (pois também os médicos, homens melhores por seus conhecimentos de medicina, servem os doentes), quanto mais não deve o homem prezar servir a um senhor, mesmo que seja mau, de toda alma, de toda boa vontade, com todo amor? Eis que o melhor serve o pior, mas durante algum tempo. Isso que falei acerca das relações entre senhor e escravo, aplicai-o aos potentados e aos reis, a todas as dignidades deste mundo. Pois, às vezes, os potentados são bons, e temem a Deus; outras vezes, não temem a Deus. Juliano foi um imperador infiel, foi apóstata, iníquo, idólatra; soldados cristãos serviram o imperador infiel. Enquanto serviam a causa de Cristo, não reconheciam senão aquele que estava no céu. Se alguma vez ele queria que adorassem um ídolo, oferecessem incenso, eles antepunham Deus ao imperador. Quando, porém, lhes dizia: Entrai em fileira, marchai contra aquele povo, logo obedeciam. Distinguiam o senhor eterno do senhor temporal; entretanto eram submissos, por causa do senhor eterno, também ao senhor temporal. | |
§ 8 | Mas, acaso será sempre assim, que iníquos governem justos? Não. Vede o que diz este salmo: “O Senhor não deixará o cetro dos pecadores sobre a sorte dos justos”. Sente-se durante algum tempo o cetro dos pecadores dominando a sorte dos justos; mas não ficará assim, não será assim eternamente. Virá tempo em que somente Deus será reconhecido; virá tempo quando Cristo em sua glória aparecerá e reunirá perante si todas as gentes, dividi-las-á, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; colocará as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda (cf Mt 25,32.33). E verás ali muitos servos no meio das ovelhas e muitos senhores entre os cabritos; de outro lado, há muitos senhores entre as ovelhas e muitos servos entre os cabritos. Com efeito, se consolamos assim os servos, nem todos os servos são bons; ou se assim reprimimos a soberba dos senhores, nem todos os senhores são maus. Existem senhores bons e fiéis e existem maus senhores; existem servos bons e fiéis e existem maus servos. Mas se servos bons servem a maus senhores, que eles os suportem por algum tempo: “O Senhor não deixará o cetro dos pecadores sobre a sorte dos justos”. Por quê? “Para que não estendam os justos suas mãos à iniqüidade”, para que suportem temporariamente o domínio dos iníquos, entendam que isso não dura eternamente, e preparem-se para possuir a herança eterna. Que herança? Quando for destruído todo principado e todo poder, para que Deus seja tudo em todos (cf 1Cor, 15,24.28). Reservando-se para isso, contemplando-o com o coração e retendo-o pela fé, persistindo para o verem, não estendem “suas mãos à iniqüidade”. Efetivamente, se constatarem que o cetro dos pecadores está sempre sobre a sorte dos justos, pensam consigo mesmos e dizem: Que me adianta ser justo? O iníquo sempre me dominará e sempre serei servo? Pratique, portanto, também eu a maldade, porque nada serve manter-me na justiça. A fé lhe insinua, a fim de que não fale desta maneira, que temporariamente pode estar o cetro dos pecadores sobre a sorte dos justos, mas “o Senhor não o deixará sobre a sorte dos justos, para que não estendam os justos suas mãos à iniqüidade”, mas abstenham-se suas mãos da iniqüidade, suportem a maldade e não a pratiquem. É preferível sofrer injustiça a praticá-la. Por que não será sempre assim? Porque “o Senhor não deixará o cetro dos pecadores sobre a sorte dos justos”. | |
§ 9 | 4 Este o modo de pensar dos que são retos de coração e que mencionei um pouco acima. Seguem a vontade de Deus, não a sua. Todavia, os que querem seguir a Deus, deixam que ele os preceda e seguem-no. Não querem pre-cedê-lo e fazer com que os siga. Em tudo reconhecem que ele é bom, quer emende, quer console, quer exercite, quer coroe, quer purifique, quer ilumine, conforme a palavra do Apóstolo: “E nós sabemos que tudo coopera para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8,28). Por isso, prossegue o salmista: “Senhor, faze o bem aos bons e aos retos de coração”. | |
§ 10 | 5 Como, porém, o reto de coração aparta-se do mal e faz o bem (cf Sl 36,27), porque não tem inveja dos maus, observando a paz dos pecadores (Sl 72,3), assim o de coração perverso, que se escandaliza com os caminhos do Senhor, afasta-se de Deus e pratica o mal, preso às suavidades do mundo, e por elas amarrado e apanhado, sofre amargas penas. Para aquele que se afasta de Deus, não querendo sujeitar-se a sua disciplina, o juízo de Deus faz com que a falsa felicidade dos maus se torne para eles um verdadeiro laço. Por isso logo acrescenta o salmo: “Mas aos que se desviam para a extorsão, o Senhor os levará com os obreiros da injustiça”, cujas ações eles imitaram, porque amaram suas alegrias do presente e não acreditaram nos futuros suplícios. Os que têm o coração reto e não se apartam de Deus, que terão? Já iremos à herança, irmãos, pois somos filhos. Que possuiremos? Qual a nossa herança? Qual a nossa pátria? Como se chama? Paz. Por meio dela vos saudamos, nós vô-la anunciamos; que os montes a recebem e as colinas, a justiça (cf Sl 71,3). Cristo é a paz: “Ele é a nossa paz; de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação” (Ef 2,14). Como somos filhos, teremos a herança. E qual o nome da herança, a não ser paz? E vede que são deserdados os que não amam a paz. Não amam a paz, contudo, os que dividem a unidade. Paz é a possessão dos homens piedosos, a possessão dos herdeiros. E quais são os herdeiros? Os filhos. Escutai o evangelho: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Escutai ainda a conclusão deste salmo: “Paz sobre Israel!” Israel: Aquele que vê a Deus; Jerusalém significa: Visão de paz. Entenda, V. Caridade. Israel significa: Aquele que vê a Deus, e Jerusalém: Visão de paz. Quais os que “não serão abalados eternamente? Os que habitam em Jerusalém”. Não serão, portanto, abalados eternamente os que habitam na visão de paz. “Paz sobre Israel!” Por conseguinte, Israel que vê a Deus, vê a paz; Israel é também Jerusalém, porque é povo de Deus, cidade de Deus. Se, portanto, quem vê a paz é o mesmo que vê a Deus, com razão se diz que o próprio Deus é a paz. Efetivamente, Cristo, Filho de Deus, é a paz, e veio reunir os seus e separá-los dos iníquos. De que iníquos? Dos que odiaram Jerusalém, que odiaram a paz, que querem romper a unidade, que não acreditam na paz, que prometem uma paz falsa ao povo, e não a possuem. Ao lhes ser dito: A paz esteja convosco, e responderem: E com o teu espírito, proferem-no com falsidade, e escutam falsamente. A quem dizem: A paz esteja convosco, se eles os separam da paz de toda a terra? E a quem dizem: E com o teu espírito? Os que abraçam as dissensões, odeiam a paz. Se, pois, a paz estivesse em seu espírito, não amariam a unidade e abandonariam a dissensão? Por isso, falando com falsidade, ouvem falsidade. Nós, ao contrário, falemos a verdade, e escutemo-la. Sejamos Israel e abracemos a paz, porque Jerusalém é visão de paz, e nós somos Israel. “Paz sobre Israel!” | |