SALMO 𝟭𝟚𝟚

Jerusalém, que és edificada como uma cidade compacta, aonde sobem as tribos,

as tribos do Senhor, como testemunho para Israel, a fim de darem graças ao nome do Senhor.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 122


§ 122:1  Alegrei-me quando me disseram: Vamos à casa do Senhor.

§ 122:2  Os nossos pés estão parados dentro das tuas portas, ó Jerusalém!

§ 122:3  Jerusalém, que és edificada como uma cidade compacta,

§ 122:4  ɑ aonde sobem as tribos, as tribos do Senhor, como testemunho para Israel, a fim de darem graças ao nome do Senhor.

§ 122:5  Pois ali estão postos os tronos de julgamento, os tronos da casa de Davi.

§ 122:6  Orai pela paz de Jerusalém; prosperem aqueles que te amam.

§ 122:7  Haja paz dentro de teus muros, e prosperidade dentro dos teus palácios.

§ 122:8  Por causa dos meus irmãos e amigos, direi: Haja paz dentro de ti.

§ 122:9  Por causa da casa do Senhor, nosso Deus, buscarei o teu bem.


O SALMO 122



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
Empreendi comentar por ordem a V. Santidade cânticos de alguém que sobe, que sobe e ama, sobe porque ama. Todo amor sobe ou desce. Pois, os bons desejos nos elevam a Deus e os maus nos precipitam no abismo. Uma vez, porém, que já caímos devido aos maus desejos, cabe-nos, se conhecemos aquele que não caiu, contudo desceu para junto de nós, aderir a ele e subir, visto que por nossas próprias forças não o podemos. Disse-nos ele, nosso Senhor Jesus Cristo:

Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do homem que está no céu(Jo 3,13).

Parece referir-se somente a si mesmo. Então, os demais ficaram, se subiu apenas quem desceu? Que devem fazer os restantes? Unir-se a seu corpo, constituindo um só Cristo, que desceu e subiu. Desceu a Cabeça, subiu com o corpo, revestido de sua Igreja, que apresentou a si mesmo, sem mancha, nem ruga (cf Ef 5,27).

Portanto, subiu sozinho. Mas, nós também subimos se estamos com ele, membros nele incorporados. Conosco ele é único, um só, e sempre um só. A unidade nos agrega neste único homem. Somente com ele não sobem os que não quiserem ser com ele um só. Efetivamente, ele se acha no céu, com a carne ressuscitada é imortal, tendo sido mortal por algum tempo. No céu não sofre perseguição, nem ultrajes ou opróbrios, como se dignou sofrer por nós na terra. No entanto, compadecido de seu corpo a pelejar na terra, disse:

Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4).

Ninguém o tocava mais, entretanto clamava do céu que sofria perseguição. Por isso, não devemos perder a esperança; ao invés, havemos de presumir com maior confiança, porque se ele, devido à caridade, está conosco na terra, pela mesma caridade também nós estamos com ele no céu. Mostramos de que maneira ele está na terra conosco, por meio da voz proferida do alto do céu:

Saulo, Saulo, por que me persegues?” enquanto Saulo absolutamente não o atingia, nem mesmo o via. Como, então, se manifesta que igualmente estamos com ele no céu? Por palavras do mesmo apóstolo Paulo:

Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra. Pois morrestes e vossa vida está escondida com Cristo em Deus(Cl 3,1.3).

Por conseguinte, ele ainda está embaixo e nós já estamos no alto com ele. Está ele na terra pela compaixão da caridade e nós estamos no alto, por causa da esperança da caridade.

Pois fomos salvos em esperança(Rm 8,24).

Todavia, visto que é certa a nossa esperança, apesar de se tratar de evento futuro, fala-se relativamente a nós como já tendo sido realizado.



§ 2
1 Suba, portanto, esse cantor. Cante este homem do interior do coração de cada um, e cada qual seja este homem. Se alguém repete este canto separadamente, visto que todos sois um em Cristo, é aquele homem único que fala. E não diz: Erguemos nossos olhos a ti, Senhor, e sim:

Ergo meus olhos a ti, Senhor”.

Deveis considerar, efetivamente, que é cada um de vós que fala; mas principalmente fala aquele homem único, que se acha espalhado por todo o orbe da terra. Fala aquele único, que em outra passagem assim se exprimiu:

Dos confins da terra clamei a ti, quando meu coração se angustiava(Sl 60,3).

Quem é que clama dos confins da terra? Quem é este homem único, espalhado até os confins da terra? Cada qual da região onde habita pode clamar; acaso clama dos confins da terra? A herança de Cristo, porém, da qual foi dito:

Dar-te-ei as nações por herança e como propriedade os confins da terra(Sl 2,8), assim proclama:

Dos confins da terra clamei a ti, quando meu coração se angustiava”.

Angustie-se nosso coração e clamemos. De que modo se angustia o nosso coração? Não da maneira como se angustiam os malvados, por exemplo, pelo fato de sofrerem prejuízo material; pois se é assim que se angustia o nosso coração, trata-se apenas de cinzas. Se perdes algum dos teus, segundo a vontade de Deus, e com isso se angustia o coração, que há de extraordinário nisso? Igualmente por isso se angustiam os corações dos infiéis; também o padecem os que ainda não acreditaram em Cristo. Por que se angustia o coração do cristão? Porque ainda não vive com Cristo. Por que se angustia o coração do cristão? Porque ainda é peregrino e anela pela pátria. Se é assim que se angustia o teu coração, embora sejas feliz segundo o modo de pensar do mundo, ficas gemendo; mesmo que tudo prospere e o mundo te sorria em tudo, gemes no entanto, porque te vês como peregrino. Percebes, de fato, que tens a felicidade que é tal aos olhos dos estultos, mas ainda não de acordo com as promessas de Cristo. Procurando-a gemes, procurando-a desejas e com este anelo sobes, e enquanto sobes cantas o “Cântico gradual”; e cantando o “Cântico gradual”, dizes:

Ergo meus olhos a ti que habitas nos céus”.



§ 3
Ao subir, para onde haveria o salmista de erguer os olhos, a não ser para o lugar a que visava e para onde de-sejava subir? Pois, subiu da terra ao céu. Eis que a terra que calcamos aos pés está em baixo e no alto está o céu, que vemos com nossos olhos. E subindo cantamos:

Ergo meus olhos a ti que habitas nos céus”.

Onde estão, então, as escadas? Verificamos que é tão grande a distância entre o céu e a terra, tão grande a separação, tão vasto o espaço; queremos subir para lá e não vemos escadas. Acaso nós nos enganamos, por cantarmos um “Cântico gradual”, isto é, um cântico de subida? Subimos ao céu, se pensamos em Deus, que dispôs ascensões em nossos corações. Que significa subir pelo coração? Progredir em direção a Deus. Quem desanima não desce, cai; assim quem avança, sobe, mas se avançar de tal modo que não tenha orgulho, se subir sem quedas; mas se ao avançar orgulha-se, cai novamente enquanto sobe. Mas o que fazer para não se orgulhar? Erga os olhos para aquele que habita no céu, sem dar atenção a si próprio. Pois, todo soberbo olha para si mesmo e comprazendo-se em si, julga-se muito importante. Mas, quem agrada a si mesmo, agrada a um estulto, porque o fato mesmo de comprazer-se em si é tolice. Compraz-se com segurança somente quem agrada a Deus. E quem é que apraz a Deus? Aquele a quem Deus apraz. Deus não pode ter desprazer por si mesmo; que ele te agrade, a fim de lhe agradares. Ele, porém não poderá te aprazer, se te comprazes em ti. Se desagradas a ti mesmo, retira os olhos de ti. Para que dás atenção a ti mesmo? Se te olhares como convém, encontrarás em ti des-prazer; e dirás a Deus:

O meu pecado está sempre diante de mim(Sl 50,5).

Esteja sempre o teu pecado diante de ti, a fim de não estar diante de Deus; também tu, não fiques diante de ti, para estares diante de Deus. Da mesma forma que não queremos que Deus desvie de nós o seu rosto, assim queremos que desvie a face de nossos pecados; pois cantamos ambas as coisas nos salmos.

Não desvies de mim a tua face”: é a voz de um salmo e portanto é a nossa voz. O salmista pede:

Não desvies de mim a tua face”; vê como suplica em outro salmo:

Desvia a tua face de meus pecados(Sl 50,11).

Se queres que desvie a sua face de teus pecados, desvia de ti a tua face, porém não a desvies de teus pecados. Pois, se deles não apartares a tua face, hás de te irritar contra teus pecados; se, contudo, não desvias o rosto de teus pecados, tu os reconheces e Deus os perdoa.



§ 4
Além disso, retira os olhos de ti mesmo e ergue-os para ele, dizendo:

Ergo meus olhos a ti que habitas nos céus”.

Se, meus irmãos, entendermos por céus materialmente o céu que vemos com nossos olhos corporais, de fato erraremos, e pensaremos que subiremos para lá somente por escadas ou por outros meios; se, porém, subimos espiritualmente, devemos entender espiritualmente a palavra céu; se a subida é através dos afetos, o céu se acha na justiça. Que é, então, o céu de Deus? Todas as almas santas, todas as almas justas. Com efeito, também os apóstolos, embora estivessem corporalmente na terra, eram céus, porque o Senhor assentado sobre eles, percorria todo o mundo. Por conseguinte, ele habita no céu. Como? Conforme diz outro salmo:

No entanto, habitas no santuário, ó glória de Israel(Sl 21,4).

Habita no céu, habita no santuário.

Que é “santuário” senão o seu templo? Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós(1 Cor 3,17).

Mas, todos os que ainda são fracos e caminham pela fé (cf 1Cor 5,7), segundo a fé são templo de Deus; serão um dia, na plena realidade, templo de Deus. Por quanto tempo são templos de Deus pela fé? Enquanto neles Cristo habitar pela fé, conforme a palavra do Apóstolo:

Cristo habite pela fé em vossos corações(Ef 3,17).

Existem, contudo, agora céus nos quais Deus habita realmente, e que o vêem face a face: todos os santos anjos, todas as santas Virtudes, Potestades, todos os Tronos, Dominações, aquela Jerusalém celeste longe da qual peregrinamos gemendo e que suplicamos desejando-a. Ali Deus habita. Para lá o salmista ergueu os olhos da fé, para lá subiu com seus afetos e desejos. Este anelo faz a alma expelir as imundícies dos pecados e purificar-se de toda mancha, a fim de se tornar também ela um céu, pois ergueu os olhos àquele que habita no céu. Pois se compreendermos que a habitação de Deus é este céu material que vemos com nossos olhos, passará a habitação de Deus, visto que passarão céus e terra (cf Mt 24,25).

Além disso, onde habitava Deus, antes de criar o céu e a terra? Mas perguntará alguém: E antes de criar os santos, onde habitava? Deus habitava em si mesmo, habitava junto de si, junto de si está Deus. E quando se digna habitar nos santos, estes não constituem a casa de Deus de tal forma que se esta for destruída, Deus caia. Deus habita nos santos de modo diverso do que nós habitamos em nossas casas. Moras numa casa; se ela for retirada, caio. Deus habita nos santos. Se ele se retira os san-tos caem. Todos os que são portadores de Deus, templo de Deus, não pensem que o sustentam de tal maneira que Deus tenha receio de que eles se furtem. Ai daqueles de quem Deus se afastar, porque cai; pois Deus em si sempre permanece. As casas onde habitamos, nos contêm; aqueles onde Deus habita, ele é quem os contém. Já verificaste a grande diferença entre nossas moradias e a habitação de Deus; e assim reza a alma:

Ergo meus olhos a ti que habitas nos céus”, entendendo bem que Deus não precisa nem mesmo do céu para habitar; mas o céu é que dele necessita, a fim de que Deus nele habite.



§ 5
2 Qual a continuação do versículo:

Ergo meus olhos a ti que habitas nos céus?” Como ergueste teus olhos? “Sim, como os olhos dos servos se fixam nas mãos de seus senhores, e como os olhos da serva nas mãos de suas senhoras, assim os nossos olhos estão fitos no Senhor até que de nós se compadeça”.

Somos servos e serva; e Deus é Senhor e senhora. Que significam estas palavras? Que figuram essas comparações? V. Caridade, dê-me um pouco de atenção. Não é de admirar que sejamos servos e ele seja o senhor; mas é estranho que sejamos serva e ele seja senhora. Mas não é estranho sermos serva, porque somos Igreja; nem é de admirar que ele seja senhora, pois é a virtude e a sabedoria de Deus. Escuta como fala o Apóstolo:

Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus(1 Cor 1,23.24).

O povo já é servo, e a Igreja serva; “Cristo, virtude de Deus e sabedoria de Deus”; ouviste ambas as coisas:

Cristo, virtude de Deus e sabedoria de Deus”.

Ao ouvires a palavra Cristo, ergue os olhos para as mãos de teu Senhor; ao ouvires falar de virtude de Deus e de sabedoria de Deus, ergue os olhos para as mãos de tua senhora, porque és servo e serva: servo porque és povo; serva, porque és Igreja. Com efeito, a própria serva encontrou grande dignidade junto de Deus: tornou-se esposa. Mas até que chegue àqueles amplexos espirituais, quando seguramente gozará daquele a quem ama e por quem suspirou durante esta longa peregrinação, é esposa; e recebeu grandes arras, o sangue do esposo, pelo qual suspira com segurança. Não se lhe diz: Não ames, como se diz por vezes a uma jovem noiva, antes do casamento e com razão: Não ames; depois de te tornares cônjuge, ama. Diz-se isto com razão porque é desejo precipitado e despropositado, e não casto, amar aquele que ela não sabe se a desposará. Pode acontecer que um seja o noivo e outro o marido. Ao invés, como não há outro preferível a Cristo, a Igreja ame com segurança; antes de se unir a ele, ame, e suspire de longe, de uma distante peregrinação. Somente ele a desposará, porque foi o único a dar-lhe tal penhor. Quem pode se casar, morrendo por aquela a quem quer desposar? Se quiser morrer por ela, não existirá mais para se casar. Cristo, porém, morreu com confiança por sua esposa; ressuscitado haveria de desposá-la. Entretanto, irmãos, por enquanto sejamos como servos e serva. O Senhor efetivamente disse:

Não mais vos chamo servos, mas amigos(Jo 15,15); talvez o disse apenas aos discípulos? Escuta a palavra do apóstolo Paulo:

De modo que já não és escravo, mas filho. E se és filho, és também herdeiro, graças a Deus(Gl 4,7).

Dirigia-se ao povo, aos fiéis. Com efeito, já redimidos em nome do Senhor, por meio de seu sangue, purificados pelo batismo, somos filhos, somos um filho, porque somos muitos de tal sorte que nele somos um só. Por que razão, então, ainda falamos como se fôssemos servos? Acaso podemos ter tanto mérito na Igreja, apesar de já sermos filhos, de servo que éramos, quanto teve o próprio apóstolo Paulo? No entanto, como escreve na epístola? “Paulo, servo de Cristo Jesus(Rm 1,1).

Se aquele que nos pregou o evangelho, ainda se denomina servo, quanto mais devemos nós reconhecer nossa condição, a fim de ser maior em nós a sua graça? Em primeiro lugar, transformou os redimidos em servos. Aquele sangue foi o preço dado pelos servos, foi o penhor dado pela esposa. Reconhecendo, portanto, a nossa condição (embora já sejamos filhos pela graça, somos servos enquanto criaturas, porque todo o criado serve a Deus), digamos:

Como os olhos dos servos se fixam nas mãos de seus senhores, e como os olhos da serva nas mãos de sua senhora, assim os nossos olhos estão fitos no Senhor nosso Deus até que de nós se compadeça”.



§ 6
Declarou também qual a razão por que como os olhos dos servos se fixam nas mãos de seu senhor e os olhos da serva nas mãos de sua senhora, “assim os nossos olhos estão fitos no Senhor nosso Deus”.

Como se perguntasses: Para quê? “Até que de nós se compadeça”.

Que servos o salmista quis dar a entender, irmãos, servos que fixam os olhos nas mãos de seus senhores; e quais são as servas que fixam os olhos nas mãos de sua senhora, até que sua senhora se compadeça? Quem são estes servos e servas, que têm os olhos fixos nas mãos de seus senhores, senão porque eles querem castigá-los? “Assim os nossos olhos estão fitos no Senhor nosso Deus até que de nós se compadeça”.

Como? “Como os olhos dos servos se fixam nas mãos de seus senhores e como os olhos da serva nas mãos de sua senhora”.

Portanto, eles e elas, até que seu senhor, ou sua senhora se compadeça. Imagina, pois, que um senhor tenha ordenado castigar o servo: é batido, sente as dores das chagas e olha as mãos de seu senhor, até que ele diga: Basta. Chama de mão o próprio poder. E então, que dizer, meus irmãos? Nosso senhor mandou castigar-nos, e nossa senhora, a sabedoria de Deus, ordenou que fôssemos batidos; nesta vida somos flagelados e toda esta vida mortal é a nossa chaga. Escuta a palavra do salmo:

Por causa da iniqüidade castigaste o homem e fizeste consumir-se qual aranha a minha alma(Sl 38,12).

Observai, irmãos, como a aranha é frágil; com uma leve batida é esmagada e morre. O salmista, tendo em mira que não pensássemos que somente a nossa carne é frágil devido à fraqueza mortal, não disse: Fizeste com que me consumisse, para não entendermos que se tratava da carne, mas disse:

Fizeste consumir-se qual aranha a minha alma”.

Pois, nada é mais fraco do que nossa alma, entre as tentações do mundo, no meio dos gemidos e das aflições que surgem; nada de mais fraco até que adquira à solidez celeste, e esteja no templo de Deus, de onde não cairá mais; pois antes de chegar a esta fraqueza e debilidade, fez-se frágil como a aranha e foi expulsa do paraíso. Então, veio a ordem de se castigar o servo. Meus irmãos, notai desde quando somos castigados. Em todos aqueles que nasceram desde o início do gênero humano, em todos que agora existem, em todos os que nascerão posteriormente, Adão é castigado. Adão é castigado, isto é, o gênero humano; e muitos endureceram de tal modo que nem sentem as suas chagas. Receberam o senso da dor os membros do gênero humano que se tornaram filhos. Percebem que são castigados, e sabem quem mandou castigá-los; e ergueram os olhos para aquele que habita no céu, e de tal modo seus olhos se fixaram nas mãos de seu Senhor, até que deles se compadeça, como os olhos dos servos se fixam nas mãos de seus senhores e como os olhos da serva fitam as mãos de sua senhora. Observas que há alguns que são felizes neste mundo que riem e se gabam. Não são flagelados, ou antes, são flagelados de modo pior ainda; ficam mais gravemente feridos porque perderam o senso da dor. Despertem e sejam castigados; percebam que são batidos, saibam que são batidos e se condoam por serem batidos. Pois, “aumentando o saber, aumenta-se o sofrer(Ecl 1,18); a Escritura o afirmou. Por isso, declara o Senhor no evangelho:

Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados(Mt 5,5).



§ 7
3 Ouçamos a voz de quem é castigado, e sejam tais as nossas vozes, mesmo quando tudo corre bem. Pois, quem não entende que é castigado quando adoece, quando está no cárcere, talvez em cadeias, quando sofre da parte de ladrões? Quando lhe são infligidas tribulações por alguns malvados, sente que está sendo castigado. Mas, é grande sensibilidade perceber que está sendo castigado mesmo quando tudo corre bem. A Escritura não diz no livro de Jó: que a vida humana está repleta de tentações e sim:

Acaso não é uma tentação a vida humana sobre a terra”? (Jó 7,1).

Denomina tentação a vida inteira. Portanto, a tua vida toda sobre a terra constitui a tua chaga. Chora enquanto vives na terra; quer vivas na felicidade, quer em alguma tribulação, clama:

Ergo meus olhos a ti que habitas nos céus”, para as mãos do Senhor, que ordenou fosses castigado, e ao qual te diriges em outro salmo nesses termos:

Por causa da iniqüidade castigaste o homem e fizeste consumir-se qual aranha a minha alma(Sl 38,12); clama pelas mãos que ferem, dizendo:

Tem misericórdia de nós Senhor, tem misericórdia”.

Não são gritos de quem apanha:

Tem misericórdia de nós, Senhor, tem misericórdia?



§ 8
Porque estamos saturados de opróbrios. Nossa alma está farta dos opróbrios dos que vivem na abundância e do desprezo dos soberbos”.

Quem é descurado, é desprezado. Todos os que optam por viver piedosamente (cf 2Tm 3,12), de acordo com os ensinamentos de Cristo, necessariamente sofrem opróbrios, são desprezados por aqueles que não querem viver piamente, e que colocam nos bens terrenos toda a sua felicidade. Zombam daqueles que chamam de felicidade bens que não podem ver com os próprios olhos e lhes dizem: Em que acreditas, louco? Vês aquilo em que crês? Alguém voltou da região dos mortos e te contou o que lá se passa? Eu, ao contrário, vejo aquilo que amo e gozo com isso. És desprezado por esperares o que não vês; despreza-te quem pensa agarrar o que vê. Observa se ele o retém. Não te perturbes. Vê se ele retém, e não te insulte. Não percas a felicidade verdadeira que há de vir, considerando-o feliz no presente. Não te perturbes. Observa se ele a retém. Foge dele aquilo que ele agarra, ou ele mesmo é quem foge daquilo que retinha para si. Forçoso é que ele passe através de seus bens, ou os bens o deixem. Por quem as riquezas transitam? Por aquele que fica arruinado durante a vida. Quem passa por seus bens? Quem morre no meio das riquezas; porque ao morrer não as leva consigo à região dos mortos. Tenho a minha casa, ele se gabava. Perguntas: Qual é a tua casa? Aquela que meu pai me deixou. E ele, onde adqui-riu esta casa? Nosso avô lha deixou. Recorre ao bisavô, depois ao trisavô, e já não podes nomear outros. Não é uma razão a mais para te causar temor perceberes que muitos passaram por aquela casa e nenhum deles a levou à eterna morada? Teu pai a deixou aqui; passou por ela; assim também tu hás de passar. Se, portanto, vossa casa serve de passagem, é uma hospedaria de viajantes transitórios e não habitação permanente. Entretanto, como esperamos os bens futuros, e suspiramos pela felici-dade futura, e ainda não apareceu o que seremos, embora já sejamos filhos de Deus (1Jo 3,2), porque nossa vida está escondida com Cristo em Deus (Cl 3,3), “estamos sa-turados de opróbrios”, isto é, de desprezo da parte daque-les que buscam ou possuem a felicidade neste mundo.



§ 9
Nossa alma está farta do opróbrio dos que vivem na abundância e do desprezo dos soberbos”.

Queríamos saber quais são os que “vivem na abundância”; o salmista o expôs:

os soberbos. Opróbrio” equivale a “desprezo, e os que vivem na abundância” equivale a “soberbos”.

O “opróbrio dos que vivem na abundância” é repetição de:

desprezo dos soberbos”.

Por que os soberbos vivem na abundância? Porque querem ser felizes na terra. Como? Quando são infelizes, acaso vivem na abundância? Talvez quando são infelizes não nos insultem. V. Caridade dê-me atenção. Talvez eles insultem quando são felizes, quando se jactam com as pompas de suas riquezas, quando se gabam da vaidade das falsas honras; então nos injuriam, e nos dizem de certo modo: Olhe. Estou bem, aproveito das coisas presentes, e fiquem longe de mim os que prometem o que não podem mostrar. Seguro o que vejo, gozo do que vejo; estou bem nesta vida. Tu, porém, estás mais seguro, porque Cristo ressuscitou e te ensinou o que há de dar na outra vida; fique bem certo de que ele dará. Mas ele te injuria porque já tem o que quer. Suporta o injuriador, e hás de rir quando ele gemer; pois, virá o tempo em que vão dizer:

Estes são aqueles de quem outrora nos ríamos”.

Estas palavras se encontram no livro da Sabedoria. A Escritura nos revela o que hão de dizer aqueles que agora zombam de nós, nos desprezam, nos saturaram de opróbrios e de desprezo. São as palavras que hão de proferir quando a verdade os desprezar. Verão brilharem à direita aqueles que haviam desprezado quando viviam no meio deles, ao se realizar o que predisse o Apóstolo:

Quando Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória(Cl 3,3.4).

E eles dirão:

Estes são aqueles de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de ultraje, nós insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura e seu fim infame. Como agora são contados entre os filhos de Deus, e partilham a sorte dos santos? E prosseguindo, acrescentam: Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Que proveito nos trouxe o orgulho? O que nos serviu riqueza e arrogância”? (Sb 5,3-8).

Ali, tu não os insultas, porque eles mesmos se insultam. Até que isso aconteça, irmãos, ergamos os olhos àquele que habita no céu; dele não retiremos os olhos, até que se compadeça de nós, e nos livre de toda tentação, opróbrios e desprezo.



§ 10
Sucede ainda que por vezes até os que estão sob o flagelo da infelicidade temporal, nos insultam. Encontras alguém que devido ao mérito de suas iniqüidades, ou por oculto juízo de Deus, ou por manifesta condenação, é lançado no cárcere e carregado de cadeias; também ele insulta. E se alguém lhe diz: Por que não viveste honestamente? Eis a que chegaste com uma vida má. Ele responde: Por que os que vivem bem, sofrem estas coisas? Mas, eles sofrem para serem provados, para serem exercitados pelas tentações, para progredirem por meio dos flagelos; porque Deus castiga todo filho que ele acolhe (cf Hb 12,6).

E se ele castigou o Filho único, que não tinha pecado, e entregou-o por todos nós (cf Rm 8,32), como não devemos nós ser castigados, tendo praticado o que merece castigo? Ao falarmos assim, eles ainda se ensoberbecem em sua infelicidade, e aflitos, mas não humilhados, respondem: Estas são as expressões vãs dos cristãos que acreditam no que não vêem. Se também eles nos injuriam, por que havemos de pensar, irmãos, que eles não estão incluídos neste salmo, quando diz:

O opróbrio dos que vivem na abundância e o desprezo dos soberbos?” Efetivamente injuriam os cristãos mesmo os que não vivem na abundância e estão na penúria e nas tribulações; nem eles cessam de injuriar. Certamente, há o “opróbrio dos que vivem na abundância”.

Mas, não se encontra um atribulado que insulta? Não insultou o ladrão que estava crucificado junto do Senhor na cruz? (cf Lc 23,39).

Por conseguinte, se injuriam até mesmo os que não vivem na abundância, por que diz o salmo:

O opróbrio dos que vivem na abundância?” Se pesquisarmos com diligência, também eles vivem na abundância. Como? Pois se não estivessem na abundância não seriam soberbos. Um tem fartura de dinheiro e por isso é soberbo; outro tem abundância de honrarias e daí se orgulha; outro julga que tem abundância de justiça, e por isso se ensoberbece, o que é pior ainda. Os que julgam não ter fartura de dinheiro, pensam ter grande justiça, contra Deus; e sofrendo tribulações, se justificam e acusam a Deus, dizendo: Que cometi, que fiz? E tu lhe dizes: Considera, recorda-te de teus pecados, pensa se nada fizeste. Abala-se um pouco a consciência, cai em si, pensa no mal que fez; mesmo relembrando seus pecados, nem assim quer confessar que sofre o que merece, mas diz: De fato, cometi muitos pecados; mas vejo que muitos fizeram pecados maiores e nada sofreram. Queres justificar-te diante de Deus. Por conseguinte, ele está muito bem, tem o coração cheio de justiça; com efeito, parece-lhe que Deus faz mal e ele sofre injustamente. Se lhe entregasses o leme do navio, este naufragaria com ele; quer, porém, expulsar a Deus do governo do mundo, segurar o leme da criação e distribuir dores e alegrias, penas e prêmios. Alma infeliz! Por que vos espantais? Ela tem em abundância, mas abundância de maldade, abundância de malícia; e quanto mais maldade tem, mais lhe parece ter abundância de justiça.



§ 11
Ao invés, o cristão não deve ter abundância, mas reconhecer que é pobre; e se tiver riquezas, deve saber que não são as verdadeiras riquezas, a fim de desejar outras. Pois, quem deseja riquezas falsas, não busca as verdadeiras, enquanto aquele que busca as verdadeiras, ainda é pobre, e declara com razão:

Sou pobre e estou dolorido(Sl 68,30).

De outro lado, aquele que é pobre, mas cheio de maldade, como se diz que está na abundância? A razão é que lhe desagrada ser pobre, e pensa que tem grande justiça em seu coração, em oposição à justiça de Deus. E qual é a grandeza de nossa justiça? Por maior que seja, é um orvalho qualquer em comparação com aquela fonte; diante daquela grande fartura, são gotinhas que amolecem nossa vida, e dissolvem a dura iniqüidade. Desejamos então ser saciados plenamente na fonte da justiça, desejamos fartar-nos da abundância mencionada no salmo:

Inebriar-se-ão na abundância de tua casa. Na torrente de tuas delícias lhes dás de beber(Sl 35,9).

Enquanto estamos aqui, entendamos que somos pobres e necessitados, não somente das riquezas que não são verdadeiras, mas até da própria saúde. E quando estamos sadios, entendamos que estamos doentes. Pois, enquanto este corpo tem fome e sede, enquanto este corpo se cansa de estar desperto, cansa-se de estar de pé, cansa-se de andar, cansa-se de ficar sentado, cansa-se de comer, e seja para onde for que se volte para procurar alívio do cansaço, encontra outro motivo de fadiga, não existe saúde perfeita, nem para o próprio corpo. Por conseguinte, as riquezas de que falávamos não são riquezas, mas mendicidade; porque à medida que aumentam, cresce a penúria e a avareza. A referida saúde corporal não é saúde, mas doença. Aliviamo-nos cada dia com os medicamentos de Deus, porque comemos e bebemos; são medicamentos que nos são oferecidos. Irmãos, se quereis ver que doença nos ataca, vede que se alguém jejua sete dias, fica consumido pela fome. Portanto, a fome está aí; não a sentes, porque a curas todos os dias; com efeito, nem a própria saúde em nós é perfeita.



§ 12
Note V. Caridade como perceberemos que somos pobres, de tal sorte que nos alegremos junto de Deus e ergamos nossos olhos para aquele que habita no céu. As riquezas da terra não são as verdadeiras: aumentam a cupidez daqueles que as possuem. A saúde de que falamos não é a verdadeira saúde corporal, porque traz consigo uma fraqueza sempre defectiva; para qualquer lado que se volte, desfalece. Não encontras firmeza nem nos próprios socorros. Cansas de estar de pé, procuras sentar-te; podes ficar muito tempo sentado? Quem resolveu não se cansar, tem de que desanimar. Cansa-se de estar desperto, vai dormir; acaso porque dormiu, não desfalece? Cansa-se de jejuar, procura a refeição; se comer demais, desfalece. Esta fraqueza não deixa perdurar coisa alguma. E que acontece com a justiça? Que justiça há entre tantas tentações? Podemos abster-nos de homicídio, de adultério, de furtos, de perjúrios, de fraudes; poderemos evitar os maus pensamentos? E as sugestões dos maus desejos? Qual, então, é a nossa justiça? Por conseguinte, tenhamos fome totalmente, tenhamos sede totalmente das verdadeiras riquezas, da verdadeira saúde, da verdadeira justiça. Quais são as verdadeiras riquezas? Aquela moradia celeste em Jerusalém. Quem é considerado rico nesta terra? Quando se louva um rico, como se fala? É muito rico; nada lhe falta. Certamente, a primeira parte é um louvor; a segunda não é: nada lhe falta. Observa se nada lhe falta. Se nada deseja, nada lhe falta; se, porém, ainda deseja bens maiores do que os que possui, aumentaram as riquezas para crescer a pobreza. Naquela cidade de Jerusalém, contudo, as riquezas serão verdadeiras, porque lá nada nos faltará; não necessitaremos de coisa alguma e haverá genuína saúde. Qual é a genuína saúde? Quando a morte for absorvida na vitória, quando este ser corruptível tiver revestido a incor-ruptibilidade, e este ser mortal tiver revestido a imortalidade (1 Cor 15,54); então haverá verdadeira saúde, então haverá verdadeira e perfeita justiça, e não somente não poderemos praticar mal algum, mas nem mesmo pensar nisso. Agora, porém, necessitados, pobres, indigentes, doloridos suspiramos, gememos, rezamos, erguemos os olhos para Deus; pois aqueles que são felizes neste mundo nos desprezam, porque estão na abundância, e têm no coração uma justiça que é falsa. Não alcançam a verdadeira justiça, porque estão repletos da falsa. Tu, porém, a fim de alcançares a verdadeira justiça, sê pobre e mendigo da justiça de Deus e escuta a palavra do evangelho:

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).