ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 120 | ||
§ 120:1 | Ɲ Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me ouviu. | |
§ 120:2 | ᶊ Senhor, livra-me dos lábios mentirosos e da língua enganadora. | |
§ 120:3 | Ꝙ Que te será dado, ou que te será acrescentado, língua enganadora? | |
§ 120:4 | Ƒ Flechas agudas do valente, com brasas vivas de zimbro! | |
§ 120:5 | Ɑ Ai de mim, que peregrino em Meseque, e habito entre as tendas de Quedar! | |
§ 120:6 | Ɦ Há muito que eu habito com aqueles que odeiam a paz. | |
§ 120:7 | ⱻ Eu sou pela paz; mas quando falo, eles são pela guerra. | |
O SALMO 120 | ||
SERMÃO (a festa de Santa Crispina, mártir) | ||
§ 1 | 1 O presente salmo é o segundo dos que têm o título: “Cântico gradual”. Muitos são os que assinalam, conforme já ouvistes no primeiro deles, nossa ascensão, feita do coração a Deus, partindo do vale das lágrimas, isto é, da humilhação das tribulações. A ascensão só nos é proveitosa se primeiro, humildes, nos lembramos de que devemos subir do vale de lágrimas (pois vale é uma depressão do terreno; como as elevações formam montanhas e colinas, assim vale é um lugar baixo); não aconteça que procurando exaltar-nos apressada e desordenadamente, não subamos, mas resvalemos. O próprio Senhor, porém, ensinou que devemos subir do vale de lágrimas quando se dignou por nossa causa humilhar-se e sofrer até a morte de cruz. Não descuremos este exemplo; os mártires compreenderam o sentido deste vale de lágrimas. Como compreenderam? Como? Também eles subiram do vale de lágrimas a fim de serem coroados. | |
§ 2 | Veio a propósito hoje este salmo: “Cântico gradual”. Deles, dos mártires, foi dito: “Ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes” (Sl 125,6). Trata-se do vale de lágrimas, onde os que choram lançam as sementes. Quais são as sementes? As boas obras nesta tribulação terrena. O bom operário no vale de lágrimas é semelhante ao semeador no inverno. Acaso o frio o faz desistir do trabalho? Igualmente não devemos desistir da boa obra devido às pressões mundanas, pois vês como continua o salmo: “Ao partirem, iam chorando, lançando suas sementes”. Suavemente infelizes, se choravam sempre; sumamente infelizes, se jamais se libertariam das lágrimas. Mas observa como prossegue: “Ao voltarem, vêm exultantes, trazendo os seus feixes” (Sl 125,6). | |
§ 3 | Nestes cânticos, irmãos, nada mais aprendemos do que subir; mas subir pelo coração, por um bom afeto, na fé, esperança e caridade, com anseio pela perpetuidade e a vida eterna. Assim é que se sobe. Convém que falemos da maneira de subir. V. Caridade ouviu coisas terríveis na leitura do evangelho! Vedes, certamente, que o Senhor “virá numa hora que não pensais”, como um ladrão de noite. “Se o dono da casa soubesse em que vigília viria o ladrão”, em verdade vos digo, “não permitiria que a sua casa fosse arrombada” (Mt 24,43). Replicais agora: Quem, portanto, sabe a hora em que virá, se será como um ladrão? Não sabes a hora em que virá; vigia sempre. Como desconheces quando há de vir, que te encontre preparado por ocasião de sua vinda. Talvez por isso mesmo não sabes quando há de vir: para estares sempre pronto. O pai de família será surpreendido naquela hora. O pai de família representa o soberbo. Não queiras ser um pai de família e aquela hora não te surpreenderá repentinamente. Que devo ser, então, perguntas? Tal como escutaste do salmo: “Quanto a mim, sou pobre e estou dolorido” (Sl 68,30). Se és pobre, dolorido, não serás pai de família, a quem aquela hora surpreenderá de repente, e de repente assustará. Pais de família, de fato, são os que presumem de suas ambições, e se incham, enfraquecidos com os prazeres mundanos; e eles se levantam contra os humildes, e injuriam os santos que compreenderam o que é o caminho estreito que conduz à vida (cf Mt 7,14). Para esses tais aquela hora virá repentinamente, porque tais também eram os homens na época de Noé. Escutastes a menção feita no evangelho desses dias: “Como nos dias de Noé, será a vinda do Filho do homem. Estavam eles comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. Veio o dilúvio e os levou a todos” (cf Mt 24,37-39; Lc 17,26-27). E então? Perecerão todos os que assim agem, que se casam, que se dão em casamento, que replantam, que edificam? Não. São, ao invés, os que presumem destas coisas, que as preferem a Deus, que por causa delas estão prontos a ofender a Deus. De outro lado, os que não usam dessas coisas, ou usam como se não usassem, presumindo mais do doador do que dos dons, e percebendo neles consolo e misericórdia, não se preocupam com os dons para não perderem o doador; os que são assim, não os surpreende desprevenidos aquela hora, que chega como um ladrão. A estes disse o Apóstolo: “Vós, porém, não andais em trevas, de modo que esse dia vos surpreenda como um ladrão, pois que todos vós sois filhos da luz, filhos do dia”. O Senhor, ao dizer que devíamos temer essa hora como a um ladrão, falou que seria de noite; e o Apóstolo assim se exprime: “O dia do Senhor virá como um ladrão noturno”. Não queres que te surpreenda? Não permaneças na noite. Que quer dizer: Não permaneças na noite? “Sois filhos da luz, filhos do dia. Não somos da noite, nem das trevas” (1 Ts 5,4.5.2). Quais são os filhos da noite e das trevas? Os iníquos, os ímpios, os infiéis. | |
§ 4 | Mas também eles ouçam antes que venha a hora e diga-lhes o Apóstolo: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Conforme se encontra neste salmo, vigiem. Os montes já estão iluminados; por que ainda dormem? “Ergam os olhos para os montes, para ver de onde lhes virá o auxílio”. Que quer dizer: Os montes já estão iluminados? Já nasceu o sol de justiça, os apóstolos já pregaram o evangelho, as Escrituras já foram anunciadas, revelaram-se todos os mistérios, o véu se rasgou (cf Mt 27,51), manifestou-se o segredo do templo; finalmente já levantem os olhos para os montes, para verem de onde lhes virá o auxílio. É isto que ordena este salmo, o segundo dos que têm a inscrição: “Cântico gradual”. Mas, nem por isso presumam dos montes; porque os montes não brilham por si mesmos, mas são iluminados por aquele do qual foi dito: “Era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem ao mundo” (Jo. 1,9). É possível entender-se por montes os homens importantes, os homens ilustres. E quem maior do que João Batista? Que monte não era ele, se disse o próprio Senhor a seu respeito: “Entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior do que João, o Batista” (Mt 11,11). Certamente vês como brilha este grande monte; escuta como confessa. O que confessa ele? “De sua plenitude todos nós recebemos” (Jo. 1,16). Teu auxílio vem daquele de cuja plenitude receberam os montes, e não destes montes; contudo, a não ser que ergas os olhos para eles, através das Escrituras, não te aproximarás para seres iluminado. | |
§ 5 | 3 Canta, portanto, o que segue: se queres ouvir, para colocares firmemente os pés nos degraus, e não te cansares durante a ascensão ou sofreres uma queda, diz o seguinte: “Não permitas que resvalem os meus pés”. Onde resvalam os pés? Onde resvalaram os pés daquele que estava no paraíso. Mas primeiro observa como resvalou o pé daquele que estava entre os anjos e tendo resvalado caiu, e de anjo se transformou em diabo, pois resvalou o pé e ele caiu. Procura saber por que caiu: caiu por soberba. Por conseguinte, o pé não resvala senão por soberba; só a soberba faz o pé resvalar para a ruína. A caridade move os pés para andarem e avançarem e subirem; para caírem, movem-nos a soberba. Por isso, que diz o salmista em outro salmo? “Os filhos dos homens se abrigam à sombra de tuas asas”. Se estão sob a sombra das asas, são sempre humildes, sempre estão esperando em Deus, sempre não presumindo de si mesmos. “Abrigam-se à sombra de tuas asas”. Não se saciam de si mesmos, para serem felizes. Pois, como continua o salmo? “Inebriar-se-ão na abundância de tua casa, na torrente de tuas delícias lhes dás de beber” (Sl 35,8-9). Eis os sedentos, eis os inebriados; eis que têm sede, eis que bebem; mas não bebem do que é seu, não são fontes para si mesmos. Mas de onde bebem? “Eles se abrigam à sombra de tuas asas”. Se estão sob as asas, são humildes. Por quê? “Pois em ti está a fonte da vida”. Os montes não se irrigam a si mesmos, como não são por si mesmos que estão iluminados. Nota a continuação: “Na tua luz contemplamos a luz”. Se, portanto, na sua luz veremos a luz, quem é que cai e perde a luz a não ser aquele para quem o Senhor não é a luz? E quem quiser ser luz para si mesmo, perde a luz que o ilumina. Por isso, sabendo que cai apenas aquele que quer luzir para si mesmo, enquanto é apenas treva, logo acrescenta o salmo: “Não me pisoteie a soberba, nem as mãos dos pecadores me sacudam”, isto é, não me abale o exemplo dos pecadores de sorte que me afaste de ti. Por que temeste e disseste: “Não me pisoteie a soberba”? continua: “Tombaram os operários de iniqüidade desta forma” (Sl 31,8.10.12.13). Os que agora podes observar praticando a iniqüidade, já estão condenados; mas para serem condenados, caíram ali, quando a soberba os pisoteou. Foi com razão que o salmista ouvindo isto, para subir e não cair, para avançar partindo do vale de lágrimas, para não desfalecer com o tumor da soberba, diz ao Senhor: “Não permitas que resvalem os meus pés”. E Deus lhe responde: “Nem há de dormitar o que te guarda”. Preste atenção, V. Caridade. Parece uma sentença só, formada de duas vozes. Alguém disse, a subir e cantar o Cântico gradual: “Não permitas que resvalem os meus pés”, e Deus como que responde: Tu me dizes: “Não permitas que resvalem os meus pés”, prossegue: “Nem há de dormitar o que te guarda”, e teu pé não resvalará. | |
§ 6 | 4 Replicará o salmista, contudo: Por acaso está em meu poder que não dormite aquele que me guarda? Quero que não durma, nem dormite. Por conseguinte, escolhe para ti aquele que não dormitará, nem há de dormir, e teu pé não resvalará. Deus nunca está dormindo; se queres ter um guarda que não dorme, escolhe a Deus para teu guardião. “Não permitas que resvalem os meus pés”, dizes tu. Bem, ótimo. Mas também ele te diz: “Nem dá de dormitar que te guarda”. Tu talvez te voltarias para alguns homens que te guardassem e dirias: Qual é que hei de encontrar que não durme? qual o homem que não dormitará? A quem hei de encontrar? Aonde irei? Para onde me voltarei? O salmista te mostra: “Não dormita, nem há de dormir o que guarda Israel”. Queres ter um guarda que não dorme nem dormita? “Não dormita, nem há de dormir o que guarda Israel”. Pois Cristo guarda Israel. Sê, portanto, Israel. Que é Israel? Israel significa aquele que vê a Deus. E como se vê a Deus? Em primeiro lugar pela fé, depois pela visão. Se não podes ainda ter a visão, vê pela fé. Se não podes ver a sua face, porque seria a visão, olha-o pelas costas. O Senhor o disse a Moisés: “Não poderás ver a minha face. Quando passar, me verás pelas costas” (Ex 33,20.23). Esperas talvez que ele passe; já passou. Olha as suas costas. Como passou? Escuta o que diz João: “Sabendo que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1). Nosso Senhor Jesus Cristo já fez a Páscoa. Páscoa, de fato, significa passagem. Pois é palavra hebraica; alguns pensam que é termo grego, como se fosse paixão, mas não é. Os mais estudiosos e entendidos descobriram que Páscoa é palavra hebraica; e não se traduz por paixão e sim por passagem. Pela paixão, no entanto, o Senhor passou da morte à vida; e abriu-nos um caminho para acreditarmos em sua ressurreição e passarmos também nós da morte à vida. Não é grande coisa acreditar que Cristo morreu; também os pagãos, os judeus e todos os malvados acreditam. Todos acreditam que ele morreu. A fé dos cristãos consiste em crer na ressurreição de Cristo. Consideramos importante crer que ele ressuscitou. Conseqüentemente, ele quis aparecer quando passou, isto é, quando ressuscitou. Quis que acreditássemos nele quando passou; porque ele foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitou para a nossa justificação (cf Rm. 4,25). Foi essa fé na ressurreição de Cristo que principalmente recomendou o Apóstolo. Pois disse: “Se creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10,9). Não disse: Se acreditares que Cristo morreu, o que também os pagãos, os judeus e todos os seus inimigos acreditaram, e sim: “Se creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. Crer nisto é ser Israel, isto é, ver a Deus; apesar de ser ainda pelas costas, no entanto, ao acreditares nas costas, chegarás à visão da face. Que significa isto? Se acreditares naquilo que posteriormente Cristo se fez por ti, se acreditares no que Cristo assumiu posteriormente. Pois, no princípio que é a sua face? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. E o que veio depois? E o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1.14). Ao acreditares, portanto, naquilo que o Verbo se fez por tua causa, e que resssuscitou corporalmente, a fim de não perderes a esperança acerca de tua carne, tornar-te-ás Israel. Ao te tornares Israel, não dormitará, nem dormirá aquele que te guarda. Uma vez que já és Israel e ouviste o salmo dizer: “Não dormita, nem há de dormir o que guarda Israel”. Pois, o próprio Cristo dormiu, mas ressuscitou. Como se exprime ele no salmo? “Eu adormeci, caí em sono profundo”. Porventura continuou dormindo? “Despertei, porque o Senhor me acolherá” (Sl 3,6). Se, portanto, já ressuscitou, já passou; se já passou, vê as suas costas. Que significa: Vê as suas costas? Crê em sua ressurreição. E como o Apóstolo disse: “Por certo, foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus” (2 Cor 13,4); e ainda: Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele” (Rm 6,9), com justeza canta o salmo: “Não dormita, nem há de dormir o que guarda Israel”. Talvez ainda perguntes, de modo carnal: Quem é que “não há de dormitar, nem há de dormir?” E se procuras entre os homens, tu te enganas; e jamais encontrarás. Não presumas, portanto, de homem algum; todo homem dorme e dormitará. Quando dormita? Enquanto carrega a carne fraca. Quando dormirá? ao morrer. Não presumas de homem algum. Um mortal pode dormitar; dorme ao morrer. Não procures isto entre os homens. | |
§ 7 | 5 E quem é que não dormita, nem há de dormir e me guardará? perguntas. Escuta como prossegue o salmo: “O Senhor te guardará”. Não é um homem que dormita e dorme, mas o Senhor que te guarda. Como te guarda? “O Senhor é tua proteção, sobre a mão de tua direita”. Vamos, irmão. Procuremos entender, com o auxílio do Senhor, o que quer dizer: “O Senhor é tua proteção, sobre a mão de tua direita”. Parece-me ter um sentido oculto o fato de não ter dito: “O Senhor te guardará”, de maneira absoluta e simples, mas acrescentou: “sobre a mão de tua direita”. E então? Deus guarda a nossa direita e não guarda a esquerda? Não foi ele quem nos fez inteiramente? Quem nos deu a direita, não nos deu igualmente a esquerda? Finalmente, se aprouve ao salmista falar apenas da direita, porque disse: “sobre a mão de tua direita” e não: sobre a tua direita? Por que se exprimiu assim, a não ser que tenha ocultado aqui algum segredo, que atingiremos batendo à porta? Deveria ter dito: “O Senhor te guardará” e nada mais; ou, se quisesse acresentar a direita: O Senhor te guardará, a tua direita; ou sem dúvida, para acrescentar “mão”, diria: O Senhor te guardará, a tua mão direita e não: “sobre a mão de tua direita”. Manifestar-vos-ei o que o próprio Senhor se dignar sugerir. Ele que habita também em vós, sem dúvida vos fará experimentar que é verdade o que digo. Pois, ignorais o que vamos dizer; mas depois de o termos proferido, não somos nós mesmos que vos mostraremos ser verdade o que dizemos, mas vós próprios reconhecereis ser verdade o que dizemos. Como, porém, reconhecereis, a não ser que vô-lo demonstre que em vós habita, enquanto sois do número daqueles que pedem: “Não permitas que resvalem os meus pés”, e aos quais se diz: “Não há de dormitar o que te guarda?” Importa que Cristo não durma em vós, e agora haveis de entender que é verdade o que dizemos. Como, perguntas? Porque se vossa fé está adormecida, Cristo dorme em vós. A fé em Cristo é Cristo em vosso coração. Disse o Apóstolo: “Cristo habite pela fé em vossos corações” (Ef 3,17). Onde a fé não dorme, Cristo está vigilante. Se, por acaso, tua fé estava dormindo, e por isto, nesta questão estavas flutuando, como aquela nave que estava sujeita à tempestade, enquanto Cristo nela dormia (cf Mt 8,24). Acorda a Cristo e as tempestades se acalmam. | |
§ 8 | Interrogo, então, a vossa fé, caríssimos. Sois filhos da Igreja, e progredistes na Igreja, e os que ainda não avançaram hão de progredir na Igreja; e ainda vos aperfeiçoareis os que já progredistes. Interrogo-vos como costumais entender a palavra do evangelho: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mt 6,3). Havendo entendido esta passagem, descobrireis o que é a direita e o que é a esquerda. Entendereis simultaneamente que Deus fez ambas as partes, a direita e a esquerda; e no entanto não deve saber a esquerda o que faz a direita. Chama-se nossa esquerda tudo o que temos de temporário e direita, tudo o que o Senhor nos promete de eterno e imutável. Se, porém, aquele que dará a vida eterna, também consola a vida presente com estes bens temporais, foi ele mesmo quem fez a direita e a esquerda. De alguns diz o salmo de Davi: “Cuja boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua” (Sl 143,8). Ele descobriu, portanto, a alguns que ele censura, porque tomaram a verdadeira destra por esquerda, e fizeram a verdadeira esquerda tornar-se sua direita. Logo expõe quem são eles. Todo homem que considera não haver felicidade humana, a não ser somente nessas riquezas e prazeres temporais, e afluência e abundância neste mundo, é um estulto e perverso, que toma a esquerda por direita. Tais eram aqueles que o salmo menciona. Não significa isto que não haviam recebido de Deus mesmo o que possuíam no tempo, mas que consideravam que somente esta era a vida feliz e nada mais buscavam. Escutai o que a respeito deles afirma o salmo em seguida: “Cuja boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua”. E logo: “Seus filhos são sarmentos novos; suas filhas estão cobertas de ornatos à semelhança de um templo. Seus celeiros estão atulhados, transbordantes de toda espécie de frutos. Suas ovelhas são fecundas e multiplicam-se em seus partos. Seus bois são cevados. Não há brechas na sebes, nem ruína e clamor em suas praças” (Sl 143,8.11-14). O salmo descreve a grande felicidade de alguns homens. É possível que goze de tal felicidade no entanto, também um justo, como aconteceu a Jó; mas Jó a considerava como esquerda e não direita; pois tinha na conta de direita somente a perpétua e eterna felicidade junto de Deus. Por isso Deus permitiu que a esquerda fosse atingida por males; bastou-lhe a direita. Como foi ferida a esquerda? Pelas provas do diabo. O diabo de repente a tirou. Na verdade, Deus o permitiu a fim de provar o justo e punir o ímpio. O diabo tirou-lhe tudo; mas Jó que sabia que a esquerda era esquerda, e a direita, direita, como se manteve à direita? Alegrou-se no Senhor, consolou-se dos prejuízos, porque não sofreu dano nas riquezas interiores; ele tinha o coração cheio de Deus. E disse: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, bendito seja o nome do Senhor. Conforme agradou ao Senhor assim se fez” (Jó 1,21). Sua direita era o próprio Senhor, a própria vida eterna, aquela posse da luz, a fonte da vida, a luz na luz. “Inebriar-se-ão na abundância de tua casa” (Sl 35,9): esta a direita. A esquerda, porém, servia de auxílio e consolo e não de base de felicidade. Pois sua felicidade verdadeira e genuína era Deus. Aqueles, ao contrário, dos quais diz Davi que sua “boca falou o que é vão; sua direita é direita iníqua”, ele não os censura por terem tal abundância, e sim porque sua “boca falou o que é vão”. Como continua? Havendo enumerado suas riquezas, disse: “Eles denominam feliz quem goza desses bens”. Foi esta coisa vã que seus lábios falaram: “Feliz quem goza desses bens”. Que dizes tu, que sabes o que é a esquerda e o que é a direita? Imediatamente acrescenta: “Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus” (Sl 143,8.15). | |
§ 9 | V. Caridade, dê-me atenção. Notamos a esquerda, notamos a direita. Escuta como o confirma o Cântico dos cânticos: “Sua mão esquerda está sob minha cabeça”. A esposa diz do esposo, a Igreja, de Cristo, no amplexo da piedade e da caridade. Como fala? “Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça” (Ct 2,6). Que significa, porém, que a direita estava em cima, e em baixo a esquerda, e assim o esposo abraçava a esposa, colocando em baixo a esquerda para consolo, e impondo a direita para proteção? “Sua mão esquerda está sob minha cabeça”. Deus a dá. Sua esquerda porque é Deus quem dá todos esses bens temporais. Como são vãos, como são ímpios os que pedem essas coisas aos ídolos, aos demônios! Quantos são os que pedem tudo isso aos demônios e não conseguem? De outro lado, os que não o pedem aos demônios o possuem; mas não são os demônios que o dão. Ainda muitos pedem a Deus, e não têm. Ele, que chama à direita, sabe como dar a esquerda. Portanto, se é esquerda, seja esquerda, mas sob a cabeça; por cima esteja tua cabeça, isto é, por cima a tua fé, em que Cristo habita. Não anteponhas os bens temporais à tua fé, e a esquerda não estará sobre a tua cabeça; mas submete todos os bens temporais a tua fé, e antepõe a tua fé a todos os bens temporais; e a esquerda estará sob tua cabeça, e com razão sua direita te abraçará. | |
§ 10 | Escuta como nos Provérbios se expõe o mesmo, o que é a esquerda e o que é a direita, quando se fala acerca da sabedoria: “Em sua direita: longos anos; em sua esquerda: riqueza e honra” (Pr 3,16). Longos anos representa a eternidade. Com propriedade a Escritura chama de longo o que é eterno; pois tudo o que tem fim é breve. E em outra passagem: “De longos dias hei de cumulá-lo” (Sl 90,16). De outra forma, que importância teria o que foi dito: “Honra a teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra”? (Ex 20,12). De fato, em que terra, a não ser a mencionada aqui: “Tu és a minha esperança, a minha porção na terra dos vivos” (Sl 141,6). Ali ser longevo que é, senão viver eternamente? Pois, aqui na terra longevidade é atingir a velhice. Embora pareça longa a vida, ao chegar a velhice, parece breve porque acaba. E muitos que maldizem os pais, envelhecem nesta terra; muitos, porém, que os respeitam, logo partem para junto do Senhor. Por acaso, então, realiza-se esta palavra: que seja longevo segundo a vida presente? Mas a longevidade ali aparece em vez de eternidade. A longevidade se encontra à sua direita; ao contrário, riquezas e glória, isto é, a abundância nesta vida, tudo o que os homens consideram bem, constitui a esquerda. Supõe que venha alguém que queira te ferir à direita, isto é, tirar-te a fé; recebeste o tapa na direita, oferece a esquerda, (cf. Mt 5,39), isto é, que ele tire o que é temporário e não o que tens de eterno. Escuta como agiu assim o apóstolo Paulo. Os homens o perseguiam por ser cristão; feriam-no à direita, e ele opunha-lhes a esquerda. Disse: Sou cristão romano (At 22,25). Eles desprezavam a direita, e Paulo os atemorizava com a esquerda, porque eles não podiam temer a sua direita; pois ainda não acreditavam em Cristo. Então, se a direita abraça, a esquerda está sob a cabeça, que quer dizer: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”? (Mt 6,3). Quer dizer, ao fazeres uma obra boa, pratica-a por causa da vida eterna. Pois, se a fizeres na terra, para que tenhas fartura de bens terrenos, a tua esquerda sabe o que faz a direita. Misturaste direita e esquerda. Não ajas senão em vista da vida eterna. Age assim, e agirás com segurança, porque assim o ordenou Deus. Se fazes o que fazes, visando apenas às coisas humanas e somente esta vida, só a esquerda opera; se porém, ages por causa da vida eterna, é só a direita que opera; se, contudo, tens na intenção a vida eterna, mas se insinua a ambição da vida temporal, atendendo também a esta, ao praticares uma boa obra, para que aqui algo recebas em retribuição, a esquerda se misturará às obras da direita. Isto, Deus o proíbe. | |
§ 11 | Tratemos agora da palavra do salmo: “O Senhor é tua proteção, sobre a mão de tua direita”. A mão figura o poder. Com que o provamos? Porque também o poder de Deus foi denominado mão de Deus. Pois, o diabo ao tentar Jó, disse a Deus: “Mas estende tua mão e toca nos seus bens; eu te garanto que te lançará maldições em rosto” (Jó 1,11). Que significa: “Estende tua mão”, a não ser, dá-me o poder? Escuta como é mais claro, irmão, a fim de não pensares talvez ainda carnalmente que Deus tem membros distintos; escuta como é evidente que a mão designa o poder. Em certo lugar diz a Escritura: “Morte e vida estão nas mãos da língua” (Pr 18,21). Sabemos que a língua é um determinado pedaço de carne. Move-se na boca e tocando o palato e os dentes torna distintos os sons com que falamos. Mostrem-se-me as mãos da língua. A língua, portanto, não tem mãos; ou tem mãos. Quais são as mãos da língua? A força da língua. “Morte e vida estão nas mãos da língua”. Que quer dizer isto? “Por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado” (Mt 12,37). Se, pois, a mão representa a força, que será a mão direita? Nada me parece mais adequado do que entender por mão direita o poder que Deus te deu, se quiseres, com a graça de Deus, de estar à direita. Com efeito, todos os ímpios estarão à esquerda; ao invés, estarão os bons filhos à direita e se lhes dirá: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34). Recebeste o poder de estar à direita, isto é, de te tornares filho de Deus. Que poder? O mencionado por João: “Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. Como recebeste tal poder? “Aos que crêem em seu nome” (Jo 1,12). Por conseguinte, se crês, foi-te concedido o poder de estares entre os filhos de Deus. Estar, porém, entre os filhos de Deus é pertencer à direita. Portanto, tua fé é a mão de tua direita, isto é, o poder que te foi dado de estares entre os filhos de Deus é a mão de tua direita. Mas de que vale o poder que o homem recebeu, se Deus não o proteger? Eis que ele acreditou, já anda de acordo com a fé; é fraco, agita-se no meio das tentações, das aflições, das corrupções carnais, das sugestões da cupidez, das insídias e laços do inimigo. De que lhe serve, então, ter o poder, acreditar em Cristo, a fim de estar entre os filhos de Deus? Ai daquele homem, se Deus não proteger a sua fé; isto é, que Deus não permita seja tentado além de suas forças, conforme diz o Apóstolo: “Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças” (1 Cor 10,13). Ele, portanto, que não nos deixa ser tentados acima do que podemos suportar, embora já sejamos fiéis, embora já tenhamos a mão de nossa direita, Deus, protege-nos sobre a mão de nossa direita. Não nos basta termos a mão direita, se ele não proteger a própria mão direita. | |
§ 12 | Falei acerca das tentações; notai o que segue. “O Senhor é tua proteção, sobre a mão de tua direita”. Falei, e conhecestes minha opinião. Se não a tivésseis aceitado, e não a tivésseis reconhecido nas Escrituras, não teríeis manifestado vosso modo de pensar por vossas exclamações. Portanto, uma vez que entendeste, irmãos, notai a continuação: por que o Senhor protege, e sobre a mão da direita, isto é, a própria fé, na qual recebemos o poder de sermos filhos de Deus, e estarmos à direita, por que importa que o Senhor proteja? Por causa dos escândalos. Onde estão os escândalos? Acerca de duas coisas devemos recear os escândalos, porque dois são os preceitos dos quais dependem toda a lei e os profetas, o amor de Deus e do próximo (cf Mt 22,40). Ora, a Igreja é amada por causa do próximo; quanto a Deus, por causa de Deus. Entende-se que Deus é figurado pelo sol; a Igreja é figurada pela lua. Todos podem errar, crendo a respeito de Deus de maneira diferente do que devem. Não crê alguém que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são de uma só substância, enganado pela astúcia dos hereges, principalmente dos arianos. Se acreditar que há algo de menor no Filho, ou no Espírito Santo do que no Pai, sofreu escândalo a respeito de Deus; o sol o queimou. Quem, de outro lado, pensar que a Igreja existe numa parte da terra, e não conhecer que ela se difundiu por todo o orbe da terra, e acreditar nos que dizem: “Olha o Messias aqui! ou: ali!” (Mt 24,23) conforme acabastes de ouvir da leitura do evangelho, enquanto Cristo adquiriu toda a terra, pagando tão grande preço por ela, este se escandaliza sobre o próximo; a lua o queimou. Por conseguinte, quem erra quanto à substância da verdade, é queimado pelo sol, durante o dia; pois erra acerca da própria sabedoria, da qual foi dito: “O dia ao dia profere a palavra”. Daí enunciar o Apóstolo: “Exprimindo realidades espirituais em termos espirituais” (1 Cor 2,13). “O dia ao dia profere a palavra”. Exprimindo realidades espirituais em termos espirituais. O dia ao dia profere a palavra. “É realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos” (1 Cor 2,6). E que significa: “E a noite à noite anuncia a ciência”? (Sl 18,3). Aos pequenos se prega a humildade de Cristo, a carne de Cristo, a crucifixão de Cristo; é leite que basta aos pequenos. E os pequenos não são abandonados na noite, porque a lua ilumina a noite, isto é, através da carne de Cristo a Igreja é anunciada, porque a própria carne de Cristo é Cabeça da Igreja. Quem não se escandaliza quanto à Igreja e à carne de Cristo, não é queimado pela lua; não se queima pelo sol quem não se escandalizar com aquela verdade imutável e incontaminada; não queima este sol que vêem conosco as moscas e os animais, mas aquele sol sobre o qual dizem os ímpios no fim do mundo: “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviu riqueza e arrogância? Tudo isso passou como sombra. Haviam dito: Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol” (Sb 5,8.9.6). Porventura o sol não se levanta para todos os ímpios, por determinação daquele de quem lhe foi dito: “Ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus”? (Mt 5,45). Por conseguinte, Deus fez um sol que se levanta sobre bons e maus, este sol que os bons e os maus contemplam. Existe, contudo, outro sol, não criado, mas gerado, por quem foram feitas todas as coisas, no qual se encontra a inteligência da verdade imutável; deste falam os ímpios: “Para nós não nasceu o sol”. Quem não erra acerca da sabedoria, não é queimado pelo sol. Quem não erra a respeito da Igreja, da carne do Senhor, e das ações realizadas em nosso favor no tempo, não é queimado pela lua. Qualquer, porém, apesar de crer em Cristo, erra a respeito de um ou outro desses pontos, se nele não se dá o que foi dito: “O Senhor é tua proteção, sobre a mão de tua direita”. Portanto, tendo dito: “O Senhor é tua proteção, sobre a mão de tua direita”, como se perguntasse: Já está aqui a mão de minha direita, já optei por acreditar em Cristo, recebi o poder de estar entre os filhos de Deus, por que Deus há de ser ainda minha proteção, isto é: “sobre a mão de minha direita?” prossegue o salmo: “De dia o sol não te queimará, nem de noite, a lua”. É proteção sobre a mão de tua direita, a fim de que o sol não te queime de dia, nem a lua, de noite. Deduzi daí, irmãos, que foi dito em sentido figurado. Com efeito, se pensarmos no sol visível, ele queima de dia; acaso a lua queima de noite? Mas que é esta queimadura? O escândalo. Escuta o Apóstolo: “Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem se escandaliza, sem que eu também me abrase”? (2 Cor 11,29). | |
§ 13 | 6.8 “De dia”, portanto, “o sol não te queimará, nem de noite, a lua”. Por quê? “O Senhor te guardará de todo o mal”. Dos escândalos ao sol, dos escândalos sob a lua, de todo mal te guardará quem é tua proteção sobre a mão de tua direita e que não dorme nem há de dormitar. E qual a razão? Porque estamos no meio das tentações: “O Senhor te guardará de todo o mal. Guarde o Senhor a tua alma”. Mesmo quanto à alma, guarde o Senhor a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre. Não se refere ao corpo: pois, quanto ao corpo, os mártires foram mortos; mas “guarde o Senhor a tua alma”, porque quanto à alma os mártires não cederam. Os perseguidores se encarni-çavam contra Crispina, cujo dia natalício hoje celebramos; encarniçavam-se contra mulher rica e delicada; mas era forte, poque o Senhor era a proteção sobre a mão de sua direita, ele que a guardava. Há na África, irmãos, quem não a conheça? Pois, era ilustre, de família nobre, possuía enorme riqueza; mas tudo isso era da esquerda, estava sob sua cabeça. Veio o inimigo para lhe ferir a cabeça, e foi-lhe apresentada a esquerda que estava sob a cabeça. A cabeça estava por cima, a direita de cima a abraçava. Que lhe poderia fazer o perseguidor, apesar de ser mulher delicada? Na verdade era do sexo fraco, e talvez, mais débil devido às riquezas, e mais fraca de corpo por seus costumes; mas que pôde ele contra tantas armas? Que conseguiu, tendo o esposo colocado a esquerda sob sua cabeça e abraçando-a com a direita? (cf Ct 2,6). Como o inimigo feriria quem estava assim armada? No entanto feriu-a, mas só no corpo. Que diz, porém, o salmo? “Guarde o Senhor a tua alma”. A alma não cedeu, o corpo foi ferido. E o corpo foi atingido temporariamente; pois no fim há de ressuscitar. Também aquele que se dignou ser Cabeça da Igreja, apresentou seu corpo aos ferimentos temporários; mas sua carne, ele a ressuscitou ao terceiro dia; a nossa, ressuscitará no fim. Portanto, ressuscitou a Cabeça, para ter o corpo a que atender, a fim de não desfalecer. “Guarde o Senhor a tua alma”. Esta não ceda, não se abata com os escândalos, as perseguições, as tribulações. Não ceda, desfalecendo, conforme a palavra do Senhor: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena” (Mt 10,28). Guarde o Senhor a tua alma, a fim de não cederes diante de um sedutor, não cederes a quem te faz falsas promessas, não cederes diante de ameaças temporais, e “o Senhor guarde a tua alma”. | |
§ 14 | Em seguida: “Guarde o Senhor a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre”. Observa tua entrada por algum tempo. “Guarde o Senhor a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre”. Guarde a tua saída. Que é “entrada”? Que é “saída”? Quando somos tentados, entramos; quando vencemos a tentação, saímos. Escuta qual a “entrada”, qual a “saída”. “O forno põe à prova as vasilhas de barro, diz a Escritura, e a tribulação, os homens justos” (Eclo 27,6). Os homens justos são quais vasos de barro; é preciso que entrem os vasos de barro no forno. E o oleiro não se sente seguro ainda quando eles entram, e sim quando saem. O Senhor, contudo, está seguro, porque sabe quais são os seus (cf 2Tm 2,17), e sabe que não arrebentarão na fornalha. Não arrebentam porque não os toca o vento da soberba. A humildade, portanto, guarda em toda tentação, porque subimos do vale de lágrimas, cantando o Cântico gradual; e o Senhor guarda a entrada, a fim de ingressarmos sãos e salvos. Tenhamos uma fé sadia quando sucede a tentação, e o Senhor guardará nossa “saída, desde agora e para sempre”. Ao sairmos de toda tentação, na eternidade, não nos atemorizará tentação alguma, nem solicitará ao menos alguma concupiscência. Escuta como menciona o Apóstolo o que citei pouco antes: “Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças”. Eis a tua entrada que é guardada; quando Deus não permite que sejas tentado além do que podes suportar, ele guarda a tua entrada; vede que ele guarda também a saída. “Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar” (1 Cor 10,13). Por acaso, irmãos, podemos dar interpretação diferente do que nos ensinam as próprias palavras do Apóstolo? Guardai-vos, portanto, mas não por vós mesmos, porque o Senhor é a proteção, ele guarda, ele não dormita nem dorme. Dormiu uma vez, em nosso favor; ressuscitou, já não dorme. Ninguém presuma de si mesmo. Subimos do vale de lágrimas, não fiquemos no caminho. Restam ainda degraus no caminho; não devemos parar com preguiça, não devemos cair por soberba. Digamos a Deus: Não resvalem nossos pés. Não há de dormir aquele que nos guarda. Está em nosso poder, com a graça de Deus, que façamos ser nosso guarda aquele que não dorme, nem dormita e que guarda Israel. Qual? Aquele que vê a Deus. Assim teu auxílio virá do Senhor, ele será tua proteção sobre a mão de tua direita; assim ele guarda a tua entrada e a tua saída desde agora e para sempre. Pois se presumires de ti mesmo, teus pés resvalarão; se resvalarem, pensas estar num degrau. Cairás dali, se és soberbo, porque o humilde diz no vale de lágrimas: “Não permitas que resvalem os meus pés”. | |
§ 15 | Embora o salmo seja curto, a explicação foi longa, e grande o sermão. Imaginai, irmãos, que vos convidei por ocasião da festa natalícia de santa Crispina, e passei a medida na duração do banquete. Não poderia acontecer que um militar vos convidasse, e nos levasse a beber além da medida à mesa? Permitido nos seja fazer isso relativamente à palavra divina, para vos inebriardes e saciardes, assim como o Senhor se dignou irrigar a terra com sua chuva material, a fim de nos permitir ir com maior alegria ao lugar dos mártires, conforme havíamos prometido ontem. Pois, os mártires sem dificuldade alguma estão aqui conosco. | |