ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 118 | ||
§ 118:1 | Ɗ Dai graças ao Senhor, porque ele é bom; porque a sua benignidade dura para sempre. | |
§ 118:2 | Ɗ Diga, pois, Israel: A sua benignidade dura para sempre. | |
§ 118:3 | Ɗ Diga, pois, a casa de Arão: A sua benignidade dura para sempre. | |
§ 118:4 | Ɗ Digam, pois, os que temem ao Senhor: A sua benignidade dura para sempre. | |
§ 118:5 | Ɗ Do meio da angústia invoquei o Senhor; o Senhor me ouviu, e me pôs em um lugar largo. | |
§ 118:6 | Ꝋ O Senhor é por mim, não recearei; que me pode fazer o homem? | |
§ 118:7 | Ꝋ O Senhor é por mim entre os que me ajudam; pelo que verei cumprido o meu desejo sobre os que me odeiam. | |
§ 118:8 | Ḕ É melhor refugiar-se no Senhor do que confiar no homem. | |
§ 118:9 | Ḕ É melhor refugiar-se no Senhor do que confiar nos príncipes. | |
§ 118:10 | Ŧ Todas as nações me cercaram, mas em nome do Senhor eu as exterminei. | |
§ 118:11 | Ƈ Cercaram-me, sim, cercaram-me; mas em nome do Senhor eu as exterminei. | |
§ 118:12 | Ƈ Cercaram-me como abelhas, mas apagaram-se como fogo de espinhos; pois em nome do Senhor as exterminei. | |
§ 118:13 | Ƈ Com força me impeliste para me fazeres cair, mas o Senhor me ajudou. | |
§ 118:14 | Ꝋ O Senhor é a minha força e o meu cântico; tornou-se a minha salvação. | |
§ 118:15 | Ɲ Nas tendas dos justos há jubiloso cântico de vitória; a destra do Senhor faz proezas. | |
§ 118:16 | Ɑ A destra do Senhor se exalta, a destra do Senhor faz proezas. | |
§ 118:17 | Ɲ Não morrerei, mas viverei, e contarei as obras do Senhor. | |
§ 118:18 | Ꝋ O Senhor castigou-me muito, mas não me entregou à morte. | |
§ 118:19 | Ɑ Abre-me as portas da justiça, para que eu entre por elas e dê graças ao Senhor. | |
§ 118:20 | ⱻ Esta é a porta do Senhor; por ela os justos entrarão. | |
§ 118:21 | ʛ Graças te dou porque me ouviste, e te tornaste a minha salvação. | |
§ 118:22 | Ɑ A pedra que os edificadores rejeitaram, essa foi posta como pedra angular. | |
§ 118:23 | Ƒ Foi o Senhor que fez isto e é maravilhoso aos nossos olhos. | |
§ 118:24 | ⱻ Este é o dia que o Senhor fez; regozijemo-nos, e alegremo-nos nele. | |
§ 118:25 | Ơ Ó Senhor, salva, nós te pedimos; ó Senhor, nós te pedimos, envia-nos a prosperidade. | |
§ 118:26 | Ꞗ Bendito aquele que vem em nome do Senhor; da casa do Senhor vos bendizemos. | |
§ 118:27 | Ꝋ O Senhor é Deus, e nos concede a luz; atai a vítima da festa com cordas às pontas do altar. | |
§ 118:28 | Ŧ Tu és o meu Deus, e eu te darei graças; tu és o meu Deus, e eu te exaltarei. | |
§ 118:29 | Ɗ Dai graças ao Senhor, porque ele é bom; porque a sua benignidade dura para sempre. a tua palavra. | |
O SALMO 118 | ||
PROÊMIO | ||
I SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 1 Desde o início, caríssimos irmãos, este grande salmo nos exorta à felicidade, a que todos ambicionam. Alguma vez se pode, ou se pôde, ou se poderá encontrar quem não queira ser feliz? Que necessidade haveria de se exortar à obtenção daquilo que espontaneamente deseja a alma humana? De fato, quem exorta procura excitar a vontade daquele com quem trata a anelar pelo objeto de sua exortação. Por que, então, se nos incita a querermos o que não é possível abster-nos de querer, senão porque todos na verdade desejam a felicidade, mas a maioria desconhece a maneira de a obter? Por este motivo, o salmista nô-la ensina, nesses termos: “Felizes os que se mantêm sem mácula no caminho, os que andam segundo a lei do Senhor”. Parece que nos diz: Sei o que queres, procuras a felicidade; se, portanto, queres ser feliz, mantém-te sem mácula. A primeira parte todos querem, quanto à condição, poucos a procuram. Mas, sem isto, não se chega aonde todos almejam. Mas onde se encontra alguém sem mácula, a não ser no caminho? Em que caminho, senão na lei do Senhor? Por isso, “felizes os que se mantêm no caminho, os que andam segundo a lei do Senhor”. Não é recomendação supérflua, mas exortação necessária que se apresenta a nosso espírito. Demonstra-se ser um bem aquilo de que muitos têm preguiça, a saber, de andarem sem mancha no caminho, que é a lei do Senhor, e indica serem felizes os que assim agem, a fim de que para alcançarem o fim almejado por todos, façam-no muitos que não o querem fazer. De fato, ser feliz é um bem tão grande que o desejam bons e maus. Não é de admirar que para serem felizes os bons sejam bons; mas é espantoso que por isso os maus sejam maus. Pois, todo aquele que entregue aos prazeres, à luxúria e aos estupros se corrompe, procura nisto sua felicidade e considera-se infeliz se não alcança o prazer e o gozo de sua concupiscência, e não hesita em se gabar de ser feliz se os obtém. Todo aquele que arde nos tachos da avareza, para isso junta riquezas seja como for, a fim de ser feliz. Quem quer derramar o sangue dos inimigos, quem ama o domínio, quem alimenta sua crueldade com morticínios, procura em todos esses crimes a felicidade. Todos esses, portanto, estão no erro e procuram por uma verdadeira miséria uma falsa felicidade. A voz divina, se a ouvirem, chama-os ao caminho: “Felizes os que se mantêm sem mácula, os que andam segundo a lei do Senhor”. De certo modo pergunta: Aonde ides? Para a ruína e não o sabeis. O caminho que trilhais não leva aonde quereis. Na verdade, quereis ser felizes; mas estes caminhos por onde correis são infelizes e levam a uma miséria maior. Não procureis por más veredas tão grande bem. Se anelais alcançá-lo, vinde por aqui, segui por ali. Abandonai as sendas perversas da malignidade, vós que não podeis desistir do desejo da felicidade. Cansais-vos inutilmente no esforço de alcançar o lugar onde vos manchareis. Não são felizes os que se mancham no erro, os que andam segundo a perversidade do mundo, e sim: “Felizes os que se mantêm sem mácula no caminho, os que andam segundo a lei do Senhor”. | |
§ 2 | 2.3 Notai o que além disso acrescenta: “Felizes os que perscrutam seus testemunhos, os que o procuram de todo o coração”. Não me parece referir-se a outra espécie de homens felizes, do que os já mencionados. Pois, perscrutar os testemunhos do Senhor e procurá-lo de todo o coração é o mesmo que manter-se sem mácula no caminho, andar segundo a lei do Senhor. Afinal continua: “Pois, os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos”. Se, portanto, os que andam no caminho, isto é, segundo a lei do Senhor, são os que perscrutam os seus testemunhos e o procuram de todo coração, de fato, os que cometem iniqüidade, não perscrutam os seus testemunhos. Todavia, conhecemos operários da iniqüidade que perscrutam os testemunhos do Senhor porque preferem ser doutos a serem justos; conhecemos também outros que perscrutam os testemunhos do Senhor, não porque já vivam honestamente, mas para saberem como devem viver. Esses tais, portanto, ainda não andam segundo a lei do Senhor, e por isso ainda não são felizes. Como, então, entender a palavra: “Felizes os que perscrutam seus testemunhos”, se verificamos que existem alguns que perscrutam os testemunhos de Deus e não são felizes, porque não são sem mácula? Com efeito, os escribas e fariseus que se sentavam na cátedra de Moisés, acerca dos quais diz o Senhor: “Fazei tudo quanto vos disserem, mas não imiteis as suas ações, pois dizem, mas não fazem” (Mt 23,3), de fato, perscrutavam os testemunhos do Senhor para terem coisas boas a ensinar, embora praticassem o mal. Mas deixemos estes de lado. Com razão pode-se-nos objetar que estes não perscrutam os testemunhos do Senhor. Pois, não os procuram, mas procuram obter outra coisa por meio deles, isto é, serem exaltados pelos homens, ou se enriquecerem. Não é isto perscrutar os testemunhos de Deus: não amar o que mostram, não chegar aonde querem levar os outros, isto é, a Deus. Ou se eles perscrutam os testemunhos de Deus, embora não por ele mesmo, mas para encontrarem e adquirirem outra coisa por meio destes testemunhos, certamente não “o procuram de todo o coração”; é acréscimo que verificamos não ser ocioso. O Espírito que fala essas palavras, sabendo que muitos perscrutam os seus testemunhos por motivo di-ferente daquele pelo qual foram apresentados, não diz apenas: “Felizes os que perscrutam seus testemunhos”, mas acrescentou: “os que o procuram de todo o coração”, de algum modo ensinando como, ou por que razão devem ser perscrutados os testemunhos do Senhor. Finalmente, no livro da Sabedoria fala a própria Sabedoria: “Buscar-me-ão os maus e não me encontrarão! Porque odiaram o saber” (Pr 1,28.29). Que significa isso, senão: Odiaram-me? Procuraram-me, portanto e não me encontram porque me odiaram. Como, então se diz que procuram o que odeiam, senão porque procuram ali outra finalidade? Pois não visam a serem sábios, para a glória de Deus, mas querem parecer sábios, tendo em vista a glória humana. Como não odiariam a sabedoria, que manda e ensina desprezar o que eles amam? Por conseguinte, “felizes os que se mantêm sem mácula no caminho, os que andam segundo a lei do Senhor. Felizes os que perscrutam seus testemunhos, os que o procuram de todo o coração”. Perscrutando desta forma seus testemunhos, procurando-o de todo o coração, andam sem mácula segundo a lei do Senhor. Porventura não perscrutava os seus testemunhos, nem o procurava também aquele que lhe dizia: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna”? (Mt 19,16). Mas como o procurou de todo o coração, se preferiu suas riquezas ao conselho do Mestre, se saiu pesaroso ao ouvir as palavras dele? Pois, igualmente diz o profeta Isaías: “Procurai o Senhor enquanto pode ser achado. Abandone o ímpio o seu caminho, e o homem mau os seus pensamentos” (Is 55,6-7). | |
§ 3 | Procurem, então, a Deus os ímpios e iníquos e tendo-o encontrado deixem de ser ímpios e iníquos. Como seriam já felizes, enquanto perscrutam os seus testemunhos e os buscam, se até os ímpios e iníquos podem fazê-lo? Quem diria, mesmo se é ímpio ou iníquo, que os ím-pios e iníquos são felizes? Com efeito, os justos são felizes em esperança, como são “bem-aventurados os que são per-seguidos por causa da justiça”, não por causa dos males que ainda sofrem, mas por causa do que lhes advirá, “porque deles é o reino dos céus”; e são “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, não porque têm fome e sede, mas por causa do que segue, “porque serão sacia-dos”; e “bem-aventurados os aflitos”, não porque choram, mas por causa do que segue, porque “haverão de rir” (Mt 5,10.6.5). “Felizes os que perscrutam os seus testemunhos, os que o procuram de todo o coração”, não por perscrutarem e procurarem, mas porque hão de achar o que buscam, pois procuravam de todo o coração e não nigli-gentemente. Se, pois, são felizes em esperança, talvez também sejam sem mácula na esperança. Verdadeiramente nesta vida, embora andemos segundo a lei do Senhor, embora perscrutemos os seus testemunhos e o procuremos de todo o coração, “se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8). Mas, esta questão deve ser examinada com mais cuidado. De fato, prossegue o salmo: “Pois os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos”. Daí se conclui que os que andam nos caminhos do Senhor, isto é, segundo a lei do Senhor, perscrutando os seus testemunhos e que o procuram de todo o coração, já podem ser sem mácula, isto é, sem pecado, conforme as palavras seguintes: “Os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos. Todo o que comete pecado come-te também iniqüidade”, diz São João; e acrescenta: “porque o pecado é iniqüidade” (1Jo 3,4). Mas é preciso encerrar este sermão; tão grande questão não deve ser resumida | |
II SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 3 Neste salmo está escrito, assim se lê e é verdade: “Os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos”. Mas devemos elaborar o discurso, com o auxílio de Deus, em cujas mãos estamos nós e nossas palavras, a fim de, apesar de falarmos corretamente, não se perturbe o leitor ou ouvinte por não entender bem. É palavra de todos os santos: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8). Por isso, devemos precaver-nos para não pensarmos que eles não andam nos caminhos do Senhor, porque o “pecado é iniqüidade” e os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos; ou uma vez que não há dúvida de que eles andam nos caminhos do Senhor, acredita-se que eles não tenham pecado, o que indubitavelmente é falso. Com efeito, não foi escrito no intuito de se evitarem arrogância e orgulho: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos”. De outra forma não se acrescentaria: “E a verdade não está em nós”, mas se diria: A humildade não está em nós, principalmente porque a continuação ilustra mais claramente este sentido, retirando toda possibilidade de dúvida. Pois, logo após ter dito isso acrescenta São João: “Se confessarmos nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e purificar-nos de toda injustiça” (1Jo 8,9). Que diz aqui, em que contradiz a condenável soberba da impiedade? Se, pois, os santos não dizem que não têm pecado, para evitar a arrogância e não para confessar a verdade, que haverão de confessar para merecerem a remissão e a purificação? Será que isso também se faz para evitar a arrogância? Como se impetrará a verdadeira purificação dos pecados, se a confissão é falsa? Por isso, emudeça e perca o viço a arrogância do soberbo, que se assemelha ao feno e engana-se a si mesma, dizendo por simulada humildade para que ouçam os homens que tem pecado, não obstante, no coração, em sua ímpia exaltação afirma que não tem pecado. Os que assim falam, enganam-se a si mesmos, e a verdade não está neles. Mas ao declararem isso diante dos homens, enganam não somente a si mesmos, mas seduzem os outros pela perversidade de um louco ensinamento; ao dizerem isto no próprio coração, enganam-se a si mesmos e a verdade não se encontra neles; assim enganam-se a si mesmos em seu coração, e seu coração perde a luz da verdade. Exclame, porém, a santa família de Cristo, que frutifica e cresce em todo o mundo, humildemente veraz e verdadeiramente humilde, exclame: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós. Se confessarmos nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e purificar-nos de toda injustiça”. Estejam disto convictos para assim se exprimirem. A humildade será genuína se não se ostentar por palavras somente, a fim de sermos conforme recomenda o Apóstolo: “Sem pretensões de grandeza, mas sentindo-vos solidários com os mais humildes” (Rm 12,16). Não disse: concordando em palavras e sim: “sentindo-vos solidários”. Não de boca, mas pelo coração. Ó hipócrita, se declaras ter pecado e acreditas que não o tens, exteriormente finges humildade, e interiormente abraças a vaidade. Por conseguinte, não tens a verdade nem na boca, nem no coração. De que serve aparentar aos homens ser humilde a tua palavra, se Deus vê que és orgulhoso nos sentimentos? Certamente, se o oráculo divino soasse a teus ouvidos desta forma: Não fales orgulhosamente, nem assim seria injusta tua condenação por falares humildemente diante dos homens, e no coração falares soberbamente diante do Senhor. Ao ouvires: “Não penses orgulhosamente, mas teme” (Rm 11,20) (aqui não se encontra: digas, mas: “penses”), por que não és humilde também no teu íntimo, onde estão teus pensamentos? O espírito, então, se enche de orgulho para que a língua minta, fingindo humildade? Lês, ou ouves a palavra: “Não penses orgulhosamente, mas teme”, e tu a tal ponto pensas orgulhosamente que julgas não ter pecado; assim, visto que não queres temer, nada te resta senão inchar-te. | |
§ 2 | E por que, dizes, está escrito: “Pois os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos?” Acaso os santos do Senhor não andam em seu caminho? Se andam, não cometem iniqüidade; se não cometem iniqüidade, não têm pecado; porque “o pecado é iniqüidade” (Jo 3,4). Levanta-te, Senhor Jesus, para ajudar-me e socorre-me contra o herege soberbo através do Apóstolo que confessa. Onde está, então, o homem de Deus que se humilha aniquilando-se a fim de encher-se de ti? Ouçamo-lo, meus irmãos. Interroguemo-lo sobre esta questão, se nos apraz, ou antes porque nos apraz. Dize-nos, ó Paulo, se andavas nos caminhos do Senhor enquanto vivias na carne? Ele nos responderá: E por que dizia eu: “Entretanto, qualquer que seja o ponto a que chegamos, conservemos o rumo”? (Fl 3,16). Por que dizia: “Será que Tito vos explorou? Não caminhamos no mesmo espírito? Não seguimos os mesmos passos”? (2 Cor 12,18). Por que dizia: “Enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor, pois caminhamos pela fé não pela visão”? (2 Cor 5,6). Qual o caminho do Senhor mais seguro do que a fé, pela qual o justo vive? (cf Rm 1,17). Qual seria outro caminho pelo qual tenderia para o alto, quando dizia: “Esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está adiante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus”? (Fl 3,13). Fi-nalmente, corria por outro caminho quando dizia: “Com-bati o bom combate, terminei a minha carreira”? (2 Tm 4,7). Sejam suficientes estas respostas, pelas quais sabemos que o apóstolo Paulo andou pelos caminhos do Senhor; mas perguntemos-lhe ainda outra coisa. Dize, peço- te, ó Apóstolo, quando ainda vivendo na carne andavas pelos caminhos do Senhor, tinhas pecado, ou não? Ouçamos se ele se engana a si mesmo, ou pensa o mesmo que seu co-apóstolo, João, porque a verdade estava neles (cf 1Jo 1,8). Então, ele nos responderá: Não lestes a minha confissão: “Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero”? (Rm 7,19). Ouvimos. Já lhe perguntamos outra coisa: Como andavas pelos caminhos do Senhor, se praticavas o mal que não querias, e o salmo sagrado assim faz ressoar: “Os que cometem iniqüidade não andaram nos caminhos do Senhor?” Escuta como ele logo responde pela sentença imediatamente após: “Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7,19-20). Eis como aqueles que andam pelos caminhos do Senhor, não cometem iniqüidade e no entanto não estão sem pecado; porque já não são eles que agem, e sim o pecado que neles habita. | |
§ 3 | Neste ponto pode dizer alguém: Como fazia o mal que não queria e como não era ele que agia e sim o pecado que nele habitava? No entanto, esta questão já foi solucionada e suficientemente se manifestou pela autoridade das Escrituras canônicas que é possível que aqueles que andam nos caminhos do Senhor, embora não sejam sem pecado, não são eles mesmos que agem. “Os que cometem iniqüidade”, isto é, pecado, porque o “pecado é iniqüidade (1Jo 3,4), não andaram em seus caminhos”. Agora, será necessário outro sermão (porque precisamos encerrar o presente), para se ver como entender que ele proceda assim devido a esse corpo mortal, no qual habita a lei do pecado, e que não seja ele que age, por causa dos caminhos do Senhor que ele trilha | |
III SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 3 Por causa do versículo deste salmo: “Os que cometem iniqüidade não andaram em seus caminhos” e tendo em vista que o “pecado é iniqüidade” (1Jo 3,4), conforme diz o apóstolo João, surge uma questão difícil: Como é possível que os santos nesta vida não são sem pecado, porque é verdadeira a afirmação: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8), não obstante, eles andam nos caminhos do Senhor, por onde não caminham os que cometem iniqüidade. A solução é a apresentada pelo apóstolo Paulo: “Já não sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7,17-20). Ora, como é sem pecado aquele no qual o pecado habita? No entanto, ele anda pelos caminhos do Senhor, por onde não passam os que cometem iniqüidade, porque já não é ele que age, mas o pecado que nele habita. Por conseguinte, a questão foi solucionada de tal modo que surgisse outra mais difícil ainda: Como pode o homem fazer o que ele próprio não faz? O Apóstolo disse ambas as coisas: “Faço o que não quero, e: Já não sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim”. Daí termos de entender: quando o pecado que habita em nós age, então não somos nós que agimos; quando a vontade de forma alguma consente e contém até os membros do corpo para não obedecer a seus desejos. O que faz o pecado contra nossa vontade, a não ser apenas despertar os desejos ilícitos? Se não houver assentimento da vontade, produz-se de fato algum afeto, mas impede-se qualquer efeito. É isto que ordena o mesmo Apóstolo, ao dizer: “Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas paixões; nem entregueis vossos membros, como armas de injustiça, ao pecado” (Rm 6,12). Existem, pois, paixões que nos és proibido seguir. Essas paixões produzem o pecado; se lhes obedecemos também nós o cometemos; se, porém, obedecendo ao Apóstolo, não as seguimos, não somos nós que agimos, mas o pecado que habita em nós. Se, pois, não tivéssemos desejo algum ilícito, nem nós, nem o pecado cometeria em nós algum mal. Com efeito, o movimento dos desejos ilícitos, a que não obedecemos, não somos nós que o produzimos; contudo, diz-se que nós o temos porque não provém do vigor de uma natureza estranha, mas é doença da nossa; desta fraqueza seremos totalmente livres, quando nos tornarmos imortais de corpo e alma. Por conseguinte, como andamos pelos caminhos do Senhor, não obedecemos às paixões pecaminosas; como não somos sem pecado, temos desejos pecaminosos. Já não somos nós que agimos, quando não lhes obedecemos; e sim, é o pecado que habita em nós que as excita. “Os que cometem iniqüidade”, isto é, obedecem às paixões pecaminosas, “não andaram nos caminhos” do Senhor. | |
§ 2 | Mas ainda devemos investigar o que pedimos a Deus que nos perdoe, com as palavras: “Perdoa as nossas dívidas”. Seria o que fazemos, quando obedecemos às paixões pecaminosas, ou pedimos que nos perdoe os próprios desejos que não somos nós que provocamos, mas o pecado que habita em nós? Com efeito, segundo minha opinião, todo o reato daquela doença e fraqueza de onde provêm os desejos ilícitos, e que o Apóstolo denomina “pecado”, foi apagado no sacramento do batismo, com tudo o que em obediência a ele fizemos, dissemos, pensamos. De então em diante esta enfermidade não nos prejudicaria, embora permanecesse, se não prestássemos jamais obediência a seus desejos ilícitos, seja por obras, seja por palavras, ou por tácito consentimento, até que ela também seja curada, ao se cumprir o que pedimos, seja nesses termos: “Venha o teu reino, ou livra-nos do mal” (Mt 6,10.13). Mas, como é uma tentação a vida humana sobre a terra (cf Jó 7,1), embora possamos estar longe de cometer crimes, não falta, contudo, com que possamos obedecer aos desejos do pecado, por palavras, pensamentos ou obras. Se estamos vigilantes acerca das quedas maiores, coisas miúdas se insinuam à nossa falta de cautela. Se elas se unem contra nós, embora cada uma delas não possa nos esmagar por seu peso, todas juntas, contudo, nos sufocam por sua quantidade. E por isso, mesmo os que caminham nas sendas do Senhor, dizem: “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6,12), visto que pertencem aos caminhos do Senhor a própria oração e a própria confissão, embora o pecado nada tenha que ver com eles. | |
§ 3 | De fato, nos caminhos do Senhor, abrangidos todos por uma só fé que leva a crer naquele que justifica o ímpio (cf Rm 4,5), e que também afirmou: “Eu sou o caminho” (Jo 14,6), ninguém comete pecado, mas o confessa. Com efeito, desvia-se se peca; por isso o pecado não se atribui ao caminho, cometido por quem dele se desvia, mas no caminho da fé não são tidos como tendo pecado aqueles aos quais não se imputa pecado. Destes, o apóstolo Paulo recomendando a justiça da fé, mostra estar escrito no salmo: “Felizes aqueles cujas iniqüidades foram perdoadas e cujos pecados foram apagados. Feliz o homem a quem o Senhor não imputou pecado” (Sl 31,1.2; Rm 4,7). Os caminhos do Senhor prestam tal benefício e assim, uma vez que o justo vive da fé (cf Rm 1,17), por meio desta, o caminho do Senhor afasta a iniqüidade da infidelidade. Quem anda por este caminho, isto é, por uma fé piedosa, ou não comete pecado, ou se é cometido algum erro, não é imputado por causa do caminho, e é tido como se não fosse feito. Por isso, é correto entender também assim o versículo: “Os que cometem iniqüidade, não andaram em seus caminhos”, de tal modo que aqui alude à iniqüidade que consiste em se afastar da fé, ou em não ter acesso a ela. Conforme também disse o Senhor aos ju-deus: “Se eu não tivesse vindo, não seriam culpados de pe-cado” (Jo 15,22). Não significa, de fato, que eles não tives-sem pecado algum antes que Cristo viesse na carne, e que tenham começado a ter pecado depois da encarnação; mas quis dar a entender certa espécie de pecado, isto é, o de in-fidelidade, porque não acreditaram nele. Assim, os que co-metem iniqüidade, não qualquer uma, mas esta espécie de infidelidade, não andaram em seus caminhos, porque “todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade” (Sl 24,10). Ambas se encontram em Cristo, e fora dele, em parte alguma. Diz o Apóstolo: “Pois eu vos asseguro que Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais, ao passo que os gentios glorificam a Deus pondo em realce a sua misericórdia” (Rm 15,8-9). “Misericórdia” porque nos remiu; “verdade” porque cumpriu o que prometeu, e há de realizar o que promete agora. Portanto, “os que cometem iniqüidade”, isto é, infidelidade, “não andaram em seus caminhos”, porque não acreditaram em Cristo. Convertam-se, pois, e creiam piamente naquele que justifica o ímpio (cf Rm 4,5) e encontrem nele misericórdia pela remissão dos pecados, e verdade, pela realização das promessas, isto é, todos os caminhos do Se-nhor. Andando por eles, não cometerão iniqüidades; porque não se apegarão à infidelidade, mas à fé, que opera pela caridade (cf Gl 5,6), e à qual não é imputado pecado | |
IV SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Quem é que assim, caríssimos irmãos, se dirige ao Senhor: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia. Oxalá se confirmem minhas veredas na observância de tuas justificações. Então não serei confundido, ao contemplar todos os teus mandamentos”. Quem é que assim fala, senão cada membro de Cristo, ou melhor todo o corpo de Cristo? E que significa: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia?” Seria: “Impuseste em demasia”, ou: “serem observados em demasia?” Seja como for que entendamos, parece que este dito contradiz aquela célebre e nobre sentença, que os gregos elogiam em seus sábios, e que os latinos aceitam com louvores: “Nada demais”1. Se isto é verdade, que nada deve ser em demasia, como seria correto o que aqui se diz: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia?” Quando Deus ordenaria alguma coisa em demasia, ou desejaria que fosse observada em demasia, se todo excesso fosse condenável? Diríamos que não estamos obrigados a atender a autoridade alguma dos sábios gregos levando em consideração o que está escrito: “Deus não tornou louca a sabedoria deste século”? (1 Cor 1,20). E que preferimos acreditar ser falsa essa sentença: Nada demais, e não a palavra divina que lemos e cantamos: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia”, a não ser que a reta razão nos oriente, em vez da altivez dos gregos. Diz-se que é demais tudo o que vai além do que é conveniente. Pouco e demais são duas coisas contrárias entre si. Pouco é o que é menos do que convém; demais o que é além do que convém. No meio encontra-se o que é moderado e assim se exprime: É bastante. Tanto na vida quanto nos costumes é útil não fazer absolutamente nada além do que convém; portanto, é correta a sentença: Nada demais. É preferível afirmá-lo a negá-lo. Mas por vezes no latim abusa-se desta palavra, usando demais (“nimis”) em vez de muito (“valde”). É corrente isso nas Sagradas Letras e em nossas palestras. Por conseguinte, aqui: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia”, interpretamos: muito, se entendemos bem. Se dizemos a um amigo caríssimo: Gosto demais de você, não queremos dizer mais do que convém, mas queremos dar a entender que o amamos muito. Finalmente aquele provérbio grego não contém a palavra que aqui se lê; nele se acha ágan que significa: demais; aqui encontra-se sphódra que se traduz por: muito. Mas, às vezes, conforme dissemos, encontramos e dizemos: demais, em vez de: muito. Daí vem que alguns códices latinos não dizem: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia”, mas: “bem” (valde). Deus, portanto, ordenou bem, e importa bem observar os mandamentos de Deus. | |
§ 2 | Mas, atendei ao que acrescenta a piedade humilde ou pia humildade, com a fé consciente da graça: “Oxalá se confirmem as minhas veredas na observância de tuas justificações”. Na verdade tu ordenaste; oxalá faça-se em mim o que mandaste. Ao ouvires: “Oxalá” reconhece uma exclamação de desejo; e ao reconhecê-la, desiste de um orgulho presunçoso. Pois, quem declara desejar o que tem a seu arbítrio, sem necessitar de auxílio algum para obtê-lo? Em conseqüência, se o homem opta por aquilo que Deus ordena, há de rogar a Deus lhe dê aquilo que ele preceitua. De quem há de esperar, senão do “Pai das luzes”, do qual, no testemunho da Escritura, “desce todo dom precioso e toda dádiva perfeita”? (Tg 1,17). O salmista não formula o desejo de que se confirmem suas veredas na observância das justificações de Deus a não ser depois de ter recebido por odem de Deus os mandamentos, tendo em vista aqueles que julgam ajudar-nos Deus a praticar a justiça somente enquanto os preceitos de Deus são anunciados para nosso conhecimento e estes, uma vez conhecidos, são cumpridos somente pelas forças de nossa vontade, sem qualquer graça de Deus. A isso se refere o que ele declarou anteriormente: “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia”. Poderia dizer alguém: Já recebi a lei, já a conheço. Tu, porém, mandaste que teus mandamentos fossem observados em demasia. E teus preceitos são santos, justos, bons; mas o pecado produziu em mim a morte através do que é bom (cf Rm 7,13), se não me ajudar a tua graça. “Oxalá se confirmem as minhas veredas na observância de tuas justificações”. | |
§ 3 | “Então não serei confundido, quando contemplar todos os teus mandamentos”. Os mandamentos de Deus, quer lidos, quer meditados, devem ser considerados um espelho, segundo as palavras do apóstolo Tiago: “Com efeito, aquele que ouve a palavra e não a pratica, assemelha-se a um homem que, observando o seu rosto no espelho, se limita a observar-se e vai-se embora, esquecendo-se logo da sua aparência, mas aquele que se dedica ao estudo da lei perfeita da liberdade e persevera nela, não sendo um ouvinte esquecido, antes, praticando o que ela ordena, esse é bem-aventurado naquilo que faz” (Tg 1,23-25). O salmista quer ser daqueles que contemplam como num espelho os mandamentos de Deus e não fica confundido, porque não quer ser apenas um ouvinte deles, mas quer praticá-los. Por isso, deseja que se confirmem as suas veredas na observância das justificações de Deus. Confirmem-se como, senão pela graça de Deus? De outra forma, terá a lei de Deus, não para se alegrar, mas para ficar confundido, se quiser contemplar os mandamentos que não põe em prática. | |
§ 4 | 7 “Eu te confessarei com retidão de coração, ao aprender os juízos de tua justiça”. Não se trata de confissão de pecados, e sim confissão de louvor, conforme disse aquele que não tinha pecado algum: “Eu te confesso, ó Pai, Senhor do céu e da terra” (Mt 11,25) e de acordo com o que está escrito no livro do Eclesiástico: Assim direis em confissão: “Todas as obras do Senhor são magníficas” (Eclo 39,15.16). “Eu te confessarei com retidão de coração”. Oxalá se confirmem as minhas veredas, e assim te confessarei porque foste tu que agiste, para o teu louvor, não o meu. Então, “eu te confessarei ao aprender os juízos de tua justiça”, se tiver coração reto, se meus caminhos se firmarem na observância de tuas justicações. Pois, de que me servirá tê-las aprendido, se com o coração perverso trilhar os caminhos da maldade? Não me alegrarei neles, mas serei acusado por causa disso. | |
§ 5 | 8 Em seguida acrescenta: “Guardarei as tuas justificações”. Tudo isso forma um conjunto, desde o versículo: “Oxalá se confirmem as minhas veredas na observância de tuas justificações. Então não serei confundido ao contemplar todos os teus mandamentos. Eu te confessarei com retidão de coração, ao aprender os juízos de tua justiça”. Mas, como prossegue? “Não me desampares muito (valde); ou, segundo alguns códices: em excesso (usque nimis), em vez de: muito (valde). De fato, no grego está aqui esta palavra: sphódra. Como se ele quisesse que Deus o desamparasse, mas não “muito”. Não é isso, de forma alguma. Mas, como Deus abandonara o mundo, por causa dos pecados, teria abandonado “muito”, se não lhe aplicasse tão grande remédio, isto é, a graça de Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor. Agora, efetivamente, segundo esta prece do corpo de Cristo, ele não o desampara “muito, porque era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo” (2 Cor 5,19). Pode-se entender também que o versículo é a voz daquele que disse em sua prosperidade: “Jamais serei abalado” (Sl 29,7.8), como que confiando em suas forças, mas que Deus, para lhe mostrar que não foi por seus méritos e sim por própria vontade que deu vigor a sua beleza, apartou dele a sua face e ele se perturbou. Caindo em si, já sem presunção, clama: “Não me desampares muito”. Se, pois, desamparaste, para que se evidencie que sou fraco sem teu auxílio, não me desampares “muito” a fim de não me perder. “Impuseste teus mandamentos para serem observados em demasia”. Já não posso me desculpar sob pretexto de ignorância, mas como sou fraco, “oxalá se confirmem as minhas veredas na observância de tuas justificações. Então não serei confundido, quando contemplar todos os teus mandamentos”. Então, “eu te confessarei com retidão de coração, ao aprender os juízos de tua justiça”. Então, “guardarei as tuas justificações”. E se me abandonas, que não me glorie em mim mesmo; não me abandones muito, para que justificado por ti, em ti me glorifique | |
V SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 9 Vamos considerar, caríssimos, os seguintes versí-culos do salmo, e conforme o Senhor nos possibilitar, perscrutemos as Sagradas Letras: “como o jovem corrige seu caminho? Guardando as tuas palavras”. Interroga-se a si mesmo e o salmista responde a si. “Como o jovem corrige seu caminho?” Até aqui a pergunta. Em seguida, a resposta: “Guardando as tuas palavras”. Nesta passagem, guardar as palavras de Deus significa praticar os preceitos. Em vão são eles guardados na memória, se não são guardados na vida. Pois, alguns conservam na memória as palavras de Deus, procurando não se esquecer delas, mas não para corrigirem sua vida. O salmista não disse: Como exercitará o jovem a sua memória, mas: “Como corrige seu caminho?” E responde: “Guardando as tuas palavras”. O caminho jamais é declarado correto enquanto a vida for perversa. | |
§ 2 | Mas que quer ele com este jovem? Teria podido dizer: Como corrige o homem seu caminho? Ou: Como corrige o varão o seu caminho? pois a Escritura muitas vezes emprega a palavra para representar pelo sexo mais nobre a humanidade, maneira de falar pela qual o todo é representado pela parte. Se foi declarado no salmo: “Feliz o homem” (Sl 1,1), não diz que a mulher que não entrou no conselho dos ímpios não seja feliz. Aqui, de fato, não disse homem, nem varão, mas “jovem”. Então o velho não tem o que esperar? Ou o velho não corrige seu caminho, guardando as palavras de Deus? Ou seria uma admoestação, pois esta idade principalmente deve assim agir? Conforme o que foi escrito em outro lugar: “Filho, desde a tua mocidade aplica-te à disciplina e até os cabelos brancos encontrarás a sabedoria” (Eclo 6,18). Existe outra explicação. Pode-se entender aqui daquele filho mais moço do evangelho, que deixou o pai, partindo para uma região longíqua, e dissipou sua herança numa vida devassa; depois que cuidou dos porcos e sofreu privações e fome, caiu em si e disse: “Vou-me embora, procurar o meu pai”. Como havia corrigido seu caminho, a não ser guardando as palavras de Deus, que desejou, sentindo fome do pão paterno? O filho mais velho não corrigira seu caminho, pois disse a seu pai: “Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos”. O mais jovem corrigiu seu caminho, que ele confessou ser depravado e perverso, dizendo ao pai: “Já não sou digno de ser chamado teu filho” (Lc 15,12-32). Ocorre-me um terceiro sentido, que eu, de fato, no meu fraco modo de entender, prefiro aos dois precedentes: o mais velho figura o velho homem, e o mais jovem o novo. O velho traz a imagem do homem terreno e o jovem a do celeste, porque “primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é animal; o que é espiritual, vem depois (1 Cor15,49; 1Cor 15, 46). Seja, portanto, alguém, quanto à idade corporal, decrépito por causa da avançada idade, será jovem diante de Deus, uma vez convertido e receber a novidade da graça. E assim corrige seu caminho, guardando as palavras de Deus, isto é, a palavra da fé que pregamos, da fé que opera pela caridade (cf Rm 10,8; cf Gl 5,6). | |
§ 3 | 10 Mas este povo mais jovem, filho da graça, homem novo, cantor do cântico novo, herdeiro do Novo Testamento, este mais jovem que não é Caim e sim Abel; não Ismael, mas Isaac; não Esaú, mas Israel; não Manassés, mas Efraim; não Eli, mas Samuel; não Saul, mas Davi, notai o que ele acrescenta: “De todo o coração eu te procurei; não permitas que me aparte de teus mandamentos”. Eis que ele suplica ser auxiliado a guardar as palavras de Deus, a fim de corrigir sendo jovem o seu caminho, conforme dissera. Na verdade, nisto é que realiza a palavra: “Não permitas que me aparte de teus mandamentos”. Que quer dizer ser repelido por Deus, a não ser: não receber auxílio? A fraqueza humana não se adapta bem aos mandamentos retos e árduos, a não ser com o auxílio da caridade preveniente. Com razão se diz que Deus repele aqueles que ele não ajuda, como se a espada de fogo proibisse o indigno de estender a mão à árvore da vida (cf Gn 3,24). Quem, todavia, é digno, desde que por meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e, pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque nele todos pecaram? (cf Rm 5,12). Mas a gratuita misericórdia de Deus cura nossa merecida miséria. Fala o sal-mista: “De todo o coração eu te procurei”; como poderia assim agir, se quando refratário não o convertesse aquele ao qual ele dirige as palavras: “Ó Deus, voltando-te para nós, restituir-nos-ás a vida” (Sl 84,7), e não procurasse quando estava perdido, não o chamasse quando desgarrado aquele que diz: “buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a que estiver desgarrada”? (Ez 34,16). | |
§ 4 | 11.12 Daí vem que, sob o governo e a ação de Deus, o salmista corrige seu caminho, guardando as palavras de Deus, o que não poderia fazer por si mesmo. Confessa-o o profeta Jeremias: “Eu sei, Senhor, que não pertence ao homem o seu caminho, que não é dado ao homem, que caminha, dirigir os seus passos” (Jr 10,23). Do Senhor provém igualmente o que o salmista desejou mais acima: “Oxalá se confirmem as minhas veredas” e no versículo onde acrescentou: “Em meu coração conservei a tua palavra para não te ofender”; imediatamente procurou o auxílio divino, a fim de que as palavras de Deus não ficassem ocultas sem resultado em seu coração, sem as conseqüentes obras de justiça. Tendo assim falado, prosseguiu: “Bendito és tu, Senhor, ensina-me as tuas justificações. Ensina-me”, como as aprendem os que as praticam e não como os que se lembram delas apenas para terem o que falar. Pois, efetivamente, já dissera: “Em meu coração conservei a tua palavra para não te ofender”. Por que, então, ainda procura aprender a palavra que já guarda escondida no coração? Não o faria, se não a tivesse aprendido. Por que então o acréscimo: “Ensina-me as tuas justificações”, a não ser que queira aprendê-las praticando-as e não falando ou retendo na memória? Assim como se lê em outro salmo: “Dará a misericórdia quem deu a lei” (Sl 83,8), também diz aqui: “Bendito és tu, Senhor, ensina-me as tuas justificações”. Uma vez que conservei a tua palavra em meu coração para não te ofender, deste a lei; dá igualmente a bênção da graça para que aprenda praticando o que mandaste, ordenaste. São suficientes estas explicações a fim de que vosso espírito se nutra sem fastio. As palavras seguintes pedem outro SERMÃO 💬 | |
VI SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 13 Fornece-nos o começo deste sermão o versículo do salmo que comentamos: “Com os meus lábios enumero todos os juízos de tua boca”. Que é isto, caríssimos irmãos? Que é isto? Quem pode enunciar todos os juízos de Deus, se nem mesmo pode investigá-los? Será que hesitamos em exclamar com o Apóstolo: “Ó abismo da riqueza da sabedoria e da sabedoria de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos”! (Rm 11,35). O Senhor afirma: “Tenho ainda muito a vos dizer, mas não podeis agora compreender” (Jo 16,12). E embora logo lhes prometesse o conhecimento de toda verdade, por intermédio do Espírito Santo, clama contudo são Paulo: “O nosso conhecimento é limitado” (1 Cor 13,9), a fim de compreendermos que o Espírito Santo é, na verdade, ele cujo penhor recebemos, quem nos há de conduzir a toda verdade; mas isto acontecerá quando chegarmos a outra vida, depois desta vida, em espelho e figura, e virmos a Deus face a face. Como, então, declara o salmista: “Com os meus lábios enumero todos os juízos de tua boca?” Assevera-o aquele que dissera pouco antes no versículo precedente: “Ensina-me as tuas justificações”. De que modo, portanto, enumera todos os juízos de sua boca, aquele que ainda quer aprender suas justificações? Acaso já conhecia todos os juízos, mas queria ainda aprender as justificações? Seria espantoso já conhecer os juízos insondáveis de Deus e desconhecer o que preceituou aos homens que praticassem. Pois, justificações não são palavras, mas atos de justiça, a saber, obras dos justos ordenadas por Deus. Por isso são chamadas obras de Deus, embora feitas por nós, porque não se fazem senão por um dom de Deus. Quanto aos juízos de Deus, são as sentenças de Deus contra o mundo agora e no fim dos séculos. Mas como as palavras de Deus contêm tudo, suas justificações e seus juízos, por que ainda procura aprender as justificações, aquele que diz ter escondido em seu coração as palavras de Deus? Pois afirma: “Em meu coração conservei a tua palavra, para não te ofender”. Então prossegue: “Bendito és tu, Senhor. Ensina-me as tuas justificações”. E em seguida: “Com os meus lábios enumero todos os juízos de tua boca”. Duas asserções evidentemente não contrárias, até mesmo concordes e conjuntas: conservou em seu coração as palavras de Deus, e: Com os seus lábios enumerou todos os seus juízos. “Pois quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). Mas, não se descobre como convém ao homem, que já contém em seu coração as palavras de Deus e enuncia com seus lábios todos os juízos de Deus, que ainda queira aprender as justificações de Deus, a não ser que queira aprendê-las fazendo e não só retendo na memória e falando. O salmista demonstra que devemos pedir isto ao Senhor, sem o qual nada podemos fazer. Mas já tratamos desta questão em outro sermão; agora, porém, empreendemos a tarefa de expor, à medida que Deus nos der possibilidade para tal, como pôde afirmar o salmista que enumerou em seus lábios todos os juízos da boca de Deus, que foram declarados insondáveis, e de cuja profundidade foi escrito noutra passagem: “Os teus juízos são como o abismo profundo” (Sl 35,7). | |
§ 2 | Prestai atenção para saberdes como entendemos esta passagem. Acaso a Igreja ignora os juízos de Deus? Não; ela os conhece bem. Está ciente de quais são aqueles que hão de ouvir da parte do juiz dos vivos e dos mortos: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino” e a quem dirá: “Ide para o fogo eterno” (Mt 25,34.41). Sabe o apóstolo Paulo que os que ele enumera, os impudicos, os idólatras, estes e mais aqueles, não herdarão o reino de Deus (1 Cor 6,9.10); mas que a ira e a indignação, a tribulação e a angústia é para todos os que praticam o mal, para o judeu em primeiro lugar e também para o grego; glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, para o judeu em primeiro lugar, mas também para o grego (Rm 2,9.10). A Igreja conhece estes e outros juízos de Deus, evidentemente expressos; mas estes não consti-tuem o todo, porque existem alguns insondáveis e como um grande abismo, profundos e ocultos. Seriam eles conhecidos a alguns dos membros mais sublimes deste homem que com sua Cabeça, o Salvador, forma o Cristo total? Talvez se deva dizer que são insondáveis para qualquer homem, que não pode perscrutá-los por suas próprias forças. Mas como não poderia, por dom do Espírito Santo, aquele a quem o Senhor se dignar conferi-lo? Pois assim foi afirmado: Deus “habita uma luz inacessível” (1 Tm 6,16); todavia, ouvimos dizer: “Acercai-vos dele e sereis iluminados” (Sl 33,6). Soluciona-se a questão, ponderando-se que apesar de ser ele inacessível a nossas forças, dele nos acercamos por um dom seu. Mesmo se a nenhum dos santos, absolutamente, enquanto este corpo corruptível pesa sobre a alma (cf Sb 9,15), é concedido conhecer todos os juízos de Deus, porque de fato é demasiado para o homem — para dar um exemplo de onde se pode conjecturar a imensidade dos juízos de Deus, na verdade ninguém, a não ser por um juízo de Deus, é tardo de inteligência ou coxo corporalmente — contudo, a Igreja, o povo adquirido por Deus, tem com que dizer, e dizer com toda veracidade: “Com os meus lábios enumero todos os juízos de tua boca”, isto é, não calei juízo algum dos teus, dos que quiseste tornar-me conhecidos por meio de tua palavra, mas todos eles, com efeito, enumerei com meus lábios. A meu ver, foi isto que ele quis dar a entender porque não disse: todos os teus juízos, mas: “Todos os juízos de tua boca”, os juízos que proferiste para mim, de tal sorte que sua boca figuraria sua palavra, que veio até nós através das revelações múltiplas dos santos e dos dois Testamentos. Todos esses juízos, em todos os tempos, não cessa a Igreja de enunciá-los. | |
§ 3 | 14 Em seguida acrescenta: “Deleitei-me na trilha de teus testemunhos, como se possuísse todas as riquezas”. Quanto à trilha dos testemunhos, nada entendemos figurar mais rapidamente, mais certamente, nada mais resumidamente, nada de maior do que o Cristo, em quem se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (cf Cl 2,3). Daí provém que o salmista se diz alegre e contente neste caminho, “como se possuísse todas as riquezas”. Efetivamente trata-se dos testemunhos de Deus, nos quais se digna provar-nos quanto nos ama. Pois, Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós quando ainda éramos pecadores (Rm 5,8). Como ele próprio afirmou: “Eu sou o caminho” (Jo 14,6), e a humilhação de seu nascimento na carne e de sua paixão são testemunhos evidentes de seu amor divino por nós, sem dúvida alguma Cristo é o caminho dos testemunhos de Deus. Através destes testemunhos, com efeito, que vemos realizados nele, ficamos com a expectativa e a esperança de serem cumpridas igualmente em nosso favor no futuro as promessas eternas. Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo com ele? (cf Rm 3,32). | |
§ 4 | 15.16 Prossegue o salmista: “Tratarei com loquacidade de teus mandamentos e considerarei os teus caminhos”. O termo grego adolescréso foi vertido por alguns por garriam, serei loquaz, e por outros: exercebor, exercitar-me-ei. Parecem coisas diversas. Mas se entendermos como exercício da inteligência, com certa satisfação em discutir, as duas palavras convergem para o mesmo ponto, e de certa maneira uma completa a outra, de sorte que a loquacidade não seja estranha a este exercício. Os tagarelas (garruli) costumam ter o nome de loquazes. Assim a Igreja se exercita nos mandamentos de Deus, contra todos os inimigos da fé cristã e católica, loquaz devido as abundantes discussões dos doutores. Elas são úteis aos que discursam se forem consideradas apenas as “vias do Senhor”, conforme está escrito: “misericórdia e verdade” (Sl 24,10). Em Cristo encontra-se a plenitude das duas. Por meio deste suave exercício faz-se também o que acrescenta o salmista: “Meditarei as tuas justificações, não esquecerei tuas palavras”. Com efeito, “meditarei” a fim de “não esquecer”. Daí deriva que o salmo primeiro chama de feliz aquele que medita dia e noite a lei do Senhor (cf Sl 1,2). | |
§ 5 | Em todo esse comentário, caríssimos, relembramos, à medida que pudemos, aquele que guarda em seu coração as palavras do Senhor e enumera em seus lábios todos os juízos de sua boca, que se deleita no caminho de seus testemunhos como se possuísse todas as riquezas, e loquaz ou exercitado em seus mandamentos, considera suas sendas e medita em suas justificações, para não esquecer suas palavras, por meio das quais, de fato, ele se mostra instruído na lei e na doutrina de Deus; além disso, reza nesses termos: “Bendito és tu, Senhor, ensina-me as tuas justificações”. Esta prece nada pede senão o auxílio da graça, a fim de que aquilo que ele aprendeu com o discurso, diga-o igualmente pelas obras | |
VII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 17 Se guardastes na memória, caríssimos, os versí-culos anteriores eles deverão ajudar-nos no entendimento dos versículos seguintes. Efetivamente, são os membros de Cristo que falam como se fosse um só homem, e um só corpo pertencente a uma só Cabeça. De fato, dissera o salmista mais acima: “Como o jovem corrige seu caminho? Guardando as tuas palavras”. Eis que agora claramente, para consegui-lo, pede auxílio: “Retribui a teu servo. Viverei e guardarei as tuas palavras”. Se pediu fosse o bem retribuído com o bem, já aguardara as palavras de Deus. Pois, ele não disse: Retribui a teu servo, porque guardei tuas palavras, como se estivesse exigindo uma boa recompensa pelo bem da obediência, mas disse: “Retribui a teu servo. Viverei e guardarei as tuas palavras”. Que afirma senão que os mortos não podem guardá-las? Seriam os infiéis dos quais foi dito: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos” (Mt 8,22). Se por mortos entendemos os infiéis, vivos serão os fiéis, porque o justo vive da fé (cf Rm 1,17) e as palavras de Deus só podem ser guardadas através da fé, que opera pela caridade (cf Rm 4,5); aqui o salmista pede esta fé, ao dizer: “Retribui a teu servo. Viverei e guardarei as tuas palavras”. Visto que antes da fé o homem só merece mal por mal, e Deus, contudo, contribui por graça imerecida bem pelo mal, o salmista pede esta retribuição: “Retribui a teu servo. Viverei e guardarei as tuas palavras”. Pois, existem quatro espécies de retribuições: ou retribui-se o mal com o mal, como Deus há de retribuir com o fogo eterno aos ímpios; ou o bem com o bem, como Deus retribuirá aos justos com o reino eterno; ou com o bem pelo mal, como Cristo justifica o ímpio pela graça; ou com o mal pelo bem, como Judas e os judeus, por malícia, perseguiram a Cristo. Destas quatro espécies de retribuições as duas primeiras pertencem à justiça, de sorte que se retribui o mal com o mal, e o bem com o bem; a terceira pertence à misericórdia, a saber, que se retribua o mal com o bem; a quarta, Deus não a conhece, pois a ninguém retribui o bem com o mal. A que coloquei em terceio lugar, é necessária precedentemente. Se Deus não retribuísse o mal com o bem de forma alguma haveria a quem re-tribuísse o bem com o bem. | |
§ 2 | Considera Saulo, que depois se tornou Paulo. Diz ele: “Ele salvou-nos, não por causa dos atos justos que houvéssemos praticado, mas porque, por sua misericórdia, fomos lavados pelo poder regenerador do Espírito” (Tt 3,5). E ainda: “Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente; mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância, na incredulidade” (1 Tm 1,13). E em outro lugar: “Dou, porém, um conselho como homem que, pela misericórdia do Senhor é fiel” (1 Cor 7,25), isto é, que vive. Porque o justo vive da fé (cf Rm 1,17). Pois, estava morto anteriormente por causa de sua injustiça, antes de viver pela graça de Deus. Assim, de fato, confessa sua morte: “Mas, sobrevindo o preceito, o pecado reviveu e eu morri. Verificou-se assim que o preceito dado para a vida produziu a morte” (Rm 7,9-10). Deus, portanto, retribui-lhe o mal com o bem, isto é, a vida em vez da morte; é uma retribuição dessas que pede aqui o salmo: “Retribui a teu servo. Viverei e guardarei as tuas palavras”. Reviveu e guardou as palavras de Deus, e começou a pertencer àqueles que recebem outra retribuição, a que paga o bem com o bem; por isso declara: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2 Tm 4,7-8). Na verdade, “justo”, retribuindo o bem com o bem, porque primeiro foi misericordioso, retribuindo o mal com o bem. Embora até a justiça que retribui o bem com o bem, não seja desprovida de misericórdia; por isto está escrito: “Ele te coroa por sua comiseração e misericórdia” (Sl 102,4). O Apóstolo que disse: “combati o bom combate” quando teria vencido a não ser por dom daquele a respeito do qual ele assim se exprime: “Graças se rendam a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo”? (1 Cor 15,57). E aquele que terminou sua carreira, quando chegaria, a não ser com a ajuda daquele do qual disse: “Não depende, portanto, daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus que faz misericórdia”? (Rm 9,16). E aquele que guardou a fé, quando o faria, se, como ele mesmo disse, não tivesse obtido misericórdia para ser fiel? (cf 1Cor 7,25). | |
§ 3 | Nunca, portanto, se exalte a soberba humana. É a seus dons que Deus retribui com bons prêmios. Mas o salmista que já reza, dizendo: “Retribui a teu servo. Viverei”, se estivesse mesmo morto, não rezaria. Mas recebeu o início do bom desejo daquele a quem suplica a vida da obediência. Pois, tinha alguma fé aquele que pedia: Senhor, “aumenta-nos a fé” (Lc 17,5). Outro, de fato, confessava sua incredulidade, embora tivesse fé, pois quando interrogado se acreditava, disse: “Eu creio, Senhor. Ajuda a minha incredulidade” (Mc 9,24). Já começava a viver e pede vida; acreditando, suplica obediência. Não pede um prêmio por tê-la praticado, e sim auxílio para conservá-la. Com efeito, quem se renova de dia em dia, com o crescimento da vida revive diariamente (2 Cor 4,16). | |
§ 4 | 18.19 Ciente de que as palavras de Deus não podem ser observadas pela obediência, se não forem vistas pela inteligência, acrescenta também isso em sua oração: “Desvenda os meus olhos para contemplar as maravilhas de tua lei”. Abrange ainda o acréscimo: “Sou peregrino na terra”, ou, conforme outros códices: “Sou morador na terra, não me ocultes os teus preceitos”. Dissera o salmista supra: “Desvenda os meus olhos” e depois o mesmo: “Não me ocultes”. A expressão: “as maravilhas da tua lei” é repetida sob outra forma: “os teus preceitos”. Nenhum dos mandamentos de Deus é tão admirável quanto o seguinte: “Amai os vossos inimigos” (Mt 5,44), isto é, retribuí o mal com o bem. Mas não convém abreviar o sermão sobre esta moradia ou peregrinação; não trataremos deste assunto neste sermão, mas aguardemos outra ocasião para o fazermos, com o auxílio de Deus | |
VIII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 19 Devo atender à expectativa de V. Caridade sobre os versículos seguintes do maior dos salmos com este sermão, partindo do versículo que assim reza: “Sou peregrino na terra, não me ocultes os teus preceitos”, ou conforme têm alguns códices: “Sou inquilino na terra”. Enquanto o texto grego traz pároikos alguns dos nossos traduziram por “inquilino”, outros por “morador”, alguns por “peregrino”. Os inquilinos, que não têm casa própria, habitam uma casa alheia; moradores ou peregrinos são os estrangeiros. Daí se origina uma importante questão a respeito da alma. Pois, nem mesmo quanto ao corpo parece que se possa dizer: “morador”, “ou peregrino”, “ou inquilino sou na terra”, porque o corpo tira origem da terra. Mas acerca desta questão tão profunda nada ouso definir. Se por causa da alma se poderia afirmar com razão (de forma alguma se pense que ela provém da terra): “Sou inquilino”, ou “morador”, ou “peregrino na terra”; ou, seria segundo o homem todo, porque outrora foi cidadão do paraíso, onde na verdade não estava quem dizia estas palavras; ou então, o que está mais livre de qualquer controvérsia, não é todo homem que pode assim falar, mas só aquele ao qual é prometida a pátria eterna nos céus — sei apenas que é uma tentação a vida humana sobre a terra (cf Jó 7,1), e um pesado jugo sobre os filhos de Adão (cf Eclo 40,1). Na verdade, agrada-me mais comentar de acordo com este último modo de entender, dizendo que nós na terra somos inquilinos ou moradores, porque descobrimos a pátria do alto, de onde recebemos um penhor e de onde jamais sairemos se lá chegarmos. Pois, o salmista em outro salmo disse: “Sou forasteiro e peregrino, como todos os meus pais” (Sl 38,13) e não: como todos os homens. Mas ao mencionar: “Como todos os meus pais”, quer aludir sem dúvida aos justos que o precederam no tempo, e suspiraram nesta peregrinação com piedosos gemidos pela pátria do alto. A respeito deles acha-se escrito na epístola aos Hebreus: “Na fé todos estes morreram, sem ter obtido a realização da promessa, depois de tê-la visto e saudado de longe, e depois de se reconhecerem estrangeiros e peregrinos nesta terra. Pois aqueles que assim falam demonstram claramente que estão à procura de uma pátria. E se lembrassem a que deixaram, teriam tempo de voltar para lá. Eles aspiram, com efeito, a uma pátria melhor, isto é, a uma pátria celestial. É por isso que Deus não se envergonha de ser chamado o seu Deus. Pois, de fato, preparou-lhes uma cidade” (Hb 11,13-16). E o que se lê: “Enquanto habitamos neste corpo, esta-mos longe do Senhor”, pode-se entender como relativo aos fiéis, não a todos: “Nem todos têm fé” (2 Ts 3,2). E vemos o que o Apóstolo acrescenta a essas palavras. Tendo dito: “Enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor, pois caminhamos, disse ele, pela fé e não pela visão” (2 Cor 5,6-7), para que compreendêssemos que estão nesta peregrinação os que andam pela fé. Quanto aos infiéis, que Deus não conheceu de antemão, nem predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho (Rm 8,29), não podem dizer com verdade que são peregrinos na terra, pois estão lá onde nasceram segundo a carne. Eles não têm em outra parte sua cidade. Conseqüêntemente não são estrangeiros na terra, mas naturais da terra. Daí provém o que a Escritura afirma acerca de alguns: A sua casa se inclina para a morte, e seus trilhos para os infernos com os naturais da terra (cf Pr 2,18). São, porém, também eles peregrinos e inquilinos, não nesta terra, mas para o povo de Deus, diante do qual são estrangeiros. Por isso, diz o Apóstolo aos fiéis, que começam a possuir a cidade santa a qual não pertence a este mundo: “Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2,19). Por conseguinte, são cidadãos terrenos os que são peregrinos junto do povo de Deus. Quanto aos cidadãos do povo de Deus, são peregrinos na terra, porque o mesmo povo totalmente, enquanto está no corpo, está longe do Senhor. Diga, portanto: “Sou peregrino na terra, não me ocultes os teus preceitos”. | |
§ 2 | Mas, enfim, de quem Deus esconde os seus mandamentos? Não quer Deus que sejam anunciados em toda parte? Seria desejável que para muitos fossem tão estimados quanto são claros. Ora, que há de mais claro do que: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o entendimento”. E: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo? Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22,37.40). E quem desconhece estes mandamentos? Na verdade, tanto a todos os fiéis como a muitos infiéis são notórios. Por que, então, pede o fiel que Deus não lhe oculte o que nota que nem ao infiel é escondido? Ou seria porque é difícil conhecer a Deus, e conseqüêntemente é difícil de entender o “Amarás ao Senhor teu Deus”, visto que se pode amar uma coisa por outra? Aparentemente é mais fácil conhecer o próximo. De fato, todo homem é próximo dos outros homens; não se cogita de distância dentro do gênero humano em si, porque a natureza é comum. Embora nem soubesse quem é o próximo aquele que perguntara ao Senhor: “E quem é o meu próximo”? (Lc 10,29). Foi-lhe proposta a parábola do homem que descia de Jerusalém a Jericó e caiu em poder dos ladrões. Aquele que interrogara sentenciou que seu próximo foi apenas aquele que usou de misericórdia. Evidencia-se que, no exercício da misericórdia, para quem ama o próximo ninguém é estranho. Mas, muitos não conhecem a si mesmos. Efetivamente, nem todos são capazes do conhecimento próprio, conforme compete ao homem se conhe-cer. Como, então, há de amar o próximo como a si mesmo quem não se conhece? Não foi em vão que o filho mais jovem que partiu para uma região longíqua, onde gastou todos os seus haveres numa vida devassa, a fim de poder dizer: “Vou-me embora, procurar o meu pai”, primeiro caiu em si (Lc 15,13-18); fora para tão longe que abandonara até a si mesmo. Não voltaria a si, se totalmente se desconhecesse; nem diria: “Vou- me embora, procurar o meu pai”, se ignorasse completamente a Deus. Por conseguinte, estas coisas são parcialmente conhecidas; a fim de se tornarem cada vez mais conhecidas, não é sem razão que se busca conhecê-las. Conseqüentemente, para amarmos a Deus, ele há de ser conhecido; e a fim de que o homem saiba amar o próximo como a si mesmo, primeiro deve, amando a Deus, amar-se a si mesmo. Como o fará, se não conhece a Deus, se des-conhece a si mesmo? Não é sem motivo, portanto, que o salmista diz a Deus: “Sou peregrino na terra; não me ocultes os teus preceitos”. É justo que estejam escondidos para aqueles que não são peregrinos na terra. Mesmo que ouçam os mandamentos, não os apreciam, porque só pensam no que é terreno. Mas os que têm a cidadania nos céus (cf Fl 3,19.20), enquanto vivem na terra, de fato estão em peregrinação. Peçam, portanto, que o Senhor não lhes oculte os seus mandamentos, que os liberte desta peregrinação, e que amem a Deus, com o qual estarão eternamente. E amem o próximo, para que chegue lá onde eles mesmos estarão. | |
§ 3 | 20 Que há de amar quem ama, se não amar o próprio amor? Por conseguinte, este peregrino na terra, tendo suplicado que Deus não lhe ocultasse os mandamentos, que ordenam em primeiro lugar, ou apenas, o amor, proclama querer amar esta caridade, nos seguintes termos: “A minha alma cobiçou desejar em todo tempo as tuas justificações”. Essa concupiscência não é condenável; é louvável. Não foi a respeito dela que foi preceituado: “Não cobiçarás” (Ex 20,17; Rm 7,7), mas daquelas aspirações da carne contra o espírito (cf Gl 5,17). Desta boa concupiscência, que leva o espírito a ter aspirações contrárias à carne, fala a Escritura; procura onde a encontrarás: A concupiscência da sabedoria conduz ao reino (cf Sb 6,21). Existem muitos outros testemunhos sobre a boa concupiscência. É importante saber o objeto da concupiscência, que não deve ser omitido quando se menciona a boa concupiscência; se este não é declarado, mas o termo vem só, entende-se que está usado no mau sentido. No trecho que citei: A concupiscência da sabedoria conduz ao reino, de forma alguma, sem o acréscimo: da sabedoria, se teria dito: A concupiscência conduz ao reino. Quanto à afirmação do Apóstolo: “Eu não teria conhecido a concupiscência, se a lei não tivesse dito: Não cobiçarás” (Rm 7,7), ele não acrescentou que se sentiria concupiscência, ou o que é que não se deve cobiçar. Ao se exprimir desta maneira, evidencia-se que se trata da má concupiscência. Que é, então, que cobiça a alma do salmista? “Desejar as tuas justificações, em todo o tempo”. Creio que ainda não as desejava, quando cobiçava desejar. Efetivamente, justificações são os atos justos, isto é, as obras de justiça. Se mesmo quem já as deseja, ainda não as possui, como não estaria longe delas quem ainda cobiçava desejá-las? E como não estariam ainda mais longe os que nem isso ainda desejavam? | |
§ 4 | É de admirar como se há de cobiçar o desejo, nem que ele não exista em nós se a concupiscência em nós já se encontra. Não se trata de um belo objeto como o ouro, ou de um corpo formoso que alguém cobice sem possuir, porque está do lado de fora, e não dentro do homem. Quem não sabe que a concupiscência está no homem, que dentro do homem se encontra o desejo? Por que então cobiça tê-lo, como se fosse trazido do lado de fora? Ou como poderia sua concupiscência existir sem ele, se ele próprio dela não se distingue? Pois, desejar, sem dúvida, é cobiçar. Que doença é esta, tão estranha e inexplicável? E no entanto, assim é. Igualmente o doente que está enfastiado e quer se livrar deste mal, ambiciona desejar alimento, quando não quer ter fastio; mas este fastio é doença corporal. Quanto à concupiscência que o leva a desejar alimento, para ficar livre do fastio, encontra-se no ânimo, não no corpo. Quem a possui não é o paladar, restringido pelo fastio, mas a intenção de recuperar a saúde, com a qual se provê à eliminação do fastio. Por isso, não é extraordinário que a alma deseje para que o corpo apeteça, quando a alma está desejando sem que o corpo a acompanhe. Sendo ambos dependentes da alma, e ambos constituam concupiscência, por que cobiço desejar as justificações de Deus? Como numa só e mesma alma tenho a cobiça deste desejo, e não tenho o desejo? Ou seriam, duas coisas, não uma só? Por que cobiço desejar as justificações, e não as próprias justificações mais do que o desejo delas? Ou de que maneira posso cobiçar o desejo das justificações e não cobiçar as próprias justificações? Se cobiço o desejo delas, é porque desejo tê-las. Se assim é, na verdade já as desejo. Que necessidade há de cobiçar o desejo delas, quando já as tenho e percebo que as tenho? Pois não poderia cobiçar o desejo da justiça senão desejando a justiça. Ou seria o que afirmei mais acima que importa amar o próprio amor que nos leva a amar o que convém, como se deve odiar o amor com que se ama o que não convém? De fato, temos ódio a nossa concupiscência, pela qual a carne tem aspirações contrárias ao espírito; e que concupiscência é esta senão a de má espécie? E amamos nossa concupiscência que faz com que o espírito tenha aspirações contrárias à carne (cf Gl 5,17); e que concupiscência é esta senão caridade genuína? Ao se dizer: Deve ser amada, que se afirma senão: Deve ser cobiçada? Por conseguinte, como as justificações de Deus são cobiçadas com razão, é correta a concupiscência que leva a cobiçar as justificações de Deus. De outra maneira se pode formular: Se as justificações de Deus são retamente amadas, retamente se ama o amor às justificações de Deus. Seria uma coisa cobiçar e outra desejar? Não assevero que a concupiscência não seja desejo, mas que nem toda concupiscência é desejo. Cobiça-se mesmo o que se tem e o que não se possui; pois cobiçando, o homem goza daquilo que possui; desejando, porém, deseja na carência destes bens. Que é, então, o desejo, senão a concupiscência de um bem ausente? Mas como podem estar ausentes as justificações de Deus, a não ser quando desconhecidas? Ou quando conhecidas, mas não praticadas, devem ser consideradas ausentes? Pois, que são as justificações a não ser obras justas, e não somente palavras? Assim, podem não ser desejadas devido à fraqueza da alma; e pela razão, onde se percebe como são úteis e salutares, é possível cobiçar o desejo delas. Freqüentemente vemos o que devemos fazer e não o fazemos, porque não nos agrada a ação e desejamos o que deleita. O intelecto voa na frente, enquanto o afeto humano que é fraco segue-o lentamente, e por vezes, nem segue. Por conseguinte, o salmista cobiçava desejar o que viu ser bom, desejando comprazer-se naquilo cuja motivação podia ver. | |
§ 5 | O salmo não declara: Cobiço, mas: “A minha alma cobiçou desejar em todo tempo as tuas justificações”. Talvez este peregrino na terra era tal que já alcançara o que cobiçara, e já desejava as coisas cuja cobiça manifesta ter tido outrora. Se desejava, por que não o possuía? Só impede a posse das justificações de Deus a falta de desejo delas, quando por elas não arde a caridade, embora brilhe a sua glória. Ou as possuía e as praticava? Pois, pouco mais abaixo diz: “Teu servo, porém, se exercitava em tuas justificações”. Mas, ele demonstra por que degraus se sobe até elas. Primeiro, é necessário ver que são úteis e honestas; em seguida, que se ambicione o desejo delas; por fim, com o aumento da luz e da saúde, seja-nos um deleite praticá-las, quando antes somente seu conhecimento nos deleitava. Os versículos seguintes, uma vez que este sermão já está prolixo, serão explicados melhor em outro sermão, com o auxílio do Senhor | |
IX SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 21 Os versículos deste salmo que em seguida serão comentados nos advertem sobre a causa de nossa miséria. De fato, tendo dito: “A minha alma cobiçou desejar as tuas justificações em todo tempo”, quer dizer, na prosperidade e na adversidade, porque a justiça deve deleitar mesmo entre trabalhos e dores, nem deve ser amada de tal modo na tranqüilidade que seja abandonada nos tempos conturbados, mas há de ser abraçada em todo tempo, imediatamente adicionou as palavras: “Repreendeste os soberbos; malditos os que se apartam de teus preceitos”. Pois, os soberbos se apartam dos mandamentos de Deus. Uma coisa é, efetivamente, não cumprir os mandamentos por fraqueza ou ignorância; outra, apartar-se deles por soberba, como fizeram os que nos geraram em condição mortal no meio destes males. Pois, deleitou-os a palavra: “Vós sereis como deuses” (Gn 3,5), e assim se apartaram por esta soberba do mandamento de Deus, que eles estavam cientes de lhes ter sido imposto, e que eles podiam cumprir facilmente, sem que fraqueza alguma os dissuadisse, impedisse, retardasse. E eis que toda esta dura e infeliz tribulação que atinge os mortais, de certa ma-neira hereditária, constitui uma censura aos orgulhosos. Pois, quando Deus disse: “Adão, onde estás”? (Gn 3,9), não ignorava onde ele estava, mas repreendia o soberbo. Não desejava saber onde estava então, isto é, a que estado miserável fora reduzido, mas com a pergunta censurava, admoestava. Vê, porém, que o salmista, tendo dito: “Repreendeste os soberbos” não declarou: Malditos os que se apartaram de teus preceitos, como se somente se lembrasse do pecado dos primeiros pais, mas afirma: “Malditos os que se apartam”. Era necessário, de fato, que todos ficassem atemorizados diante daquele exemplo e não se apartassem dos preceitos divinos e que amando a justiça em todo tempo, recebessem em troca do labor ainda neste mundo o que perderam no paraíso por causa do prazer. | |
§ 2 | 22 Mas, visto que os soberbos não abaixam a cabeça nem diante de tamanha repreensão e derrubados pelo suplício do trabalho e da morte, exaltam-se cheios de soberba, imitando o orgulho dos que caem e zombando da humildade dos que se levantam, o corpo de Cristo reza por eles, nesses termos: “Afasta de mim o opróbrio e o des-prezo, porque procurei cuidadosamente os teus testemunhos”. À palavra: testemunhos corresponde em grego o termo: martyria, que já usamos como se fosse expressão latina. Efetivamente, não são denominados testemunhas, conforme poderíamos falar em latim, mas recebem o nome grego de mártires aqueles que por causa do testemunho prestado a Cristo foram humilhados por vários padecimentos e combateram pela verdade até a morte. Como tendes no ouvido esta expressão de modo habitual e mais agradável, consideremos a frase assim formulada: “Afasta de mim o opróbrio e o desprezo, porque procurei cuidadosamente os teus martírios”. Ao falar desta maneira, acaso o corpo de Cristo considera castigo receber opróbrios e desprezo da parte dos ímpios e soberbos, se com isto ele antes alcança a coroa? Por que, então, suplica que lhe sejam retirados, como algo de pesado e intolerável, a não ser, como disse, que reza por seus inimigos, vendo ser-lhes prejudicial lançar como opróbrio aos cristãos o santo nome de Cristo? E desprezar também a cruz, de que zombam os judeus, e os remédios da humildade cristã, única a curar o tumor que nos fez cair e mais inchar nesta prostração, pela persistência e aumento desta mesma soberba? Diga, por conseguinte, todo o corpo de Cristo, que já aprendeu a amar os seus inimigos (cf Mt 5,44), diga a seu Deus e Senhor: “Afasta de mim o opróbrio e o desprezo, porque procurei cuidadosamente os teus martírios”, isto é, afasta de mim o opróbrio que ouço, o desprezo que me menoscaba, porque procurei cuidadosamente os teus mar-tírios. Quanto a meus inimigos, que me ordenas amar, que cada vez mais morrem e perecem, ao desprezarem teus martírios e me incriminarem por causa deles, de fato hão de reviver e de se recuperar, se venerarem teus martírios em mim. Assim, de fato, aconteceu; nós o vemos. Eis que o martírio de Cristo, junto dos homens e neste mundo, não somente não constitui opróbrio, mas até se torna grande ornamento. Eis que não apenas na presença do Senhor, mas ainda diante dos homens já é preciosa a morte de seus santos (cf Sl 115,15); eis que os seus mártires não apenas não são desprezados, mas também recebem grandes honras. Eis que o filho mais jovem, que em prol dos porcos que guardava (cf Lc 15,15), isto é, em prol dos imundos demônios que ele cultuava, perseguia pequena parte do que lhe pertencia antes num pequeno número de cristãos e agora elogia intensamente os mártires, antes injuriados provindos de tantos e tão importantes povos dos gentios, e exalta com máximos louvores aqueles que ele despreza. Ele estava morto e reviveu, havia perecido e foi recuperado. O corpo de Cristo, diante de tão grande lucro devido à correção, conversão e redenção de seus inimigos, pede a Deus: “Afasta de mim o opróbrio e o desprezo”. E como se fosse interrogado de que opróbrio, de que desprezo se trata, acrescenta: “Porque procurei cuidadosamente os teus martírios”. | |
§ 3 | 23.24 Onde se acha agora aquele opróbrio? Onde está aquele desprezo? Foram embora, passaram; e como foram encontrados os que haviam perecido, também eles pereceram. Mas quando a Igreja fazia tais preces, ela os suportava. Diz o salmo: “Pois os príncipes se assentaram e falavam contra mim”. Era pesada a perseguição, porque eram os príncipes que, sentados, isto é, com a autoridade dos tribunais, a desferiam. Isto é atinente à própria Cabeça. Encontram-se os príncipes dos judeus sentados, procurando o modo de condenarem a Cristo (cf Mt 26,3). Pertence também a seu corpo, isto é, à Igreja. Encontram-se reis da terra a excogitarem e darem ordens, a fim de exterminarem os cristãos de todas as partes. “Pois os príncipes se assentaram e falavam contra mim. Teu servo, porém, se exercitava em tuas justificações”. Se desejas saber que espécie de exercício é este, pondera o que segue: “Porque teus testemunhos são minha meditação e as tuas justificações o meu desígnio”. Relembra-te de que mais acima mencionei que testemunhos são idênticos a martírios. Rememora que entre as justificações do Senhor nenhuma é mais difícil e admirável do que amar os inimigos (cf Mt 5,44). Assim, portanto, era exercitado o corpo de Cristo. Meditava os padecimentos de Cristo, e amava aqueles que o injuriavam e desprezavam e dos quais sofria perseguições por causa do próprio martírio. O salmista, efetivamente, não rezava por si, conforme relembramos, mas antes por eles, dizendo: “Afasta de mim o opróbrio e o desprezo. Pois, os príncipes se assentavam e falavam contra mim. Teu servo, porém, se exercitava em tuas justificações”. De que modo? “Porque teus testemunhos são minha meditação e as tuas justificações, o meu desígnio”. Desígnio contra desígnio. Desígnio dos príncipes assentados foi perder os mártires que fossem encontrados; desígnio dos mártires que sofriam foi de encontrar os inimigos perdidos. Pagavam-lhes o mal com o bem; enquanto eles pagavam o bem com o mal. Que há de espantoso que eles matando pereceram, enquanto os mártires morrendo venceram? Que há, digo, de admirar se os mártires pacientemente sofreram a morte temporal da parte dos gentios cruéis, e esses gentios, devido à oração dos mártires, puderam obter a vida eterna, se o corpo de Cristo assim se exercita, de tal modo que sofra o martírio e implore bens para os malvados perseguidores dos mártires? | |
X SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 25 Continua este salmo, o maior de todos, os versículos seguintes que devemos considerar e comentar, conforme nos conceder o Senhor: “Prostrada no pavimento está a minha alma. Restitui-me a vida segundo a tua palavra”. Que significa: “Prostrada no pavimento está minha alma?” Pois, ao aditar: “Restitui-me a vida segundo a tua palavra”, na verdade colocou primeiro a causa do pedido de restituir-lhe a vida: “Prostrada está no pavimento a minha alma”. Conseqüentemente, se pede seja-lhe restituída a vida porque sua alma está prostrada no pavimento, seria de admirar que queira dar a entender assim algo de bom. A frase inteira parece significar: Estou morto, vivifica-me. Que seria, então, o pavimento? Se quisermos tomar o mundo inteiro como se fosse determinada casa bem grande, o céu seria o teto e a terra, portanto, o pavimento. O salmista, portanto, quer se libertar das coisas terrenas e repetir com o Apóstolo: “A nossa cidade está nos céus” (Fl 3,20). Assim, aderir às coisas da terra é a morte da alma. Pede-se a vida contrária a este mal, no pedido: “Restitui-me a vida”. | |
§ 2 | Mas vejamos se convêm ao salmista estas palavras. Mais acima proferira tais palavras que parecia aderir mais a Deus do que ao pavimento, de tal sorte que sua cidade não estaria nas coisas terrenas, mas nas celestes. Pois, como se entenderia que aderiu às coisas terrenas aquele que afirma: “Teu servo, porém, se exercitava em tuas jutificações. Porque teus testemunhos são minha meditação e as tuas justificações, o meu desígnio?” São estas as palavras precedentes, e as seguintes são: “Prostrada no pavimento está minha alma”. Ou devemos compreender por que, quanto alguém progrida nas justificações do Senhor, tem, de fato, o afeto da carne mortal pelos bens terrenos, que fazem da vida humana uma tentação na terra (cf Jó 7,1), e enquanto com perseverança progride, saindo desta morte, diariamente revive, pela ação vivificadora daquele, por cuja graça nosso homem interior se renova de dia em dia? Pois, também quando o Apóstolo dizia: “Enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor” (2 Cor 5,6), e desejava partir para estar com Cristo, sua alma estava prostrada no pavimento. Deriva daí que não é absurdo entender por pavimento o próprio corpo, que se origina da terra. Uma vez que ele ainda é corruptível e pesa sobre a alma (cf Sb 9,15) é com razão que se geme quando se está nele, dizendo a Deus: “Prostrada no pavimento está minha alma. Restitui-me a vida segundo a tua palavra”. Não quer ele dizer que sem o corpo estaremos para sempre com o Senhor (cf 1Ts 4,17); mas então, como os corpos não serão mais corruptíveis, nem pesarão sobre as almas, se considerarmos bem, nós não havemos de aderir a eles, antes eles é que vão aderir a nós, nós, porém, a Deus. Daí derivam as palavras de outro salmo: “Para mim a felicidade é aproximar-me de Deus” (Sl 72,28). Assim, os corpos vivem por nós, a nós aderindo; nós, porém, vivemos de Deus, porque para nós é felicidade aderir a Deus. Esta união, da qual foi dito: “Prostrada no pavimento está minha alma” não é relativa à união da carne e da alma, apesar de terem alguns assim entendido; a meu ver, representa antes o afeto carnal da alma, pelo qual as aspirações da carne são contra o espírito (cf Gl 5,17). Se for corretamente entendido, efetivamente aquele que diz: “Prostrada no pavimento está minha alma. Restitui-me a vida segundo a tua palavra” não suplica ser libertado deste corpo de morte, pela morte corporal. Isto se realizará no último dia desta vida, que devido a sua brevidade não pode estar muito longe, e um dia virá. Mas, ele pede que diminua cada vez mais a concupiscência pela qual tem aspirações contrárias ao espírito e que sempre aumente a concupiscência pela qual tenha aspirações contrárias à carne, até que ela desapareça de nós, consumida pelo Espírito Santo, que nos foi dado. | |
§ 3 | 26 O salmista se expressou muito bem, pois não disse: “Restitui-me a vida” segundo seus méritos, e sim: “segundo a tua palavra”. Que é isto senão segundo a tua promessa? O salmista quer ser filho da promessa, não filho do orgulho, de tal forma que segundo a graça seja firme a promessa a toda descendência. Pois, tal é a promessa: “De Isaac sairá a descendência que terá teu nome, isto é, não são os filhos da carne que são os filhos de Deus, mas são os filhos da promessa que são tidos como descendentes” (Rm 9,7-8; Gn 21,12). Pois, confessa o que ele era por si mesmo, no versículo seguinte: “Eu te expus os meus caminhos e me escutaste”. Como efeito, trazem alguns códices: “Teus caminhos”; mas a maioria, e especialmente os gregos têm: “meus caminhos”, isto é, maus caminhos. A meu ver, ele diz: Confessei meus pecados e me escutaste, a saber, para perdoá-los. “Ensina-me as tuas justificações”. Confessei meus caminhos. Tu os destruíste. Ensina-me os teus. Ensina de tal modo que os ponha em prática e não apenas para saber o que devo fazer. Fora dito do Senhor que “não conhecera o pecado” (2 Cor 5,21) e subentende-se que não cometera pecado; assim também deve-se dizer com verdade que conhece a justiça quem a pratica. Esta oração é própria de alguém que está em progresso. Pois, de fato, se não a praticasse absolutamente, não diria as palavras de um versículo anterior: “Teu servo, porém, se exercitava em tuas justificações”. Não almeja aprender do Senhor as justificações em que se exercitava, mas quer alcançar avançando destas para outras, crescendo de certa maneira. | |
§ 4 | 27.28 Enfim, acrescenta: “Ensina-me a senda de tuas justificações”. Alguns códices trazem: “Instrui-me”, e mais expressamente do grego: “Faze-me entender. E exercitar-me-ei em tuas maravilhas”. Denomina as justificações mais amplas, que ele ambiciona aprender em seu progresso, maravilhas de Deus. Algumas das justificações de Deus são, efetivamente, tão admiráveis que, por fraqueza humana, aqueles que não as experimentaram acreditam não ser possível alcançá-las. Este o motivo por que o salmista se empenha, e de certo modo cansado pela dificuldade de obtê-las, acrescenta: “A minha alma dormitou de tédio. Conforta-me com tuas palavras”. Que significa: “dormitou”, senão uma diminuição da esperança, que a fazia acreditar poder apreendê-las? Mas, “conforta-me com tuas palavras”, para não acontecer que dormitando caia da altura que sinto ter alcançado. Conforta-me com tuas palavras que já possuo, que já pratico, a fim de poder a partir destas, progredindo, atingir outras. | |
§ 5 | 29 Qual o obstáculo que impede se ande no caminho das justificações de Deus de tal forma que se possa facilmente chegar também àquelas maravilhas? Que julgamos ser senão o que pede seja removido nos versículos seguintes: “Aparta de mim o caminho da iniqüidade?”. Ora, a lei dos atos interveio para que avultassem as faltas” (Rm 5,20); então, prossegue o salmista: “E compadece-te de mim segundo a tua lei”. Que lei senão a lei da fé? Escuta o que diz o Apóstolo: “Onde está, então o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em força da lei da fé” (Rm 3,27). É nesta lei da fé que acreditamos e é ela que pedimos nos seja dada pela graça, a fim de fazermos o que não podemos cumprir por nós mesmos. Não aconteça que desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a nossa, não nos sujeitemos à justiça de Deus (cf Rm 10,3). Na lei, portanto, das obras encontra-se a justiça do Deus que ordena; na lei, contudo da fé, a misericórdia do Deus que socorre. | |
§ 6 | 30-32 Tendo dito: “E compadece-te de mim segundo a tua lei”, devido aos benefícios de Deus que já conseguiu, de certo modo, se assim se pode falar, o salmista designa os restantes ainda não obtidos, para impetrá-los. Pois, diz: “Escolhi o caminho da verdade. Não me esqueci de teus juízos. Aderi a teus testemunhos, Senhor, não permitas que seja eu confundido. Escolhi o caminho da verdade”, por onde hei de correr; “não me esqueci de teus juízos”, para correr. “Aderi a teus testemunhos”, ao correr; “Senhor, não permitas seja eu confundido”, prossiga por onde corro, alcance o ponto para onde tendo. Pois, “não depende daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus que faz misericórdia” (cf Rm 9,16). Enfim, prossegue: “Corri pelos caminhos de teus mandamentos, quando me dilataste o coração”. Não correria, se não me dilatasses o coração. Na verdade, este versículo expõe o que foi dito: “Escolhi o caminho da verdade. Não me esqueci de teus juízos. Aderi a teus testemunhos”. Esta corrida, de fato, corresponde ao caminho dos mandamentos de Deus. E como o salmista alega antes os benefícios de Deus do que seus méritos, se alguém lhe dissesse: Correste por este caminho, escolhendo os juízos de Deus, não te esquecendo deles, aderindo a seus testemunhos; acaso pudeste fazê-lo por ti mesmo? Ele responde: Não. E então? “Corri pelos caminhos de teus mandamentos, quando me dilataste o coração”. Não foi, portanto, por meu próprio arbítrio, como em nada necessitado de teu auxílio, mas “quando me dilataste o coração”. A dilatação do coração consiste no deleite da justiça. Esta é um dom de Deus, de tal forma que não nos sentimos angustiados pelo temor no cumprimento de seus preceitos, mas somos dilatados pelo amor e o deleite da justiça. O Senhor nos promete esta dilatação, dizendo: “Em meio a eles habitarei e caminharei” (2 Cor 6,16). Como é amplo o espaço onde Deus caminha! Nesta amplidão difunde-se a caridade em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cf Rm 5,5). Daí vem que se disse: Não derrames pela rua o teu manancial (Pr 5,16). Platea, rua, vem de palavra grega que significa amplidão (latitudo); em grego se diz platu, em latim, amplo, largo. A respeito dessas águas clama o Senhor: “Se alguém tem sede, venha a mim. Quem crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva”. O evangelista expõe o sentido dessas expressões: “Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem” (Jo 7,37-38). Muitas coisas ainda poderiam ser ditas desta dilatação do coração, mas a isto se opõe a extensão deste SERMÃO 💬 | |
XI SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 33 Prossegue este grande salmo com os versículos que nós vamos considerar e tratar, pela graça do Senhor: “Impõe-me por lei, Senhor, o caminho de tuas justificações e sempre o cumprirei”. Afirma o Apóstolo: “A lei não é destinada ao justo, mas aos iníquos e rebeldes”, etc. E conclui: “E para tudo o que se oponha à sã doutrina, segundo o evangelho de glória do Deus bendito, que me foi confiado” (1 Tm 1,9.11). Por acaso o salmista que disse: “Impõe-me por lei, Senhor”, seria do número daqueles aos quais a lei se destina, conforme a palavra de são Paulo? De forma nenhuma. Se fosse desses tais não teria dito mais acima: “Corri pelos caminhos de teus mandamentos quando me dilataste o coração”. Por que, então, pede que se lhe imponha uma lei, se esta não se destina ao justo? Ou seria que não é imposta do mesmo modo que ao povo contumaz? Para este foi imposta em tábuas de pedra, não em tábuas de carne, nos corações (cf Ex 31,18; 2Cor 3,3); segundo o Antigo Testamento do monte Sinai, que gera para a escravidão (Gl 4,24), e não segundo o Novo Testamento, do qual foi escrito pelo profeta Jeremias: “Eis que dias virão — oráculo do Senhor — em que selarei com a casa de Israel e a casa de Judá uma aliança nova. Não como a aliança que selei com seus pais, no dia em que os tomei pela mão para fazê-los sair da terra do Egito — minha aliança que eles mesmos romperam; e eu os abandonei, oráculo do Senhor. Porque esta é a aliança que selarei com a casa de Israel, depois desses dias, oráculo do Senhor. Eu porei minha lei nas suas mentes e a escreverei em seu coração” (Jr 31,31-33). É desta maneira que o salmista deseja seja-lhe imposta uma lei pelo Senhor; não como aos injustos e rebeldes, pertencentes ao Antigo Testamento, lei promulgada em tábuas de pedra; mas como aos santos filhos da Jerusalém livre, isto é, a Jerusalém do alto, filhos da promessa, filhos da herança eterna, lei que foi dada como se fosse escrita nas mentes pelo dedo de Deus, o Espírito Santo, e se inscreve nos corações. Que eles não a retenham na memória, negligenciando tê-la na vida, mas entendendo-a saibam, amando-a pratiquem, na amplidão do amor e não nas angústias do temor. Pois, quem cumpre as obras da lei pelo temor do castigo e não pelo amor da justiça, realmente a pratica contra a vontade. E quem a pratica coagido, se possível preferiria que não lhe fosse ordenada. Assim, não é amigo, mas inimigo da lei que quereria não existisse; não se purifica pelas obras, quem é impuro pela vontade. Ele não pode repetir o que o salmista declarou nos versículos anteriores: “Corri pelo caminho de teus mandamentos, quando me dilataste o coração”, porque essa dilatação representa a caridade, que, segundo o Apóstolo, é a plenitude da lei (cf Rm 13,10). | |
§ 2 | Ora por que motivo, então, o salmista suplica seja-lhe imposta uma lei? Não lhe seria efetivamente imposta se não tivesse corrido com dilatação do coração no caminho dos mandamentos de Deus? Mas estando a falar alguém que está em progresso e sabe que este é dom de Deus, não pede outra coisa ao suplicar-lhe seja imposta uma lei senão que ele avance cada vez mais submisso a ela. Se seguras um copo cheio de água, e começas a dar a quem tem sede, este bebendo haure e desejando pede. A lei imposta aos injustos e rebeldes (cf 1Tm 1,9), gravada em tábuas de pedra, fá-los réus de prevaricação e não filhos da promessa. Mas igualmente aquele que dela se lembra e não a ama, deste modo torna-se réu; pois esta recordação se torna para ele de certo modo uma lei escrita na pedra, não para adorná-lo, e sim oprimi-lo. É pesado ônus, não título de honra. O salmista deu a esta lei o nome de caminho dos mandamentos de Deus, que ele disse ter percorrido, quando seu coração se dilatou. Por conseguinte correu e corre, até alcançar a palma do chamado do alto, proferido por Deus. Enfim, tendo dito: “Impõe-me por lei, Senhor, o caminho de tuas justificações”, prosseguiu: “E sempre o procurarei”. Mas, quem procura o que já tem, a não ser que tenha praticando, e procure progredindo? | |
§ 3 | Que significa, porém: “sempre”? Será que a busca não terá fim, conforme a palavra: “Seu louvor estará sempre em minha boca” (Sl 33,2), porque o louvor será interminável e não deixaremos de louvar a Deus, ao chegarmos a seu reino eterno, pois lemos: “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos”? (Sl 83,5). Ou refere-se o salmista com o termo: “sempre” à duração da presente vida, uma vez que em toda ela avançamos e depois desta vida os que se aperfeiçoavam aqui, lá serão consumados? Conforme foi dito de certas mulheres: “sempre aprendendo”, mas no mau sentido porque em seguida acrescentou: “sem jamais poder atingir o conhecimento da verdade” (2 Tm 3,7). Quanto ao que avança para o que é melhor continuamente, chega ao fim que se esforça por alcançar, onde não avançará mais, porque permanece perfeito sem fim. Não foi deles que se disse: “sempre aprendendo”, como se depois da morte continuem a aprender doutrinas vãs e estéreis, pois a tais conhecimentos não sucedem outros estudos e sim os suplícios eternos. Aqui na terra, portanto, procura-se a lei de Deus, adiantando-se nela pelo conhecimento e amor; lá no céu, porém, a sua plenitude permanece para o gozo e não para a busca. Assim, naquela palavra: “Buscai sempre a sua face” (Sl 104,4), onde se há de procurar “sempre”, a não ser aqui? Pois, não haveremos de procurar a face de Deus lá onde o veremos face a face (1 Cor 13,12). Ou se é com razão que se diz que se procura o que se ama sem fastio, e cuida-se de não perder, sempre, de fato, sem fim, havemos de procurar a lei de Deus, isto é, a verdade de Deus. Com efeito, se diz neste mesmo salmo: “E tua lei é a verdade”. Procura-se agora para possuí-la; então se possuirá para não perdê-la, conforme foi dito sobre o Espírito de Deus que sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus (cf 1Cor 2,10). Não é, de fato, para que ele encontre aquilo que desconheça, mas porque nada resta, absolutamente que ele não saiba. | |
§ 4 | 34 O salmista, portanto, recomenda-nos especialmente a graça de Deus, quando pede ao Senhor lhe imponha uma lei, que ele verdadeiramente já conhecia segundo a letra. Ora, considerando que a letra mata, mas o espírito comunica a vida (cf 2Cor 3,6), suplica-lhe conceda fazer por meio do espírito o que conhecia pela letra, a fim de não acontecer que tendo conhecido o mandamento sem praticá-lo, incorra ainda no crime de prevaricação. Como ninguém pode compreender a lei, se o Senhor não lhe der entendimento, o salmista, desejando conhecer a lei como deve ser conhecida, isto é, entender o que ela quer dizer, o motivo por que foi imposta àqueles que não a haveriam de observar e qual a utilidade de ter “a lei intervindo para que avultassem as faltas” (Rm 5,20), por tudo isso, ele acrescenta: “Dá-me inteligência e perscrutarei a tua lei, e a guardarei de todo o coração”. Quando alguém, efetivamente, tiver perscrutado a lei e alcançado o ponto alto do qual toda ela depende, sem dúvida há de amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o entendimento, e ao próximo como a si mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas (cf Mt 22, 37.39.40). É isso que o salmista evidentemente promete no versículo: “E a guardarei de todo o coração”. | |
§ 5 | 35 Mas, não pode alcançar esta meta pelas próprias forças, sem o auxílio daquele que ordena, de sorte a fazer segundo o preceito. Diz o salmista: “Leva-me pela senda de teus preceitos, porque a escolhi”. Pouco adianta minha vontade, se não me conduzes ao fim que almejei. E certamente esta é a senda, este o caminho dos mandamentos de Deus, pelo qual ele já dissera ter corrido, quando seu coração se dilatou. Por isso a denomina senda, porque estreito é o caminho que conduz à vida (cf Mt 7,14); e sendo estreito, por ele não se corre se o coração não estiver dilatado. | |
§ 6 | 36 Mas, tendo em vista que ainda se aperfeiçoa, ainda corre, e por isso procura obter o auxílio divino para ser conduzido, por não depender tudo isso de quem quer, nem de quem corre, e sim de Deus que faz misericórdia (cf Rm 9,16), enfim, é Deus quem opera em nós o querer, (cf Fl 2,13), porque a vontade é preparada pelo Senhor, o salmista prossegue: “Inclina meu coração aos testemunhos teus e não à avareza”. Que significa ter o coração inclinado a alguma coisa, senão querê-la? Por conseguinte ele quis e reza para querer. Quis, pois disse: “Leva-me pela senda de teus preceitos, porque a escolhi”, e reza para a querer, ao proferir: “Inclina meu coração aos testemunhos teus e não à avareza”. Assim reza a fim de progredir nessa vontade. Quais são os testemunhos de Deus, se não forem aqueles que ele mesmo atesta? Pois chamam-se testemunhos as provas de alguma coisa. As justificações de Deus e seus mandamentos se provam pelos testemunhos de Deus. Quando Deus quer nos persuadir, persuade através de seus testemunhos. É a esses testemunhos que o salmista pede se incline seu coração e não à avareza. Por meio de seus testemunhos Deus faz com que o cultuemos gratuitamente; é isto que quer impedir a avareza, raiz de todos os males. Ele emprega aqui um termo grego que dá a entender a avareza em geral, que induz alguém a cobiçar mais do que o suficiente. pléon traduz-se ao latim por “mais”; écsis é o hábito que provém do verbo ter (habere). Por conseguinte pleonecsia significa ter mais. Alguns latinos verteram por “emolu-mento”, outros por “utilidade”; mas a melhor tradução é: “avareza”. Com efeito, diz o Apóstolo: “A raiz de todos os males é a avareza” (1 Tm 6,10). Mas no grego, de onde foi feita a tradução, não se lê no Apóstolo pleonecsia, conforme está nesta passagem do salmo, e sim philarairía palavra que significa amor do dinheiro. Efetivamente, deve-se entender que com este nome o Apóstolo designa o gênero pela espécie, isto é, pelo amor ao dinheiro avareza universal e geral, que é a raiz de todos os males. Efetivamente, os primeiros homens não teriam sido enganados pela serpente e não cairiam se não tivessem querido ter mais do que haviam recebido, e ser mais do que eram quando foram criados. A serpente lhes prometera: “Vós sereis como deuses” (Gn 3,5). Portanto, eles foram derrubados por esta pleonecsia. Querendo ter mais do que aquilo que haviam recebido, perderam até mesmo o que receberam. Um vestígio desta verdade que está difundida por toda parte e foi recolhida no direito forense encontra-se na disposição de que a causa se perde quando se pede demais, isto é, quem pedir mais do que lhe é devido, perde mesmo o que lhe cabe por direito. Cortamos toda avareza, se cultuarmos a Deus gratuitamente. O próprio inimigo provoca a este respeito Jó, o santo varão, na luta da tentação, ao dizer a Deus: “É em vão que Jó teme a Deus”? (Jó 1,9). Com efeito, o diabo pensava que este justo adorava a Deus, com coração inclinado à avareza, e que o servia tendo em vista os emolumentos ou a utilidade dos bens temporais com os quais o Senhor o enriquecera, como o mercenário serve por causa do salário; mas a provação demonstrou como cultuava gratuitamente a Deus. Se, portanto, não temos o coração com pendor para a avareza, adoramos a Deus somente por causa de Deus, de tal forma que o próprio culto nô-lo dá como recompensa. Amemo-lo em si mesmo, amemo-lo em nós, amemo-lo em nosso próximo que amamos como a nós mesmos, quer já o possua, quer a fim de que venha a possuí-lo. E como isso se consegue por um dom de Deus, é que se diz: “Inclina meu coração aos testemunhos teus e não à avareza”. Quanto aos versículos seguintes, ficam para ser tratados em outro SERMÃO 💬 | |
XII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 37 Prossegue o salmo que empreendemos comentar: “Desvia-me os olhos para que não vejam a vaidade. Vivifica-me em teu caminho”. A vaidade e a verdade se opõem entre si. A cobiça deste mundo é vaidade, enquanto Cristo, que liberta deste mundo, é a verdade. Ele é o caminho onde o salmista quer ser vivificado, porque Cristo é também a vida; de fato, ele mesmo declarou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Mas, que significa: “Desvia-me os olhos para que não vejam a vaidade?” Por acaso enquanto estamos neste mundo, podemos deixar de ver a vaidade? “De fato, a criação foi submetida à vaidade” (Rm 8,20). Entende-se que ela está no homem. E: “Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol”? (Eclo 1,2.3). Talvez esteja pedindo o salmista que sua vida não se desenrole debaixo do sol, onde tudo é vaidade, mas esteja naquele a quem pede que o vivifique? Ele, na verdade, “subiu, não apenas acima do sol, mas subiu acima de todos os céus, a fim de plenificar todas as coisas” (Ef 4,10). Vivem mais realmente nele do que debaixo do sol os que não escutam debalde a palavra do Apóstolo: “Procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra, pois mor-restes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,1). Assim, se nossa vida está onde se encontra a verdade, ela não está debaixo do sol, onde se acha a vaidade. Mas possuímos mais em esperança do que na realidade tão grande bem. E o bem-aventurado Apóstolo proferiu estas coisas de acordo com a nossa esperança; pois, depois da afirmação: “A criação foi submetida à vaidade”, aditou: “Não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu na esperança” (Rm 8,20). Por conseguinte, por enquanto estamos sujeitos à vaidade, na esperança de que havemos de aderir à contemplação da verdade. Com efeito, toda a criação espiritual, animal e corporal encontra-se no homem; ou antes, é o homem. Ela pecou espontaneamente, e se fez inimiga da verdade; mas para ser punida como merecia, foi submetida involuntariamente à vaidade. Enfim, diz ele pouco depois: “E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do espírito”, isto é, que ainda não por todo o nosso ser, mas pela parte que nos faz melhores que os animais, nos submetemos a Deus, não à vaidade, pelas primícias do espírito; “gememos interiormente, suspirando pela redenção de nosso corpo. Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,23-25). Enquanto, portanto, segundo a carne estamos na terra, esperando ainda pela paciência da esperança a adoção e a redenção, estamos sujeitos à vaidade, pela parte de nós mesmos que está debaixo do sol. Por conseguinte, enquanto assim somos, como podemos deixar de ver a vaidade, à qual também somos sujeitos em esperança? Por que motivo diz então o salmista: “Desvia-me os olhos para que não vejam a vaidade?” Será que assim suplica tendo em mira não esta vida que decorre na esperança, e sim aquela onde tal objetivo se pode realizar, de “ser liberta da escravidão da corrupção” em espírito, alma e corpo, “para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus”, onde já não verá a vaidade? | |
§ 2 | Assim podem ser interpretadas estas palavras, segundo a regra da fé, mas existe outro sentido que, confesso, agrada-me mais. O Senhor diz no evangelho: “Se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas, se o teu olho estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas” (Mt 6,22.23). Conseqüentemente, ao praticarmos algum bem, é da maior importância o fim que temos em vista. Com efeito, é dever nosso pensar que não na ta-refa, mas na finalidade, de tal modo que ponderemos não tanto se é bom o que fazemos, mas principalmente se o fazemos por um bem. O salmista suplica que, para não verem a vaidade, sejam desviados os olhos que nos fazem contemplar por que razão fazemos o que fazemos; isto é, não vise à vaidade ao praticar algum bem. Destaca-se entre os motivos inspirados nesta vaidade o amor do louvor humano. Por causa dele, fizeram grandes obras os que o século denomina grandes, e que são célebres nas cidades dos gentios. Eles procuram obter glória junto dos homens e não diante de Deus e para alcançá-la vivem aparentemente de maneira prudente, forte, temperante, justa; se a obtêm, em sua vaidade receberam vã recompensa. No intuito de afastar os olhos dos seus desta vaidade, exorta o Senhor: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles. Se o fizerdes, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus” (Mt 6,1). Em seguida, ao tratar de certas partes da própria justiça, ordenando acerca das esmolas, da oração, do jejum, sempre admoestou a não se fazer coisa alguma por causa da glória humana, e declarou que todos os que agissem assim já teriam recebido sua recompensa, a saber, a recompensa temporal visada pelos que contemplam a vai-dade ao agirem e não a recompensa eterna reservada junto do Pai para os santos. O louvor humano, em si, não é culpável (pois que há de mais desejável do que agradar aos homens aquilo que eles devem imitar?), mas agir bem tendo como finalidade o louvor significa contemplar a vaidade em suas obras. Efetivamente, por maior que seja o louvor proveniente dos homens ao justo, ele não deve ver nisto a finalidade do bem que pratica, mas até o louvor deve ser referido ao louvor de Deus, fim visado pelos que são efetivamente bons, ao fazerem o bem; pois não são bons por si mesmos, mas isto provém de Deus. Enfim, no mesmo sermão, o Senhor já lhes dissera: “Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus (Mt 5,16). É o fim que o Senhor indica, a glória de Deus, à qual devemos visar quando fazemos algum bem, se nossos olhos se desviam da vaidade. Não constituamos o fim de nossa boa obra nos louvores dos homens, mas corrijamos os próprios louvores humanos, referindo-os ao louvor de Deus, por quem nos é concedido tudo o que em nós é louvado sem erro de quem louva. Na verdade, se é vão fazer o bem em vista do louvor dos homens, muito pior não será fazê-lo para adquirir, aumentar ou guardar dinheiro ou por qualquer outra vantagem temporal, que nos atinge externamente? “Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol”? (Ecl 1,2.3). Enfim, nem mesmo pela incolumi-dade temporal devemos fazer nossas boas obras, mas antes por nossa salvação eterna, onde havemos de gozar de um bem imutável, que nos virá da parte de Deus, ou antes, que é o próprio Deus. Pois, se os santos de Deus fizessem boas obras por causa da salvação temporal, nunca os mártires de Cristo teriam completado a boa obra da confissão com a perda desta mesma salvação. Mas receberam auxílio na tribulação, porque nada vale o socorro humano (Sl 59,13); e não desejaram o dia fatal (cf Jr 17,16), porque o homem assemelha-se à vaidade, e seus dias passam como sombra (cf Sl 143,4). | |
§ 3 | Se pedimos a Deus que nos conceda o que parece estar em nosso poder, isto é, desviar os olhos para não ver a vaidade, que fazemos a não ser insistir na realidade de sua graça? Pois, alguns não desviaram os olhos da vaidade, por pensarem que eles próprios se fariam justos e bons, e amaram mais a glória dos homens do que a de Deus (cf Jo 12,43); são homens que tiveram excessiva complacência em si mesmos, e presumiram das forças de seu arbítrio. Mas também isso é vaidade e presunção de espírito (cf Ecl 6,9). Tendo dito o salmista: “Desvia-me os olhos para que não vejam a vaidade. Vivifica-me em teu caminho”, porque o caminho não é vaidade, mas é a verdade, logo acrescentou: “Estabelece em teu servo a tua palavra, mediante teu temor”. Que quer dizer senão: Dá- me a possibilidade de fazer o que dizes? A palavra de Deus não está estabelecida naqueles que a removem de si, fazendo o contrário do que ela ordena; está estabelecida naqueles em que se mantém imóvel. Por conseguinte, Deus estabeleceu sua palavra em seu temor naqueles aos quais concede o espírito de seu temor; não aquele temor mencionado pelo Apóstolo: “Não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor” (Rm 8,15); mas o perfeito amor lança fora o temor (cf 1Jo 4,18). Trata-se daquele temor do qual diz o profeta: espírito de temor de Deus (cf Is 11,3), de temor casto que permanece pelos séculos dos séculos (cf Sl 18,10), temor que leva ao receio de ofender o ser amado. De um modo teme a mulher adúltera ao marido, de outro a casta. A adúltera tem medo de que ele venha, a casta de que a abandone. | |
§ 4 | 39 “Afasta de mim o opróbrio de que suspeito, porque são suaves os teus juízos”. Quem é que suspeita de seu próprio opróbrio e não conhece melhor seu opróbrio do que o alheio? É mais provável que o homem suspeite do alheio do que do seu, porque o que se suspeita ignora-se. No próprio opróbrio não há suspeita, mas conhecimento, quando a consciência fala. Que significa então: “o opróbrio de que suspeito?” Certamente, o sentido desta frase deve ser deduzido do sentido da frase anterior. Enquanto o homem não desvia os olhos para não verem a vaidade que opera em si, suspeita que outros a tenham. Acredita que os outros agem pelo mesmo motivo que o leva a adorar a Deus, ou a fazer o bem. De fato, os homens podem ver o que fazemos, mas continua oculto o que visamos em nossas ações. Assim, fornece-se ocasião para suspeitas. O homem ousa julgar das intenções ocultas e suspeitar temerariamente muitas vezes coisas falsas, e se são reais, contudo são desconhecidas. Assim, o Senhor, ao falar da finalidade pela qual devemos praticar a justiça, a fim de desviar nossos olhos da visão da vaidade, exortou-nos a não agirmos tendo em mira os louvores dos homens, nesses termos: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles”. Admoestou-nos a que não o fizéssemos por causa do dinheiro: “Não ajunteis para vós tesouros na terra”, e: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Acautelou-nos a não agirmos por causa da própria subsistência e das vestes: “Não vos preocupeis com a vossa vida, quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir” (Mt 6,1.19,24.25). E tendo-nos feito todas essas admoestações, porque podemos suspeitar sobre aqueles cuja vida justa presenciamos, sem saber que fim têm em vista, de que fazem o bem por algum destes últimos motivos, logo acrescenta: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Daí vem que o salmista após dizer: “Afasta de mim o opróbrio de que suspeito”, acrescentou: “porque são suaves os teus juízos”, isto é, teus juízos são verdadeiros. Amante da verdade, clama que é suave o que é verdadeiro. Quanto aos juízos dos homens acerca das intenções ocultas dos homens não são suaves, mas temerários. Por esta razão o salmista diz que é seu o opróbrio que suspeitou a respeito de outrem, porque não entende a palavra do Apóstolo: “Comparando-se a si mesmos”. O homem é propenso a suspeitar nos outros o que sente em si mesmo. Por conseguinte, pede o salmista seja-lhe afastado o opróbrio que sentira em si mesmo, e suspeitara dos outros, para não se tornar semelhante ao diabo, que suspeitou dos sentimentos ocultos do santo varão Jó e de que não cultuava a Deus sem interesses próprios. Pediu permissão para tentá-lo para revelar o crime que lhe imputara (cf Jó 1,9). | |
§ 5 | 40 Mas como somente a emulação suspeita de bom grado de opróbrio em outrem, desde que não pode reprender a boa ação, porque se manifesta por si o que é feito às claras, censura-se a intenção, porque esta não se revela, mantendo-se oculta. Assim, consegue ter suspeitas livremente quem o quer, não vendo o que está escondido, e invejando o que se destaca; de fato, contra este mal, que leva alguém a suspeitar de outro voluntariamente o mal que não vê, é necessária a caridade, que não é invejosa (cf 1Cor 13,4). O Senhor a recomenda de modo todo especial: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros”, e: “Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34.35). E referindo-se ao amor de Deus e do próximo, assim se exprime: “Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22,40). Daí provém que o salmista ore, contra o opróbrio de que suspeita e que quer cortar: “Eis que cobicei teus mandamentos. Dá-me vida segundo tua justiça”. Eis que desejei de todo o coração, de toda a alma, de todo o espírito amar-te e ao próximo como a mim mesmo; “dá-me vida segundo tua justiça”, não segundo a minha, isto é, cumula-me desta caridade que desejei. Ajuda-me a fazer o que ordenas, dá o que mandas. “Dá-me vida segundo a tua justiça”, pois encontro em mim o que pode causar-me a morte; recurso para dar-me a vida só o encontro em ti. Cristo é a tua justiça, ele “que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se gloria, se glorie no Senhor” (1 Cor 1,30-31). Nele encontro os teus mandamentos que desejei, para que em tua justiça, a saber, nele, me vivifiques. Ele é o Verbo que é Deus; e o Verbo se fez carne (cf Jo 1,14), para ser também meu próximo | |
XIII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 41 Ao sermão anterior que proferimos recentemente sobre o mais prolixo dos salmos, devemos unir este a respeito dos versículos que seguem. São estas as expressões: “E venha sobre mim a tua misericórdia, Senhor”. A sentença parece anexa à anterior, pois o salmista não disse: “Venha sobre mim”, e sim: “E venha”. A precedente reza: “Eis que cobicei teus mandamentos. Dá-me vida segundo tua justiça”. Vem em seguida: “E venha sobre mim a tua misericórdia, Senhor”. Que é que está pedindo, senão que aquele que deu a ordem execute por sua misericórdia os mandamentos que cobicei? Pois, ele expõe de certa maneira o que disse: “Dá-me vida segundo tua justiça”, quando acrescenta: “E venha sobre mim a tua misericórdia, Senhor, a tua salvação segundo a tua palavra”, isto é, segundo a tua promessa. Por isso, o Apóstolo quer que compreendamos que somos filhos da promessa, de tal modo que não consideremos ser nosso o que somos, mas atribuamos tudo à graça de Deus (cf Rm 9,8). Pois, “Cristo se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aqueles que se gloria, se glorie no Senhor” (1 Cor 1,30.31). Quanto à palavra: “Dá-me vida segundo tua justiça”, efetivamente deseja ser vivificado em Cristo e pede que venha sobre ele esta mesma misericórdia. O próprio Cristo é a “Salvação” de Deus; com esta expressão expôs a que misericórdia se referia, ao pedir: “E venha sobre mim a tua misericórdia, Senhor”. Se perguntarmos de que misericórdia se trata, ouçamos o que vem em seguida: “A tua salvação segundo a tua palavra”. Tal promes- sa foi feita por aquele que “chama à existência as coisas que não existem como se existissem” (Rm 4,17). Ainda não existiam os receptores da promessa, a fim de que ninguém se gloriasse de seus méritos. E esses receptores também foram prometidos, de sorte que profira todo o corpo de Cristo: “Pela graça de Deus sou o que sou” (1 Cor 15,10). | |
§ 2 | 42 “E responderei aos que me insultam uma palavra”. É ambíguo o sentido. “Aos que me insultam uma palavra”, ou: “responderei com uma palavra”. Qualquer dos sentidos acena para Cristo. Censuram-nos por causa dele os que consideram Cristo crucificado um escândalo ou uma loucura (cf 1Cor 1,13), ignorando que o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e que o Verbo era no princípio, e era junto de Deus e era Deus (cf Jo 1,14.1). Mas embora não seja ao próprio Verbo que insultam, porque o desconhecem, visto que não reconhecem sua divindade os que desprezam a fraqueza que aparece na cruz; nós, contudo, respondamos com o Verbo e não tenhamos medo nem vergonha por causa do insulto. Pois se conhecessem o Verbo, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8). Responde com o Verbo aos injuriadores aquele que recebe a salvação de Deus, para o proteger e não para o esmagar. Pois, ela há de vir para esmagar a alguns, que agora desprezam sua humildade, e investindo contra ela se quebram. Pois, assim se exprime o evangelho: “Aquele que cair sobre essa pedra vai se quebrar todo, e aquele sobre quem ela cair, ela o esmagará” (Lc 20,18). Portanto, os que nos insultam, tropeçam e caem sobre a pedra. Nós, porém, para não tropeçarmos e cairmos, não temamos seus insultos, mas respondamos com uma palavra. “Esta é a palavra da fé que nós pregamos. Porque se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Pois quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,9.10). Não é suficiente, portanto, ter Cristo no coração e não querer confessá-lo por medo do insulto; mas aos que insultam devemos responder com uma palavra. Foi prometida aos mártires a possibilidade de realizar isto: “Não sereis vós que estareis falando naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós” (Mt 10,20). Por isso, o salmista tendo dito: “E responderei aos que me insultam uma palavra”, logo acrescenta: “Porque em tua palavra pus a minha confiança”. Seria, de fato, em tuas promessas. | |
§ 3 | 43 Mas, levando em consideração que muitos, apesar de pertencerem ao corpo que profere estas palavras, não conseguiram suportar o insulto, sob a pressão e peso da perseguição, e cairam, negando a Cristo, prossegue o salmo: “E não me retires da boca até o extremo a palavra da verdade”. Refere-se a sua boca, porque fala a unidade do corpo, entre cujos membros se contam aqueles que fra-quejaram por uma negação momentânea, mas reviveram depois pela penitência, ou até recuperaram, reparando pela confissão, a palma do martírio que haviam perdido. A palavra da verdade, portanto, não foi retirada da boca de Pedro, que era tipo da Igreja; não foi até o extremo (usque valde), ou como trazem alguns códices: inteiramente (usquequaque). Apesar de ter negado num momento, perturbado pelo medo, no entanto reparou pelas lágrimas e confessando foi posteriormente coroado. Todo o corpo da Igreja, portanto, é que fala, a saber, a santa Igreja univer-sal. Neste corpo inteiro, seja porque embora muitos tenham negado, restaram os fortes que combateram pela verdade até a morte, seja porque destes que negaram muitos fizeram reparação, não foi retirada de sua boca a palavra da verdade “até o extremo”. A expressão: “Não retires” deve ser interpretada como: não permitas seja retirada. É por isso que rezamos: “Não nos deixes cair em tentação” (Mt 6,13). E o próprio Senhor disse a Pedro: “Eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça” (Lc 22,32), isto é, não seja retirada de tua boca a palavra da verdade “até o extremo”. Prossegue: “Porque esperei em teus juízos”, ou como alguns traduziram mais cuidadosamente do grego: esperei sobretudo (supersperavi). Este verbo usualmente não é composto, no entanto supre diante da necessidade da exatidão da tradução. Mais atentamente, portanto, devemos procurar o sentido desta passagem, para entendermos, com o auxílio de Deus, o que quer dizer: “Esperei em tuas palavras, esperei sobretudo em teus juízos. Responderei aos que me insultam uma palavra, porque em tuas palavras pus a minha confiança”, isto é, porque isto me prometeste. “E não me retires da boca até o extremo a palavra da verdade, porque esperei sobretudo em teus juízos”. Os teus juízos, que me corrigem e castigam, não só não me tiram a esperança, mas ainda a aumentam, porque o Senhor corrige a quem ama e castiga todo filho que acolhe (cf Hb 12,6). Efetivamente, os santos e humildes de coração, presumindo de teu auxílio, não desfaleceram nas perseguições; os que de si presumiram falharam; no entanto, pertenciam a teu corpo e reconhecendo sua fraqueza choraram e recuperaram de modo mais firme tua graça porque desistiram de sua soberba. Por conseguinte, “não me retires da boca a palavra da verdade inteiramente, porque esperei sobretudo em teus juízos”. | |
§ 4 | 44 “E guardarei sempre a tua lei”, isto é, se não retirares de minha boca a palavra da verdade, “guardarei sempre a tua lei. Nos séculos e pelos séculos dos séculos” mostra por que motivo empregou a palavra: “sempre”. Algumas vezes “sempre” tem este sentido: Enquanto se vive aqui na terra; outra coisa é: “nos séculos e pelos séculos dos séculos”. É tradução melhor do que a de alguns códices: “eternamente e pelos séculos dos séculos”. Não puderam dizer: pela eternidade da eternidade. A lei aqui mencionada é a de que fala o Apóstolo: “A caridade é a plenitude da lei” (Rm 13,10). Guardam-na os santos, de cuja boca não é retirada a palavra da verdade, isto é, a própria Igreja de Cristo, não somente neste século, isto é, até que termine o tempo presente, mas também no outro, que se denomina: “séculos dos séculos”. Lá, contudo, não receberemos preceitos da lei, como aqui, para guardarmos, mas observaremos a própria plenitude da lei, como disse, sem temor algum de pecar. Pois, ao contemplarmos a Deus amá-lo-emos mais plenamente, e também ao próximo, porque Deus será tudo em todos (cf 1Cor 15,28). Não haverá pretexto algum de suspeita contra o próximo, porque lá nada será oculto | |
XIV SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 45-48 Os versículos precedentes deste longo salmo continham uma oração; os seguintes, que comentaremos agora, constam de uma narração. Mais acima o homem de Deus suplicava o socorro da graça de Deus, nesses termos: “Dá-me vida segundo tua justiça. E venha sobre mim a tua misericórdia, Senhor”, e outras preces semelhantes, antes ou depois. Agora, porém, declara: “E andava por caminho amplo, porque busquei os teus mandamentos. E falava de teus testemunhos diante dos reis e não me envergonhava. E meditava em teus mandamentos, que amei. E ergui as mãos para os teus mandamentos, que amei; e exercitava-me em tuas justificações”. São palavras de um narrador, não de um suplicante. Parece ter impetrado o objeto de sua súplica e confessa, em louvores a Deus, o que dele fizera a misericórdia do Senhor, que pedira viesse sobre si. O salmista não fez a conexão com os versículos precedentes desta forma: “E não me retires da boca a palavra da verdade inteiramente, porque esperei sobretudo em teus juízos. E guardarei sempre a tua lei, nos séculos e pelos séculos dos séculos; e andarei por caminho amplo, porque busquei os teus mandamentos. E falarei de teus testemunhos diante dos reis e não me envergonharei” etc., no futuro. Assim parece que os versículos seguintes deviam unir-se aos precedentes. Mas disse: “E andava por caminho amplo”. A conjunção copulativa: “E” parece mal colocada, porque ele não disse: E andarei, como dizia: “E guardarei sempre a tua lei”. Ou certamente se foi dito no modo optativo: “Que eu guarde tua lei”, não disse: E ande por caminho amplo, desejando e pedindo ambas as coisas; mas disse: “E andava por caminho amplo”. Se aí não estivesse a conjunção, mas a frase fosse independente e livre de conexão com as frases anteriores: “Andava por caminho amplo”, nada impressionaria o leitor como se fosse inusitado modo de falar, e ele achasse que aqui devia procurar um sentido oculto. Na verdade, quis dar a entender o que não disse, isto é, que foi atendido; e logo acrescentou o que lhe acontecera, como se dissesse: Tendo rezado, tu me ouviste, “e eu andava por caminho amplo”, e o restante, que elaborou desta maneira. | |
§ 2 | Que significa, portanto: “E andava por caminho amplo”, senão andava com a caridade, que foi derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado? (cf Rm 5,5). Por este caminho amplo andava o Apóstolo que afirmava: “A nossa boca se abriu para vós, ó coríntios; o nosso coração se dilatou” (2 Cor 6,11). Esta caridade toda inteira está contida naqueles dois mandamentos, dos quais dependem a lei e os profetas (cf Mt 22,40). Daí vem que tendo dito: “E andava por caminho amplo”, acrescentou a causa disso: “Porque busquei os teus mandamentos”. Alguns códices não contêm “mandamentos, e sim tes-temunhos”. Mas encontramos na maior parte “mandamentos”, principalmente nos gregos. Quem duvida de que tem maior crédito a língua precedente, de onde estes salmos foram traduzidos para nós? Assim, portanto, se queremos saber como ele procurou estes mandamentos ou como devem ser procurados, contemplemos o que nos diz o bom mestre, doutor e doador: “Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto”. E pouco depois: “Ora, se vós que sois maus sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está nos céus, dará coisas boas aos que lhes pedem” (Mt 7,7.11). Assim mostra com evidência que as palavras: “Pedi, buscai, batei” só se referem a pedidos, isto é, a instância na oração. Outro evangelista, de fato, não disse: “Dará coisas boas aos que lhe pedem”, que pode ter muitos sentidos, tanto corporais quanto espirituais; mas omitiu algumas coisas, e exprimiu de modo bastante cuidadoso o que o Senhor desejava que peçamos com veemência e instância: “Quanto mais o Pai do céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem”? (Lc 11,13). É o Espírito por quem se derrama a caridade em nossos corações (cf Rm 5,5), para amarmos a Deus e o próximo e assim cumprirmos os mandamentos divinos. É o Espírito que nos faz clamar: “Abba, Pai” (Rm 8,15). Desta forma ele nos faz pedir aquele que desejamos receber, ele nos faz procurar quem almejamos encontrar; ele nos faz bater à porta daquele que nos esforçamos para alcançar. É o que nos ensina o Apóstolo que, afirmando que o Espírito Santo nos faz clamar: ”Abba, Pai!”, ainda diz em outra passagem: “Enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai” (Gl 4,6). Como é que nós clamamos, se ele é quem clama em nós, a não ser porque ele nos fez clamar, quando começou a habitar em nós? Uma vez recebido ele faz também com que seja mais largamente acolhido: pedindo, procurando, batendo, nós o suplicamos. Seja, pois, que peçamos uma vida boa, seja para vivermos bem, todos, de fato, que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus (cf Rm 8,14). Por conseguinte, “andava por caminho amplo, porque busquei os teus mandamentos”. Buscara e encontrara, porque pedira e recebera o Espírito bom. Por ele transformado em bom, o salmista faria bem obras boas, pela fé que opera pela caridade. | |
§ 3 | “E falava de teus testemunhos diante dos reis e não me envergonhava”, como alguém que pedira e recebera, a fim de responder aos que o insultavam com uma palavra, e para que não lhe fosse retirada da boca a palavra da verdade. Por isso, combatendo por ela até a morte, nem mesmo na presença dos reis envergonhava-se de a proferir. Com efeito, os testemunhos de que falava diante deles, em grego se denominam martírios. Já usamos esta palavra como se fosse latina. Dela deriva também o vocábulo mártires, de quem Jesus predissera que haveriam de confessar na presença dos reis sua fé nele (cf Mt 10,18). | |
§ 4 | “E meditava em teus mandamentos, que amei. E ergui as mãos para os teus mandamentos, que amei”. Alguns códices acrescentam a cada um desses versículos: amei “muito, ou demais, ou veementemente”, conforme o tradutor preferiu para verter o termo grego sphódra. Conseqüentemente, amou os mandamentos de Deus, porque andava por caminho amplo; por ação do Espírito Santo, que derrama em nós a caridade e dilata os corações dos fiéis (cf Rm 5,5). O salmista, porém, amou em pensamentos e obras. Pois, quanto aos pensamentos, declarou: “E meditava em teus mandamentos”; quanto às obras: “E ergui as mãos para os teus mandamentos”. A ambas as sentenças acrescentou: “que amei”. A finalidade do preceito é a caridade, que procede de coração puro (cf 1Tm 1,5). Quando se cumpre o mandamento de Deus visando a tal fim, tal intenção, a obra é verdadeiramente boa; e então as mãos se erguem, porque acha-se no alto a finalidade por que se levantam. Por isso, o Apóstolo, estando para falar da mesma caridade, disse: “Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” (1 Cor 12,31); e em outro lugar: “E conhecer o amor de Cristo que excede a todo conhecimento” (Ef 3,19). Efetivamente, se no cumprimento dos mandamentos de Deus visa-se à recompensa da felicidade terrena, as mãos em vez de se levantarem, abaixam-se, uma vez que se está procurando recurso terreno, o qual é de baixo, não do alto. A ambos, aos pensamentos e às obras pertence o que logo segue: “E exercitava-me em tuas justificações”. Assim preferiram alguns tradutores, em lugar de “alegrava-me ou tagarelava” conforme verteram alguns o termo grego edoléskoun. Exercita-se alegre nas justificações de Deus, e de certa maneira loquaz, aquele que ama seus mandamentos e os guarda com prazer em pensamentos e obras | |
XV SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 49.50 Consideremos, na medida que Deus quiser, e comentemos os versículos seguintes deste grande salmo: “Lembra-te de tua palavra a teu servo, na qual me fizeste esperar. Este é o consolo em minha humilhação, que tua palavra me conserva a vida”. Será que Deus se esquece, como o homem? Então, por que dizer: “Lembra-te?” Ora, em outros lugares da Sagrada Escritura vem claramente a palavra, como, por exemplo: “Por que me esqueceste?” e: “Esqueces nossa miséria” (Sl 41,10; 43,24). E o próprio Deus diz através do profeta: “Nenhum dos crimes que praticou será lembrado” (Ez 18,22). Aqui e ali, com freqüência se lê isto. Mas não se aplicam a Deus, como acontece aos homens. Pois, assim como se diz que Deus se arrepende quando, fora das previsões humanas ele muda os acontecimentos, sem alterar seus desígnios, porque o plano do Senhor permanece eternamente (cf Sl 32,11), assim se diz que ele esquece, quando parece retardar o auxílio ou o cumprimento do prometido, ou não pagar aos pecadores conforme merecem, ou coisa semelhante, parecendo ter falhado sua memória, quando não acontece o que se espera ou se receia. Essas coisas se dizem no sentido moral, conforme age o afeto humano. Deus o realiza por decisão certa, sem falha de memória, nem obscurecimento da inteligência, nem mudança da vontade. Quando, pois, alguém lhe diz: “Lembra-te” revela-se o desejo do suplicante, porque pede o que foi prometido, e intensifica-se; e não procura relembrar a Deus, como se lhe tivesse fugido da memória. “Lembra-te de tua palavra a teu servo”, quer dizer, cumpre a promessa feita a teu servo. “Na qual me fizeste esperar”, isto é, como prometeste, fizeste-me esperar em tua palavra. | |
§ 2 | “Este é o consolo em minha humilhação”. É a esperança dada aos humildes, segundo a palavra da Escritura: “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4,6; 1Pd 5,5). A própria boca do Senhor proferiu: “Todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11; 18,14). Com justeza se reconhece aqui a humildade (não a que leva alguém a confessar os pecados e a não se arrogar jutiça, mas) a condição humilde de quem sofre tribulação ou rejeição, merecidas pela soberba, ou quando se exerce ou se prova a sua paciência. Por isso, diz o salmo mais adiante: “antes de ser humilhado, errei”. E o que ensina o livro da Sabedoria: “Na dor, suporta, e nas vicissitudes de tua pobre condição sê paciente, pois o ouro e a prata se provam no fogo e os homens eleitos, no cadinho da humilhação” (Eclo 2,4.5). Denominando-os “eleitos”, dá-lhes esperança que os console em sua condição humilde. O Senhor Jesus, predizendo a seus discípulos tal humilhação da parte dos perseguidores, não os deixou sem esperança. Deu-lhes uma esperança que ainda os consolaria, dizendo: “É pela perseverança que mantereis vossas vidas” (Lc 21,19). Também do próprio corpo, que poderia ser morto pelos inimigos e perecer quase inteiramente, disse: “Nem um só cabelo de vossa cabeça se perdera” (Lc 21,18). Ao corpo de Cristo, que é a Igreja, foi dada esta esperança que o consolasse em sua condição humilde. Em vista desta esperança diz também o apóstolo Paulo: “E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,25). Mas, esta é a esperança dos prêmios eternos. Existe outra esperança que muito consola na humilhação da tribulação e é dada aos santos na palavra de Deus que promete o auxílio da graça a fim de que ninguém desfaleça. Desta esperança fala o Apóstolo: “Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar” (1 Cor 10,13). O Salvador igualmente por sua própria boca deu-nos tal esperança, nesses termos: “Esta noite Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, Pedro, a fim de que tua fé não desfaleça” (Lc 22,31.32). Deu também esta esperança na oração que ensinou, onde nos exortou a dizermos: “Não nos deixeis cair em tentação” (Mt 6,13). De certo modo ele prometeu que havia de dar aos que corriam perigo aquilo que quis repetissem os que rezassem. Na verdade, este salmo fala especialmente desta esperança: “Este é o consolo em minha humilhação, que tua palavra me conserva a vida”. Melhor traduziram os que não empregaram: verbum, palavra, mas: eloquim, oráculo. O grego traz lógion que se traduz por eloquim e não lógos que se traduz por verbum, palavra. | |
§ 3 | 51 Continua o salmo: “Os soberbos agiam iniquamente até o extremo; eu, porém, não me desviei de tua lei”. Designa por soberbos os perseguidores dos homens piedosos; por isso, acrescentou: “eu, porém, não me desviei de tua lei”, visto que a perseguição deles o impelia a isto. Afirma que eles agiam iniquamente “até o extremo”, porque não somente eram ímpios, mas queriam obrigar os piedosos a se tornarem ímpios. Nesta humilhação, isto é, nesta tribulação, a esperança serve de consolo, que é dado pelo auxílio da palavra de Deus, a qual promete que a fé dos mártires não há de desfalecer; e pela presença de seu Espírito que dá força aos aflitos, a fim de que escapando do laço dos caçadores possam dizer: “Se o Senhor não estivesse conosco, decerto nos teriam devorado vivos” (Sl 123,1). | |
§ 4 | Ou talvez disse: “Este é o consolo em minha humilhação”, referindo-se à humilhação em que caiu o homem e foi arrastado à morte, por aquele pecado cometido na felicidade do paraíso de forma tão infeliz? (cf Gn 3,23). De fato, nesta humilhação, em que o homem se assemelhou à vaidade e em que seus dias passam como sombra (cf Sl 143,4), todos são filhos da ira, a não ser que através do Mediador se reconciliem com Deus os que foram predestinados à salvação eterna antes da criação do mundo (cf Ef 1,4). Nesse Mediador também os antigos justos tinham esperança, quando pelo espírito de profecia previam que ele haveria de vir na carne. Portanto, o oráculo que lhes era feito a respeito dele, também com razão se entende que é palavra, se compreendemos acerca deles esta expressão. Desta palavra foi dito: “Lembra-te de tua palavra a teu servo, na qual me fizeste esperar. Este é o consolo em minha humilhação”, isto é, em minha condição mortal, “que tua palavra me conserva a vida”, de tal forma que arrastado à morte, tivesse esperança de vida. “Os soberbos agiam iniquamente até o extremo”, porque de fato nem a humilhação da mortalidade domou a sua soberba. “Eu, porém, não me desviei de tua lei”, o que me impeliam a fazer os soberbos. | |
§ 5 | 52 “Lembro-me, Senhor, dos juízos de outrora e sinto-me consolado”. Ou conforme alguns códices: “E fui advertido”, isto é, recebi um aviso. A palavra grega pode ter os dois sentidos: parekléthen. “Outrora”, portanto, desde o começo do gênero humano, “lembro-me de teus juízos” acerca dos vasos de ira, que foram consumados para sua perdição. “E sinto-me consolado”, porque mostraste as riquezas de tua glória para com os vasos de tua misericórdia (cf Rm 9,22.23). | |
§ 6 | 53.54 “Senti tédio por causa dos pecadores que abandonam a tua lei. Objeto de meus cantos eram as tuas justificações, no lugar de minha habitação”, ou conforme outros códices: “no lugar de minha peregrinação”. Trata-se daquela condição humilde na região da mortalidade para o homem peregrino fora do paraíso (cf Gn 3,23) e daquela Jerusalém do alto, de onde desceu o homem para Jericó, caindo nas mãos dos ladrões; mas por causa da misericórdia daquele samaritano (cf Lc 10,30), tornaram-se as justificações de Deus objeto de canto para ele no lugar de sua peregrinação. Contudo, sente tédio por causa dos pecadores que abandonam a lei de Deus, pois deve conviver com eles nesta vida, ou durante certo tempo, até vir a ventilação da eira. Estes dois versículos podem adaptar-se a cada uma das partes do versículo anterior, de sorte que: “Lembro-me de teus juízos de outrora, Senhor”, refira-se a: “Senti tédio por causa dos pecadores que abandonam a tua lei”; e a outra parte: “E sinto-me consolado” relaciona-se a: “Objeto de meus cantos eram as tuas justificações no lugar de minha peregrinação”. | |
§ 7 | 55 “À noite lembrei-me de teu nome, Senhor, e guardei a tua lei”. Noite é aquela condição humilde, onde se encontram as tribulações da mortalidade; noite são os soberbos que agem iniquamente até o extremo, noite é o tédio por causa dos pecadores que abandonam a lei de Deus; noite finalmente é o lugar desta peregrinação, até que venha o Senhor, e ilumine os esconderijos das trevas, e manifeste os pensamentos dos corações; então cada uma receberá de Deus o louvor que lhe é devido (cf 1Cor 4,5). Nesta noite o homem deve lembrar-se do nome de Deus, de tal modo que aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (cf 1Cor 1,31); por causa disso temos a palavra da Escritura: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá a glória” (Sl 113,12). Assim, pois, ninguém observa a lei de Deus por sua glória, mas pela glória de Deus, porque não é por sua justiça, mas pela justiça de Deus, isto é, que lhe foi concedida por Deus, conforme diz o salmista: “À noite, lembrei-me de teu nome, Senhor, e guardei a tua lei”. Não a teria guardado, se fiado em seu valor, não se tivesse lembrado do nome de Deus. O nosso auxílio está no nome do Senhor (Sl 123,8). | |
§ 8 | 56 Em vista disso, logo prossegue: “Esta para mim foi feita, porque busquei as tuas justiças”. De fato, “as tuas justiças”, com as quais justificas o ímpio e não as minhas, que nunca me tornam piedoso e sim soberbo. Pois, o salmista não era do número daqueles que “desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (Rm 10,3). Alguns traduziram melhor o termo justiças, que justificam gratuitamente pela graça de Deus aqueles que por si mesmos não podem ser justos, pela palavra “justificações”, porque, de fato, o grego não usa a expressão dikaiosúnas, isto é, “justiças”, e sim dikaiómata que significa “justificações”. Mas, que quer o salmista, ao dizer: “Esta para mim foi feita”? Que designa por “esta”? Seria acaso a lei, porque havia dito: “E guardei a tua lei”, acrescentando: “Esta para mim foi feita” dizendo aparentemente: Esta lei para mim foi feita? Mas não precisamos rememorar na exposição como lhe foi imposta a lei de Deus. A locução grega, de onde foi vertido o versículo mostra suficientemente que não se trata da lei: “Esta para mim foi feita”, porque lei naquela língua é do gênero masculino e lá também o pronome está no feminino: “Esta para mim foi feita”. Pergunta-se, portanto, em primeiro lugar, o que lhe foi feita, em seguida como lhe foi feita, seja ela o que for. “Esta para mim foi feita”: com toda certeza, não é a lei, porque o grego, conforme disse, exclui este sentido. Talvez, então: Esta noite, porque a sentença anterior é a seguinte: “À noite, lembrei-me de teu nome, Senhor, e guardei a tua lei”. E logo: “Esta para mim foi feita”. Se não é a lei, certamente é a noite que foi feita para ele. Que significa, então: A noite para mim foi feita, “porque busquei as tuas justificações”? Com efeito, seria antes a luz que fora feita para ele, não a noite, porque buscou as justificações de Deus. E se entendermos bem: “foi feita para mim”, seria: feita em meu favor, isto é, foi feita para meu proveito. Se, pois, a condição humilde da mortalidade com fundamento se entende que é noite, na qual os corações dos mortais estão fechados uns para os outros, de tal sorte que de tais trevas se originam inumeráveis e graves tentações, e a tal ponto que durante esta noite também perambulem as feras da floresta, os leõezinhos que rugem, pedindo a Deus o seu sustento (cf Sl 103,21) e na qual também está o leão que ruge, procurando quem devorar (cf 1Pd 5,8), do qual o Senhor disse o que já mencionei acima: Nesta noite, “Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo” (Lc 22,31), isto é, nesta noi-te em que perambulam as feras da floresta, aquele grande leão vos pediu como alimento a Deus. Ora, a própria condição de humilhação deste lugar de peregrinação, que é denominada com razão noite, é proveitosa àqueles que nela se exercitam de maneira salutar, de tal sorte que aprendem a não se orgulharem. Por causa deste mal da soberba o homem foi lançado nesta noite. Pois, o princípio do orgulho é o afastar-se de Deus (cf Eclo 10,12). Mas, o salmista já gratuitamente justificado, e nesta humilhação, progrida no meio das várias tentações desta noite, e bem ciente repita o que neste salmo se diz um pouco mais adiante: “Foi bom que me humilhaste para que eu aprenda as tuas justificações. Foi bom que me humilhaste”, significa outra coisa senão: esta condição de humilhação, denominada noite, “para mim foi feita”, isto é, ocorreu para meu bem? Mas por quê? “Porque busquei as tuas justificações” e não as minhas. | |
§ 9 | É possível ainda compreender o texto: “Esta para mim foi feita” de sorte a não se subentender nem a lei, nem a noite, mas o pronome “Esta” é tomado como na passagem de outro salmo, onde se lê: “Uma só coisa pedi ao Senhor, e a procurarei” (Sl 26,4). O salmista não diz qual é, nem o que é a coisa de que disse: “Esta só procurarei”; o feminino aí substitui o neutro. Não é usual dizer: “Uma pedi e a procurarei” sem dar a entender que uma é essa. Seria mais usual dizer: Uma só coisa (Unum) pedi ao Senhor, e isto procurarei (hoc), habitar na casa do Senhor. Com o neutro não se costuma exigir o que subentender; por exemplo, um bem, ou uma casa, etc.; mas seja o que for, mesmo do gênero masculino ou feminino, ou se não se insinua o gênero, costuma-se exprimir no neutro. Assim, portanto, foi possível dizer: “Esta para mim foi feita”, como seria: Isto para mim foi feito. Se perguntarmos, porém, o que seria, ocorre-me o que dissera mais acima: “À noite, lembrei-me de teu nome, Senhor, e guardei a tua lei”. Isto para mim foi feito, isto é, guardei a tua lei, não por mim mesmo, mas isto para mim certamente foi feito por ti, “porque busquei as tuas justificações”, não as minhas. “Pois é Deus, diz o Apóstolo, quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade” (Fl 2,13). É isto igualmente que Deus diz através do profeta: “Farei com que andeis de acordo com as minhas justificações e guardeis as minhas normas e as pratiqueis” (Ez 36,27). Se Deus assim se exprime: “Farei com que guardeis as minhas normas e as pratiqueis”, é com toda exatidão que diz o salmista: Isto para mim foi feito. Se perguntares o que foi, ele responderá com as palavras acima: Que eu guardasse a lei de Deus. Mas como este sermão está longo demais, os versículos seguintes, se o Senhor nos conceder, serão mais bem comentados em outra exposição | |
XVI SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 57 Agora empreenderemos, se Deus quiser, comentar os versículos seguintes deste salmo tão prolixo: “Meu quinhão, Senhor”, ou segundo outros: “Minha porção, Senhor”. Um ou outro tem o sentido de que aquele que adere ao Senhor, se torna dele participante, conforme foi escrito: “Para mim a felicidade é aproximar-me de Deus” (Sl 72,28). Os homens por sua existência não são deuses, mas tornam-se deuses participando daquele que é o único e verdadeiro Deus. Ou, os homens escolhem sua parte neste mundo, ou estas lhes cabem por sorte, um de um modo, outro de outro, para dela viverem, de certa maneira, Deus é sempre a porção dos justos, da qual eles vivem. Ambos os sentidos são aceitáveis. Mas ouçamos a continuação: “Disse, é guardar a tua lei”. Que significa: “Meu quinhão, Senhor, disse, é guardar a tua lei”, senão que o Senhor será a porção de todo aquele que guardar a sua lei? | |
§ 2 | 58.59 Mas, como há de guardar, a não ser por dom e auxílio do Espírito vivificador? A fim de que a letra não mate (2 Cor 3,6), e o pecado, aproveitando a ocasião através do preceito, não gere toda espécie de concupiscência (cf Rm 7,8) no homem. Deve, portanto, ser invocado este Espírito. Desta forma, a fé alcança dele o que a lei ordena, porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo (cf Jl 3,5; Rm 10,13). Assim, vê o que acrescenta o salmo: “De todo coração imploro ver teu rosto”. E declara como implorou: “Tem piedade de mim segundo a tua palavra”. E como alguém que foi atendido e auxiliado por aquele a quem pediu socorro: “Considerei os meus caminhos, e desviei meus passos para dirigi-los segundo os teus testemunhos”. “Desviei” de meus caminhos, que me desgostaram para dirigir-me aos teus testemunhos, e lá encontrasse o caminho. Muitos códices não trazem: “Porque considerei”, conforme se lê em alguns, mas apenas: “Considerei”. Quanto a: “E desviei meus passos”, alguns contêm: “Porque considerei, e desviaste os meus passos”, atribuindo-o antes à graça de Deus, segundo as palavras do Apóstolo: “Pois é Deus quem opera em vós” (Fl 2,13). A ele igualmente se pede: “Desvia-me os olhos para que não vejam a vaidade”. Se ele desvia os olhos para não verem a vaidade, por que não há de desviar os pés, a fim de não seguirem o erro? Por isso, foi escrito: “Meus olhos se voltam sempre para o Senhor, porque ele é quem há de tirar os meus pés do laço” (Sl 24,15). Mas, quer se leia: “desviaste meus pés”, quer: “desvia meus pés”, quem o leva a fazer é aquele a quem o salmista rogou em seu coração, nesses termos: “Tem piedade de mim segundo a tua palavra”, isto é, segundo a palavra de tua promessa. São os filhos da promessa que são tidos como descendentes de Abraão (cf Rm 9,8). | |
§ 3 | 60 Finalmente, tendo impetrado este benefício da graça, diz o salmista: “Estou preparado e não me sinto perturbado em guardar os teus mandamentos”. Uns traduziram o termo grego tou philácsastai por: “a fim de serem guardados os teus mandamentos”; outros: “para eu guardar”; outros ainda: “em guardar”. | |
§ 4 | 61 Prossegue declarando como está preparado para guardar os mandamentos divinos: “Cercaram- me os laços dos pecadores, mas não me esqueci de tua lei. Os laços dos pecadores” são os obstáculos levantados pelos inimigos, quer espirituais, como o diabo e seus anjos, quer carnais, os filhos da incredulidade, nos quais o diabo opera (cf Ef 2,2). A expressão: “peccatorum” não é genitivo de pecados, mas de pecadores, conforme evidencia o texto grego amartolon. Quando ameaçam os pecadores com males os justos para os atemorizarem, a fim de que não queiram padecê-los pela lei de Deus, de certo modo os enredam em cordéis, que são semelhantes a uma forte e resistente corda. Pois, eles arrastam os pecados como uma longa corda (cf Is 5,18). Assim, esforçam-se por envolver os santos, e por vezes isso lhes é permitido. Mas se enredam os corpos, não enredam as almas que não se esquecem da lei de Deus, porque a palavra de Deus não está algemada (cf 2Tm 2,9). | |
§ 5 | 62 “Levantava-me no meio da noite para louvar-te, pelos juízos de tua justiça”. Mesmo o fato de cercarem os laços dos pecadores ao justo provém dos juízos da justiça de Deus. Por tal razão, afirma o apóstolo Pedro, “que é tempo de começar o juízo pela casa de Deus. Ora, se ele começa por nós, qual será o fim dos que se recusam a obedecer ao evangelho do Senhor? Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficará o ímpio e o pecador”? (1Pd 4,17.18). Isto relativamente às perseguições de que sofria a Igreja, quando a cercavam os laços dos pecadores. Por conseguinte, julgo que “meio da noite” representa as tribulações mais graves. Declara o salmista que então ele se “levantava”, porque não o afligiam a ponto de o abaterem; mas era exercitado para se levantar, isto é, para avançar por meio da própria tribulação a confessar com maior valor. | |
§ 6 | 63.64 Uma vez que tudo isso se realiza pela graça de Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor, nesta profecia o próprio Salvador une sua voz à de seu corpo. Julgo que propriamente pertence à Cabeça o seguinte: “Partilho a sorte dos que te temem e guardam os teus mandamentos”, conforme se encontra na carta aos Hebreus: “Pois tanto o Santificador quanto os santificados descendem de um só; razão por que não se envergonha de os chamar irmãos”. E pouco mais adiante: “Por isso”, porque os filhos têm em comum carne e sangue, “também ele participou da mesma condição” (Hb 2,11.14). Não significa o mesmo que: Fez-se participante? Pois, não seríamos participantes de sua divindade se ele não se fizesse partícipe da nossa mortalidade. Por isso, também no evangelho, uma vez que fomos feitos participantes de sua divindade, diz-se: “Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus: aos que crêem em seu nome, que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1,12-13). Para tal, visto que ele se fez participante de nossa mortalidade, assim prossegue o evangelho: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,14). Através desta participação a graça nos é subministrada, a fim de temermos castamente a Deus e guardarmos os seus mandamentos. É por isso que o próprio Jesus fala nesta profecia; mas certas expressões são de seus membros, na unidade de seu corpo, como um só homem, espalhado por todo o orbe da terra, que cresce no decurso dos séculos, enquanto outras expressões são peculiares à nossa Cabeça. Daí dizer o salmista: “Partilho a sorte dos que te temem e guardam os teus mandamentos”. O grão de trigo caiu na terra, a fim de morrer e dar muito fruto, porque o Senhor se fez participante da sorte de seus irmãos, Deus da sorte dos homens, o imortal da condição dos mortais. A respeito desses frutos, prossegue o salmo: “De tua misericórdia, Senhor, está cheia a terra”. Como se realiza isso a não ser pela justificação do ímpio? O salmista, com o desejo de adiantar-se no conhecimento desta graça, acrescentou: “Ensina-me as tuas justificações” | |
XVII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 65 Agora, vamos comentar, pela vontade de Deus, os versículos deste salmo que assim começam: “Trataste com suavidade o teu servo, Senhor, segundo a tua palavra”, ou antes, “segundo teu oráculo”. Os nossos tradutores algu-mas vezes verteram o termo grego chrestóteta por “suavidade” e outras vezes por “bondade”. Mas, como pode haver suavidade em coisas más, quando deleitam prazeres ilícitos e imundos, e pode haver até na volúpia carnal, devemos entender aqui “suavidade”, que corresponde ao grego chrestóteta relativamente a bens espirituais; por isso, os nossos quiseram dar-lhe o nome de “bondade”. Julgo que o salmista não quis dizer outra coisa senão: “Trataste com suavidade o teu servo”, fizeste-me deleitar-me no bem. Deleitar-se no bem é grande dom de Deus. Quando se pratica a boa obra ordenada pela lei, por temor do castigo e não pelo deleite da justiça, porque não se ama a Deus, mas apenas se teme, é uma ação servil, não livre. Ora, o escravo não permanece sempre na casa, mas o filho aí permanece para sempre (cf Jo 8,35), porque o perfeito amor lança fora o temor (cf 1Jo 4,18). “Trataste”, portanto “com suavidade o teu servo, Senhor”, transformando o servo em filho; “segundo o teu oráculo”, isto é, segundo a tua promessa, de tal sorte que segundo a fé, seja firme a promessa a toda descendência (cf Rm 4,16). | |
§ 2 | 66 “Ensina-me a suavidade, a instrução, a ciência, porque tenho fé em teus mandamentos”. Suplica que tudo isso cresça nele e se consuma. Ele que, de fato, já dissera: “Trataste com suavidade o teu servo”, como é que pede: “Ensina-me a suavidade”, a não ser que deseja mais se manifeste nele, pela graça de Deus, a suavidade da bondade? Pois, tinham fé aqueles que haviam dito: “Senhor, aumenta-nos a fé!” (Lc 17,5). Enquanto se vive neste mundo, este canto é peculiar àqueles que procuram aperfeiçoar-se. O salmista, porém, acrescenta: “e a instrução”, ou segundo muitos códices: “disciplina”. Cada vez que as nossas Escrituras costumam trazer a palavra “disciplina”, que corresponde ao grego paideían, deve-se entender uma instrução um tanto incômoda, conforme o texto: “O Senhor educa a quem ele ama, e castiga todo filho que acolhe” (Pr 3,12; Hb 12,6). Isso nas Sagradas Letras costuma-se denominar disciplina, versão do grego paideia. Esta palavra grega encontra-se na epístola aos Hebreus, no trecho assim vertido pelo tradutor latino: “Toda educação, com efeito, no momento, não parece motivo de alegria, mas de tristeza. Depois, no entanto, produz naqueles que assim foram exercitados um fruto de paz e de justiça” (Hb 12,11). Aquele que Deus trata com suavidade, isto é, a quem Deus se mostra propício, inspirando o deleite no bem, e para explicar melhor, a quem Deus concede a sua caridade, e a caridade ao próximo por causa dele, de fato, deve orar instantemente, pedindo que à medida que este dom nele cresce, saiba não somente por causa dele desprezar os outros prazeres, mas também por ele sofrer qualquer padecimento. Assim à suavidade se acrescenta de maneira salutar a disciplina. Por conseguinte, não se deve pedir e desejar só um pouquinho de suavidade ou bondade, isto é, de caridade santa, e sim uma caridade tão grande que não se extinga sob a pressão da disciplina, mas como uma enorme chama ao sopro do vento, quanto mais se abafa tanto mais crepita. Por isso, não foi suficiente dizer: “Trataste com suavidade o teu servo”; devia pedir ainda que lhe fosse ensinada a suavidade em tão alto grau que pudesse efetivamente suportar com paciência a disciplina. Em terceiro lugar, ele nomeia a ciência. Com efeito, se a extensão da ciência prevalecer sobre a da caridade, ela não edifica, mas incha (cf 1Cor 8,1). Se no entanto, a caridade for tanta, com uma suave bondade, que não seja possível extingui-la com as tribulações provenientes da disciplina, então a ciência será útil, revelando ao homem o que ele merece por si mesmo e o que lhe foi dado por Deus e tornando-o ciente daquilo que ele não sabia ser-lhe possível, mas que por si mesmo absolutamente não poderia. | |
§ 3 | Quanto a não ter dito o salmista: Dá-me, e sim: “ensina-me”, como se há de ensinar a suavidade, sem dá-la? Ora, muitos sabem de coisas que não lhes aprazem, e não sentem suavidade nelas, embora as conheçam. Pois, não se pode aprender a suavidade, se a coisa não deleita. Igualmente a disciplina, que significa uma tribulação corretiva, aprende-se recebendo; isto é, não é ouvindo ou lendo ou pensando, e sim experimentando. Quanto à ciência, porém, colocada em terceiro lugar entre as coisas que o salmista pediu: “Ensina-me”, comunica-se ensinando. Pois, que significa ensinar senão dar a ciência? E estas duas estão tão ligadas que uma coisa não pode existir sem a outra. Pois, ninguém é ensinado se não aprende e, ninguém aprende se não for ensinado. Por esta razão, se o discípulo não é capaz de entender o que o mestre profere, este não pode dizer: Eu o ensinei, mas ele não aprendeu; contudo, pode declarar: Eu lhe disse o que devia dizer, mas ele não aprendeu, porque não percebeu, não compreendeu, não entendeu. De fato, ele teria aprendido, se o mestre ensinasse. Deus, porém, quando quer ensinar, primeiro dá o intelecto, sem o qual o homem não pode aprender os pontos pertencentes à doutrina divina; por isso, o salmista suplica pouco mais adiante: “Dá-me entendimento a fim de que eu aprenda os teus mandamentos”. Com efeito, pode o homem que deseja ensinar alguém repetir as palavras que o Senhor dirigiu a seus discípulos, depois de ressuscitar dos mortos; mas não pode fazer o que ele fez. Narra o evangelho: “Então abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras, e disse-lhes” (Lc 24,45). Ali se lê o que ele lhes disse; mas eles captaram o que o Senhor lhes disse porque ele lhes abriu a mente para que o captassem. Portanto, Deus ensina a suavidade inspirando o deleite, ensina a disciplina moderando a tribulação, ensina a ciência insinuando o conhecimento. Mas, como difere o que aprendemos apenas para saber daquilo que aprendemos para praticar, quando é Deus que ensina, ensina de tal forma que saibamos o que devemos saber, manifestando-nos a verdade, e ensina-nos o que havemos de praticar, inspirando-nos suavidade. Não é sem razão que lhe pedimos: “Ensina-me a fazer a tua vontade” (Sl 142,10). Assim, diz o salmo, “ensina-me a fazer”, não apenas para que eu saiba. As próprias ações retas são os frutos com que pagaremos a nosso agricultor. Mas, diz a Escritura: “O Senhor dará a suavidade, e nossa terra produzirá seu fruto” (Sl 83,13). Que terra é esta a não ser aquela de que se fala ao Senhor que dá a suavidade: “como a terra sem água minha alma está diante de ti” (Sl 142,6). | |
§ 4 | Depois de ter dito, de fato, o salmista: “Ensina-me suavidade, e disciplina e ciência”, prossegue: “porque tenho fé em teus mandamentos”. É razoável fazer a pergunta por que ele não disse: obedeci, mas “tenho fé”. Uma coisa são os mandamentos, outra as promessas. Recebemos mandamentos para cumpri-los, a fim de merecermos receber o objeto das promessas. Por conseguinte, acreditamos nas promessas e obedecemos aos mandamentos. Então, porque: “Tenho fé em teus mandamentos”, senão porque acreditei que foste tu quem os ordenaste e não um homem, embora tenham sido transmitidos aos homens por meio de outros homens? Uma vez que acreditei que os mandamentos são teus, a própria fé que me levou a crer, obtenha-me a graça de fazer o que ordenaste. Se fosse um homem que me ordenasse essas coisas externamente, por acaso ajudaria interiormente a cumprir a ordem? Ensina-me, portanto, a suavidade inspirando-me a caridade, ensina-me a disciplina dando-me paciência, ensina-me a ciência iluminando a inteligência, “porque tenho fé em teus mandamentos”. Tenho fé que foste tu, que és Deus, que mandaste, e dás ao homem a possibilidade de fazer o que mandas. | |
§ 5 | 67 “Antes de ser humilhado, errei. Agora, porém, cumpri a tua palavra”, ou como alguns trazem mais exatamente: “Agora, porém, cumpri o teu oráculo”, a fim de não ser novamente humilhado. Isso melhor se refere à humilhação que sofreu Adão, no qual toda a criatura humana, de certo modo viciada na raiz, não tendo querido submeter-se à verdade, ficou sujeita à vaidade (cf Gn 3,17; cf Rm 8,20). Foi de proveito aos vasos de misericórdia esta experiência, a fim de que, rejeitando o orgulho, amém a obediência e se extinga sem retorno a miséria. | |
§ 6 | 68 “És suave, Senhor”, ou como muitos códices trazem: “Suave és tu, Senhor”; outros ainda: “Suave és tu”, ou “Bom és tu”, conforme explicamos mais acima a respeito desta palavra. “E em tua suavidade ensina-me as tuas justificações”. Verdadeiramente ele quer praticar as justificações de Deus, quando quer aprendê-las com a suavidade daque-le ao qual se dirige nesses termos: “Suave és tu, Senhor”. | |
§ 7 | 69 Enfim, continua: “A iniqüidade dos soberbos se multiplicou contra mim”. A iniqüidade daqueles aos quais de nada serviu ter sido humilhada a natureza humana, depois da queda. “Eu, porém, de todo o coração sondarei os teus preceitos”. Por mais que abunde a iniqüidade, não conseguirá fazer esfriar em mim a caridade (cf Mt 24,12). Parece afirmá-lo aquele que aprendeu as justificações de Deus com a sua suavidade. Quanto mais suaves são as ordens daquele que ordena e ajuda, tanto mais aquele que ama as sonda, para praticar o que conhece e no ato de fazê-lo conhecer melhor. Pois, as coisas se conhecem melhor quando são feitas. | |
§ 8 | 70 “O coração deles se coalhou como o leite”. Quem são eles senão os soberbos, cuja iniqüidade o salmista declara que se multiplicou contra ele? Essa expressão, neste lugar, significa que o coração deles se endureceu. Pois, ela é usada também no sentido bom, como no salmo sexagésimo sétimo, onde se diz: “Monte ubérrimo de queijo, monte pingüe” (Sl 67,16). Entende-se que é cheio de graça. Alguns usaram o termo: “coagulado”. Mas vê a que se opõe a dureza do coração deles: “Mas eu meditei a tua lei”. Qual? Na verdade, a lei muito justa e misericordiosa. Daí a palavra: “Compadece-te de mim segundo a tua lei”. Deus resiste aos soberbos, para que se obstinem; aos humildes, porém, dá a graça, a fim de que amem a obediência e se tornem excelentes (cf Tg 4,6; 1Pd 5,5). De fato, pela meditação desta lei, conserva-se a humildade voluntária, e escapa-se da humildade penal, da qual logo se falará. | |
§ 9 | 71 “Foi bom que me humilhaste para que eu aprenda as tuas justificações”. Há pouco, mais acima, já dissera: “Antes de ser humilhado, errei. Agora, porém, cumpri a tua palavra”. O próprio resultado demonstra que foi bom para ele ser humilhado; mas declara também a causa por que precedeu a humilhação penal de seu erro. Naquele versículo temos: “Agora, porém, cumpri a tua palavra”, e neste: “para que eu aprenda as tuas justificações”. Com isso, a meu ver, designa suficientemente que conhecer é o mesmo que guardar, e guardar o mesmo que conhecer. Cristo conhecia o que censurava, no entanto censurava o pecado, apesar de se afirmar dele que “não conhecera o pecado” (2 Cor 5,21). Com efeito, conhecera por certa notícia, mas ao invés não conhecera devido a certa ignorância. Assim também muitos aprendem as justificações de Deus, e não as aprendem. Conheceram-nas por certa notícia, mas ao contrário desconheceram-nas por certa ignorância, porque não praticam o que sabem. Igualmente aqui se deve entender que disse o salmista: “para que eu aprenda as tuas justificações”, com o conhecimento que leva à prática. | |
§ 10 | 72 Isso somente se realiza pelo amor, que causa prazer, conforme foi dito: “Em tua suavidade ensina-me as tuas justificações”. Demonstra-o o versículo seguinte: “Melhor é para mim a lei que saiu de tua boca do que milhões em ouro e prata”. A caridade tem maior amor à lei de Deus do que a ambição a milhões em ouro e prata | |
XVIII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 73 Quando Deus fez o homem da argila e insuflou-lhe um hálito de vida (cf Gn 2,7), não se narra que o tenha plasmado com as mãos. Não vejo por que alguns opinam que o restante da criação tenha sido feito pela palavra de Deus, mas quanto ao homem, como algo de mais importante, ele o tenha plasmado com as mãos, a não ser por que se lê que o corpo do homem foi formado da argila. Eles pensam que só poderia ter sido feito com as mãos, sem entender a que se acha escrito no evangelho a respeito do Verbo de Deus: “Tudo foi feito por meio dele” (Jo 1,3); isso não seria verdade se também o corpo humano não tivesse sido feito por meio do Verbo. Mas eles aduzem o testemunho deste salmo, e afirmam: Aí está como um homem exclama claramente: “As tuas mãos me fizeram e me plasmaram”, como se também não tivesse sido dito expressamente: “Quando contemplo os céus, lavor de teus dedos” (Sl 8,4) e não menos abertamente: “Os céus são obra de tuas mãos” (Sl 101,26), e muito mais exatamente: “E suas mãos estabeleceram a terra firme” (Sl 94,5). Ora, as mãos de Deus são o seu poder. Se os inquieta o plural, pois o salmista não escreveu: tua mão, mas “tuas mãos”, tomem por mãos de Deus seu poder e sua sabedoria (cf 1Cor 1,24), ambas as designações usadas para Cristo, que é um só; mas ele é também chamado braço do Senhor, na passagem onde se lê: “E a quem se revelou o braço do Senhor”? (Is 53,1). Ou refiram as mãos de Deus ao Filho e ao Espírito Santo, porque o Espírito Santo age com o Pai e o Filho. Daí provém a palavra do Apóstolo: “Mas, isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza” (1 Cor 12,11). Efetivamente disse: “O único e mesmo”, a fim de que ninguém pensasse que são tantos espíritos quantas as obras, nem que o Espírito opera algo sem o Pai e o Filho. Pode-se escolher, portanto, como entender as mãos de Deus; contanto que não se negue que o Verbo faz o que se faz com as mãos; nem se pense que o que se faz pelo Verbo, não se faz com as mãos; nem por se falar em mãos se pense em uma forma corporal, ou numa mão esquerda e noutra direita; nem por causa do Verbo se cogite de som oral; ou de movimento transitório do ânimo enquanto Deus opera. | |
§ 2 | Não faltam também os que queiram distinguir as duas palavras: “fizeram-me e me plasmaram” de tal modo que dizem ter Deus feito a alma e plasmado o corpo, pois sobre a alma disse Deus: “A alma que criei” (Is 57,16); quanto ao corpo lê-se: “Deus modelou o homem com a argila do solo” (Gn 2,7), como se fosse feito tudo o que se modela, e não, ao contrário, se modele tudo o que se faz. Por isso, é preferível dizer que a alma foi criada e não modelada, porque ela não é corpo, mas espírito; como se não estivesse escrito: “Que formou o espírito do homem dentro dele” (Zc 12,1). Todavia, se ambas as expressões se encontram numa passagem a respeito do homem, e não se nega que ambas as partes do homem, a saber, a alma e o corpo foram criadas por Deus, fica bem distribuir as duas expressões para cada parte, de sorte que se entenda que a alma foi criada, enquanto o corpo foi modelado, ou formado, ou plasmado. Pois, alguns tradutores não quiseram verter: “fizeram-me” e sim: “plasmaram-me”, preferindo expressão menos latina, e seguir servilmente o grego a dizer: finxerunt, porque este verbo (fingo) às vezes costuma significar: simular. | |
§ 3 | Mas se isto se aplica a Adão, do qual se originam todos os homens, uma vez que ele foi criado, qual dos homens não pode dizer que também foi feito, em razão da origem e da descendência? Ou se pode dizer isto com razão: “As tuas mãos me fizeram e me plasmaram”, visto que o homem nasce dos pais, por obra de Deus, pois os pais geram e Deus cria? Com efeito, se o poder conservador de Deus se subtrai, eles perecem. Nada absolutamente, nem dos elementos do mundo, nem dos progenitores, nem dos gérmens nasce, se Deus não operar. Por este motivo, diz o profeta Jeremias: “Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci” (Jr 1,5). Mas, por acaso, Deus fez o homem sem intelecto, seja o primeiro homem, seja cada um dos que nascem, para que se peça: “As tuas mãos me fizeram e me plasmaram. Dá-me intelecto?” O intelecto não é peculiar à natureza humana, de tal modo que por ele o homem se distingue do animal? Ou teria sido a natureza tão deformada ao pecar que mesmo o intelecto nela deve ser reformado? Por causa disso, também o Apóstolo diz a todos os regenerados: “Renovai-vos pela transformação espiritual da vossa mente” (Ef 4,23). De fato, o intelecto pertence à mente. Daí dizer ainda: “Transformai-vos, renovando a vossa mente” (Rm 12,2); quanto aos que não participavam desta regeneração, disse ele: “Isto, portanto, digo e no Senhor testifico. Não andeis mais como andam os demais gentios, na futilidade dos seus pensamentos, com entendimento entenebrecido, alienados da vida de Deus pela sua ignorância e pela dureza dos seus corações” (Ef 4,17.18). A fé purifica os corações (cf At 15,9), para que se abram e cada vez mais se tranqüilizem os olhos interiores, cuja cegueira consiste em não entender. Aliás, quem não entender alguma coisa não pode crer em Deus; contudo, a própria fé o cura a fim de lhe ser possível entender melhor. Efetivamente, há coisas que se não entendermos não acreditamos; e outras, que se não acreditarmos não entendemos. Pois, a fé vem da pregação e a pregação é pela palavra de Cristo (cf Rm 10,17); como, então, alguém pode aderir ao pregador da fé cuja língua, para não falar de tudo mais, não entende? Mas, de outro lado, se não houvesse algo que não podemos entender se não acreditarmos primeiro, não diria o profeta: “Se não acreditardes, não entendereis” (Is 7,9, seg. LXX). Progrida, portanto, nosso intelecto para compreender o que crê, e a fé progrida para crer o que deve entender; e para entender cada vez mais tudo isso, a mente há de aumentar o entendimento. Mas isto não se realiza pelas próprias forças naturais, e sim com o auxílio e o dom de Deus, assim como os remédios, e não a natureza, fazem com que os olhos doentes recuperem a visão. Quem, portanto, assim se dirige a Deus: “Dá-me intelecto para que aprenda os teus mandamentos”, não está inteiramente privado dele, como os animais; nem igualmente, enquanto homem, deve ser contado no número daqueles que “andam na futilidade de seus pensamentos, com entendimento entenebrecido, alienados dos caminhos de Deus” (Ef 4,17.18). Pois, se fosse desse número, não proferiria estas palavras. Não é próprio de uma inteligência limitada saber a quem deve pedir entendimento. E devemos ponderar quanto mais difícil é entender os mandamentos divinos. De fato, quem já entende isso e já disse que guardou as palavras de Deus, ainda pede, para aprendê-los, lhe seja dado entendimento. | |
§ 4 | As palavras vertidas pelos nossos do seguinte modo: “Dá-me intelecto em grego se diz mais brevemente com uma só palavra: sinetison me. “Dá-me intelecto”, sinétison, em latim não se pode exprimir por uma só palavra. Seria como se em latim não se pudesse dizer: cura-me, e se empregassem duas palavras: dá-me a cura conforme aqui se disse: “Dá-me intelecto”; ou: torna-me sadio, como aqui se poderia dizer: faze-me inteligente. Foi assim que o anjo pôde dizer, pois falou a Daniel: “Vim para te dar entendimento” (Dn 10,14); em grego encontra-se o mesmo verbo que neste salmo: sinetisai se. Seria como exprimir-se em latim: dar-te a cura, e em grego: curar-te. O tradutor latino não usaria uma circunlocução, dizendo: dar-te entendimento, como se pode falar com um derivado de saúde: sanar-te, se pudesse dizer, derivado de intelecto: intellectuare te mas se um anjo pode fazê-lo, por que o salmista suplica a Deus que isso lhe aconteça? Ou será porque Deus ordenara ao anjo que fizesse? Sim; pois entende-se que Cristo ordenou ao anjo que o fizesse, na passagem em que o profeta assim se expressa: “Enquanto contemplava esta visão, eu Daniel, procurava o seu significado. Foi quando, de pé diante de mim, vi uma como aparência de homem. E ouvi uma voz humana sobre o Ulai gritanto e dizendo: Gabriel, explica a este a visão” (Dn 8,15.16). E aí, no grego encontra-se a mesma palavra que aqui, no salmo: sinétison. Deus, portanto, por si mesmo porque ele é luz (cf Jo 1,4.9) ilumina as mentes piedosas, a fim de que entendam as coisas divinas que lhes são ditas ou mostradas. Mas, se em vista disso emprega o ministério de um anjo, de fato este pode agir na mente do homem, para que apreenda a luz de Deus e por meio desta entenda; desta forma, diz-se que Deus dá intelecto ao homem, e quase, por assim dizer: pode intellectuare o homem; conforme se diz que alguém traz a luz a uma casa, ou ilumina a casa, quando abre nela uma janela. No entanto, o que penetra e ilumina não é uma luz que lhe seja própria, mas este homem apenas faz ali uma abertura por onde a luz penetra e ilumina. Ora, nem o sol que através da janela ilumina a casa, criou esta mesma casa, nem foi o homem que colocou a janela na casa, ou aquele que lhe ordenou que a colocasse, ou ajudou a quem a colocava, ou fez algo para praticar a abertura por onde infundisse sua luz. Deus, ao contrário, criou a mente racional e intelectual do homem, capaz de apreender a sua luz; e criou o anjo de tal forma que pudesse fazer alguma coisa em vista de auxiliar o homem a apreender a luz de Deus. Deus ainda ajuda a mente humana a receber a operação angélica. Ilumina-a por si mesmo, de tal modo que ela, progredindo, contempla não apenas o que a verdade lhe mostra, mas ainda a própria verdade. Mas como tratamos (entretanto num comentário prolixo) de questões, a meu ver, necessárias, adiemos a explicação dos versículos seguintes deste salmo, e encerremos este SERMÃO 💬 | |
XIX SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 73 O Senhor Jesus pediu a Deus, através do profeta neste salmo, que desse a seu corpo, a Igreja, como se fosse para si mesmo, intelecto para aprender os mandamentos de Deus. Sendo ele para seu corpo, isto é, seu povo, uma vida escondida em Deus (cf Cl 3,3), ele neste mesmo corpo sofre penúria e suplica o que é necessá- rio a seus membros. Diz o salmo: “As tuas mãos me fizeram e me plasmaram. Dá-me intelecto para que aprenda os teus mandamentos”. Se tu formaste, reforma, a fim de se realizar no corpo do Cristo, o que disse o Apóstolo: “Transformai-vos, renovando a vossa mente” (Rm 12,2). | |
§ 2 | 74 “Regozijar-se-ão, ver-me-ão os que te temem”, ou conforme outros códices: “Alegrar-se-ão, porque eu esperei em tuas palavras”, isto é, em tuas promessas, de sorte a serem filhos da promessa, descendência de Abraão, na qual serão abençoadas todas as nações (cf Gn 12,3; 26.4). Mas, quais são os que temem a Deus, e que ao ver-me alegrar-se-ão, porque esperei nas palavras de Deus? Se é o corpo de Cristo, isto é, a Igreja (e dela é esta voz por Cristo, ou nela e originária dela, trata-se, então, da voz de Cristo, como se fosse dele mesmo), acaso não se identifica com aqueles que temem a Deus? Quem será, então, aquele que eles vêem e se alegram? Será que o povo vê a si mesmo e se alegra, e então se diz: “Alegrar-se-ão, ver-me-ão, os que te temem, porque eu esperei em tuas palavras”? Ou segundo outros que traduziram mais exatamente: “esperei sobretudo”, ficando deste modo: “Os que te temem”, ao verem a tua Igreja, “alegrar-se-ão, porque eu esperei sobretudo em tuas palavras”; e no entanto eles mesmos constituem a Igreja, eles que vêem a Igreja e se alegram? Mas por que não disse: os que te temem, ao ver-me, se alegram, mas pôs no tempo presente o verbo: “te temem”, enquanto: “ver-me-ão, alegrar-se-ão”, estão no futuro? Será que o temor é próprio do tempo presente, enquanto a vida humana sobre a terra é uma tentação? Quanto à alegria a que se refere aqui, será quando os justos fulgirem como o sol no reino de seu Pai? (cf Jó 7,1; Mt 13,43). Daí também o que se lê em outro salmo: “Como é grande, Senhor, a abundância de tua doçura reservada para os que a ti temem!” (Sl 30,20). Agora, portanto, enquanto temem, ainda não vêem; mas “verão e alegrar-se-ão”, porque aquele salmo prossegue: “E perfeita para os que em ti esperam”, e o presente salmo: “Porque eu esperei em tuas palavras”, ou esperei sobretudo, de tal modo que na palavra assim composta, vertida por um tradutor mais cuidadoso, entendamos igualmente que Deus “é poderoso para realizar por nós infinitamente além do que pedimos ou pensamos” (Ef 3,20) e tendo em vista que é “além do que pedimos e pensamos”, não basta esperar, mas devemos esperar sobremaneira. | |
§ 3 | 75.76 Mas, como ainda teme a Igreja nesta vida, e ainda não se vê no reino onde haverá alegria segura, mas labuta no meio de perigosas tentações neste mundo, onde escuta o aviso: “Aquele que julga estar em pé, tome cuidado para não cair” (1 Cor 10,12), e considerando a miséria da mortalidade, que pesa como um jugo sobre os filhos de Adão, desde o dia em que saem do ventre de sua mãe, e se estende até o dia da sepultura no seio da mãe comum (cf Eclo 40,1), de tal modo que mesmo os regenerados, devido à concupiscência da carne contra o espírito (cf Gl 5,7), são obrigados a gemer sob tal peso, considerando tudo isso, diz o salmista: “Sei que são justos, Senhor, teus juízos e em tua verdade me humilhaste. Tua misericórdia me console, segundo a tua palavra a teu servo”. A palavra divina de tal modo encarece a misericórdia e a verdade que, além de se encontrarem em muitos trechos, principalmente nos salmos, lê-se em certa passagem: “Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade”. Neste salmo, porém, colocou em primeiro lugar a verdade, que nos humilha pela morte, por juízo daquele cujos julgamentos são justos; em seguida, vem a misericórdia, que nos instaura na vida, por promessa daquele cujo benefício é graça. Por isso, continua o salmista: “segundo a tua palavra a teu servo”, isto é, conforme tua promessa a teu servo. Quer se trate, portanto, da regeneração, quando aqui na terra somos adotados como filhos de Deus, quer da fé, esperança e caridade, essas três virtudes que se instalam em nós, embora provenham da misericórdia de Deus, contudo, nesta vida atribulada e tormentosa, servem de alívio para infelizes e não de alegria para bem-aventurados. Por esse motivo suplica o salmista: “Tua misericórdia me console”. | |
§ 4 | 77 Mas, como depois disto e através disto virão também aquelas coisas, continua o salmo: “Desçam sobre mim as tuas comiserações e viverei”. Viverei verdadeiramente quando nada mais temer que me ocasione a morte. Fala-se aqui de vida sem qualquer acréscimo, e entende-se que é a vida eterna e feliz, única que merece o nome de vida e em comparação com a qual, esta que levamos agora antes deve ser denominada morte do que vida, conforme a palavra do evangelho: “Se queres entrar para vida, guarda os mandamentos” (Mt 19,17). Porventura ele acrescentou: eterna, ou feliz? De igual forma, ao falar da ressurreição da carne, disse o Senhor: “E sairão os que tiverem feito o bem, para uma ressurrieção de vida” (Jo 5,29). Aqui também não disse: eterna, ou feliz. De modo semelhante no salmo: “Desçam sobre mim as tuas comiserações e viverei” e não completou: viverei eternamente, ou viverei feliz, como se fosse coisa diferente viver e viver infinitamente, sem miséria alguma. Mas, por que razão? “Porque tua lei é minha meditação”. Se essa meditação não se realizasse na fé, que opera pela caridade (cf Gl 5,6), nunca poderia alguém por meio dela alcançar a vida. Julguei que devia afirmá-lo, para que não pensasse alguém (depois de decorar toda a lei, e cantá-la freqüentemente, sem calar o que ela ordena, mas também sem viver o que ela manda), cumprir o que lê no salmo: “Porque tua lei é minha meditação”. E assim, pensaria que haveria de obter o que pediu anteriormente por esse mérito, nestes termos: “Desçam sobre mim as tuas comiserações e viverei”. Esta meditação consta dos pensamentos de alguém que ama, e ama tanto que não se esfrie a caridade dessa sua meditação por mais que se acumule a iniqüidade alheia (cf Mt 24,12). | |
§ 5 | 78 Enfim, prossegue: “Confundam-se os soberbos, porque injustamente me fizeram mal; eu, porém, me exercerei em teus preceitos”. Aqui se vê o que o salmista denomina meditação da lei de Deus, ou antes meditação que é a lei de Deus. | |
§ 6 | 79 “Para mim se voltem os que te temem e que conhecem os teus testemunhos”. Em alguns códices tanto gregos como latinos encontramos: “A mim se voltem”, quanto posso julgar, equivale a: “Para mim”. Mas quem é que fala aqui? Qualquer não ousará falar deste modo, ou se ousar, não é ouvido. Efetivamente trata-se daquele que mais acima interpôs sua própria voz, dizendo: “Partilho a sorte dos que te temem”, pois ele se fez participante de nossa mortalidade a fim de nos tornar partícipes de sua divindade; nós nos tornamos participantes de um só para a vida, e ele se fez participantes de muitos para a morte. É para ele que se voltam os que temem a Deus e que co-nhecem os testemunhos de Deus, preditos com tanta antecedência pelos profetas a respeito dele, e que foram apresentados há pouco, por ele mesmo presente, através de seus milagres. | |
§ 7 | 80 “Em tuas justificações, torne-se sem mancha o meu coração, para que eu não seja confundido”. O salmista volta à voz do corpo de Cristo, a saber, de seu santo povo, e pede se torne sem mancha o seu coração, isto é, o coração de seus membros; pelas justificações de Deus, e não por suas forças; isto ele suplica, sem presunção. O pedido: “para que eu não seja confundido” encontra-se mais ou menos nos primeiros versículos deste salmo, onde assim se expressa: “Oxalá se confirmem as minhas veredas na observância de tuas justificações. Então não serei confundido quando contemplar todos os teus mandamentos”. Ali, com uma só palavra indicou sua opção: “Oxalá”; aqui, em termos mais claros exprimiu a prece, dizendo: “Torne-se sem mancha o meu coração”. Nem naquela, nem nesta sentença, ambas com um só sentido, encontra-se a audácia do livre-arbítrio que confia em si contra a graça. Ali disse: “Então não serei confundido e aqui: “para que eu não seja confundido”. Torne-se, portanto, sem mancha o coração dos membros e do corpo de Cristo, pela graça de Deus, através da própria Cabeça deste corpo, isto é, por meio de Jesus Cristo nosso Senhor, no batismo da regeneração, onde foram apagados todos os nossos pecados passados, por auxílio do espírito, por intermédio do qual temos aspirações contrárias à carne (cf Tt 3,5; Gl 5,17), a fim de não sermos vencidos em nossas lutas. Isto como efeito da oração do Senhor, na qual repetimos: “Perdoa as nossas dúvidas” (Mt 6,12). Assim, por meio da regeneração que nos foi concedida, do auxílio no combate, das preces que fazemos, nosso coração se torna sem mancha, para que não sejamos confundidos. Também isso faz parte das justificações de Deus, pois entre outros preceitos foi-nos ordenado: “Perdoai, e vos será perdoado. Dai, e vos será dado” (Lc 6,37.38) | |
XX SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 81 Com o auxílio do Senhor, empreendemos considerar e expor a parte deste extenso salmo, que assim começa: “Desfaleceu-me a alma pelo desejo de tua salvação. Na tua palavra depus a minha esperança”. Nem todo desfalecimento deve ser tido na conta de culpa ou castigo; existe um desfalecimento louvável, ou desejável. Pois, como são entre si contrárias essas duas coisas, avançar e desfalecer (proficere et deficere) usualmente o avanço é tomado em bom sentido, e o desfalecimento no mau sentido, quando não se acrescenta ou se subentende em que se avança ou se desfalece; quando, porém, vem expresso o objeto, pode-se também avançar para o mal e ser bom desanimar. De fato, diz claramente o Apóstolo: “Evita o palavreado vão e ímpio, já que os que o praticam progredirão na impiedade” (2 Tm 2,16). E declarou de alguns: “Progredirão no mal” (2 Tm 3,13). Assim desistir do bem em troca do mal é ação má, do mal em vista do bem, é boa ação. Trata-se do bom desfalecimento no salmo: “Suspira e desfalece a minha alma pelos átrios do Senhor” (Sl 83,3). Igualmente neste salmo não se disse: Desisti de tua salvação: mas: “Desfaleceu pelo desejo de tua salvação”, em vista de tua salvação “a minha alma”. É bom, portanto, este desfalecimento; indica um bom desejo, ainda não satisfeito, mas intenso e veemente. Mas, quem assim se exprime, a não ser a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo de sua particular propriedade (cf 1Pd 2,9), desde a origem do gênero humano até o fim deste século, naqueles que em épocas sucessivas viveram na terra, vivem ou hão de viver, desejando a vinda de Cristo? Atesta-o o santo velho Simeão, que tendo recebido Cristo menino nos braços, disse: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque meus olhos viram a tua salvação”. Fora-lhe revelado por Deus que não veria a morte antes de ver o Cristo do Senhor (Lc 2,29.30.26). É de se crer que o mesmo desejo que possuía este ancião, tinham-no igualmente os santos das épocas precedentes. Por esta razão o próprio Senhor disse a seus discípulos: “Muitos profetas e reis desejaram ver o que vedes e não viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram” (Mt 13,17). É possível reconhecer a voz deles nesta passagem do salmo: “Desfaleceu-me a alma pelo desejo de tua salvação”. Por conseguinte, nem então aquietou-se este desejo dos santos, nem se interrompe agora no corpo de Cristo que é a Igreja, até o fim do mundo, até que venha o Desejado de todas as nações, como foi prometido pelo profeta (Ag 2,8). Além disso, diz o Apóstolo: “Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia; e não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor a sua aparição” (2 Tm 4,8). O desejo de que aqui se trata, portanto, deriva do amor a sua vinda; a respeito desta diz o mesmo Apóstolo: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória” (Cl 3,4). Conseqüentemente, nos primeiros tempos da Igreja, antes do nascimento virginal, houve santos que desejavam a chegada de sua encarnação; quanto aos tempos após a sua ascensão ao céu, existem santos que desejam a sua manifestação para julgar os vivos e os mortos. Este desejo da Igreja, desde o início até o fim do mundo não se amorteceu alguma vez, a não ser enquanto Cristo viveu na carne entre os discípulos na terra, de tal modo que convém aplicar à voz de todo o corpo de Cristo a gemer nesta vida as palavras: “Desfaleceu-me a alma pelo desejo de tua salvação. Na tua palavra pus a minha esperança”. Esta é a promessa. A esperança faz com que pela paciência se espere o que os fiéis ainda não vêem (cf Rm 8,25). Igualmente aqui se encontra no texto grego a palavra que alguns de nossos tradutores preferiram traduzir por supersperavi, esperei sobretudo; sem dúvida, trata-se de esperar mais do que se pode dizer. | |
§ 2 | 82 “Meus olhos se cansaram de esperar por tua promessa, dizendo: Quando me consolarás?” Eis aí novamente, em relação aos olhos, mas olhos interiores, aquele louvável e feliz desfalecimento que não provém da fraqueza do ânimo, mas da força do desejo daquilo que Deus prometeu; por isso: “pela tua promessa”. Como, porém, dizem tais olhos: “quando me consolarás?” a não ser quando se ora e geme, com tal intenção e expectativa? A língua costuma falar; os olhos, não; mas é de certo modo voz dos olhos o desejo do orante. De fato, por dizer: “quando me consolarás?” mostra que sofre com as delongas. Daí também a palavra: “E tu, Senhor, até quando”? (Sl 6,4). Assim sucede ou para que seja mais suave a alegria adiada, ou é o modo de pensar dos que estão desejando algo, porque a demora temporal, embora seja breve para o doador, é longa para aquele que ama. O Senhor, contudo, sabe o que há de fazer e quando, porque ele dispõe tudo com medida, número e peso (cf Sb 11,21). | |
§ 3 | 83 Quando, porém os desejos espirituais são ardentes, sem dúvida esfriam os desejos carnais; por isso continua o salmo: “Assemelho-me a um odre exposto à geada, mas não esqueci as tuas justificações”. Na verdade, pelo odre quer figurar a carne mortal, pela geada o celeste benefício, que entorpece a concupiscência da carne, como que pelo frio; e assim sucede que as justificações de Deus não fogem da memória, porque não se pensa noutra coisa, e acontece o que diz o Apóstolo: “Não procureis satisfazer os desejos da carne” (Rm 13,14). Por isso, tendo dito: “Assemelho-me a um odre exposto à geada” prosseguiu: “mas não esqueci as tuas justificações”, isto é, não me esqueci, porque assim me tornei. Pois, o ardor da cupidez esfriou, enquanto aqueceu-se a lembrança da caridade. | |
§ 4 | 84 “Quantos são os dias de teu servo? Quando farás o julgamento de meus perseguidores?” No apocalipse tal é a voz dos mártires, e é-lhes imposto ter paciência até que se cumpra o número de seus irmãos (cf Ap 6,10). Portanto, interroga o corpo de Cristo sobre a quantidade dos dias que há de passar neste mundo. E para que ninguém pense que a Igreja há de desaparecer da terra antes do fim do mundo, e haverá algum tempo neste século em que a Igreja já não existirá, por isso, tendo feito a pergunta a respeito da duração de seus dias, acrescentou também a menção do juízo, certamente demonstrando que ela há de permanecer na terra até o juízo, no qual será feita justiça a seus perseguidores. Se, porém, alguém se inquietar porque faz a pergunta que fizeram os discípulos, obtendo do Mestre a resposta: “Não vos compete conhecer os tempos que o Pai reservou a seu poder” (At 1,7), por que não havemos de acreditar que nesta passagem do salmo foi profetizado que eles haveriam de fazer esta pergunta e ser realizada a palavra da Igreja, que foi aqui predita com tanta antecedência, por meio de sua interrogação? | |
§ 5 | 85 Quanto ao que segue: “Os iníquos falaram-me de prazeres, mas não são como tua lei, Senhor”, assim preferiram nossos tradutores verter o termo grego: adoleschías que não se pode exprimir em latim numa só palavra. Alguns traduziram por “prazeres”, outros por “coisas fabulosas”, de modo que com razão se julgue que são exercícios, palavras com certo deleite. Estas existem em diversas seitas e profissões, e nas letras seculares, nas chamadas Deuterosis pelos judeus, que contêm, fora do cânon das Sagradas Escrituras, mil fábulas; possui-nas também a loquacidade vã e errônea dos hereges. O salmista quis dar a entender todos os iníquos, que lhe narraram: adoleschías, isto é, exercícios deleitáveis de palavras: “mas não são como tua lei, Senhor”. Nela deleita-me a verdade, não as palavras. | |
§ 6 | 86 Em seguida acrescenta: “Todos os teus preceitos são verdadeiros. Perseguiram-me injustamente. Socorre-me”. O conjunto depende do sentido anterior: “Quantos são os dias de teu servo? Quando farás o julgamento de meus perseguidores?” Tendo em vista perseguir-me, contaram- me os prazeres de suas palavras; mas preferi a tua lei, que mais me aprouve porque “todos os teus preceitos são verdadeiros”, e não estão repletos de vaidade como os sermões deles. Por isso, “injustamente me perseguiram”; foi somente a verdade que perseguiram em mim. Portanto, “socorre- me”, a fim de que combata pela verdade até a morte; porque este é teu mandamento e portanto, é verdade. | |
§ 7 | 87 Tendo assim agido a Igreja, sofreu o que vem em seguida: “Por pouco não me consumiram na terra”, quer dizer, veio grande mortandade de mártires, porque eles confessavam e pregavam a verdade. Mas, como não foi inutilmente que foi dito: “Socorre-me, eu não abandonei teus mandamentos”. | |
§ 8 | 88 E no intuito de que eu perseverasse até o fim, disse: “Conserva-me a vida, segundo a tua misericórdia e eu guardarei os testemunhos de tua boca”. No grego temos: martyria. Não omiti esse pormenor, por ser muito doce este nome de mártires. Sem dúvida, quando se enfurecia tamanha crueldade dos perseguidores, de tal modo que por pouco a Igreja não desaparecia da terra, eles de modo algum prestariam testemunho se não lhes fosse feito o que nesta passagem foi pedido: “Conserva-me a vida segundo a tua misericórdia”. A vida lhes foi conservada de tal sorte que não negaram a vida, amando-a, nem a perderam, negando-a. Desta forma, os que em prol da vida não quiseram abandonar a verdade, morrendo pela verdade, continuaram a viver | |
XXI SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 89 Fala neste salmo alguém que parece aborrecer-se com a mutabilidade humana, que enche a vida presente de tentações; e estando no meio de suas tribulações, que o levaram a dizer mais acima: “Os iníquos me perseguiram”, e: “Por pouco não me consumiram na terra”, sente-se inflamado de desejo pela Jerusalém celeste. Olhou para cima e disse: “Tua palavra, Senhor, permanece eternamente no céu, isto é, entre teus anjos que perseveram na milícia eterna, sem desertarem. | |
§ 2 | 90 Depois de aludir ao céu, o versículo seguinte conseqüentemente trata da terra. Pois, é um versículo dos oito que pertencem a esta letra. A cada uma das letras hebraicas estão sujeitos oito versículos, até o fim deste salmo prolixo. “De geração em geração dura a tua verdade. Fundaste a terra e ela subsiste”. O olhar da mente fiel, depois de contemplar o céu, volta-se para a terra e encontra nela as gerações que não estão no céu, e diz: “De geração em geração dura a tua verdade”. Esta repetição indica todas as gerações, nas quais nunca faltou a verdade de Deus em seus santos, ora em poucos, ora em um número maior, conforme as vicissitudes dos tempos passados ou futuros. Ou quer o salmista dar a entender duas determinadas gerações, uma pertence à lei e aos profetas, outra, porém, ao evangelho. Parece indicar a causa porque jamais faltou a verdade nestas gerações, com essas palavras: “Fundaste a terra e ela subsiste”, dando o nome de terra aos que habitam a terra. Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo (cf 1Cor 3,11). Cristo também não deixou de ser fundamento daquela geração pertencente à lei e aos profetas (cf Rm 3,21). Ou Moisés e os profetas devem ser contados entre os filhos da escrava que gera para a escravidão, e não da livre que é nossa mãe, esta Sião a que dirá um homem: “Sião, minha mãe, ele que nela nasceu e o próprio Altíssimo a fundou”? (cf Gl 4,24; Sl 86,5). É o mesmo que é Altíssimo junto do Pai, e por nossa causa tornou-se humílimo no seio desta mãe. Era Deus acima dela, e fez-se homem, nascendo nela. Sobre tal fundamento, Senhor, “fundaste a terra e ela subsiste”. Firmada em tais alicerces, será inabalável pelos séculos dos séculos (cf Sl 103,5), quer dizer, permanecerá naqueles aos quais darás a vida eterna. Não permanecem, porém, aqueles que a escrava deu à luz, pertencentes ao Antigo Testamento, em cujas figuras, contudo, escondia-se o Novo, porque eles não tinham gosto a não ser pelo objeto das promessas terrenas. Ora, o escravo não permanece sempre na casa, mas o filho aí permanece para sempre (cf Jo 8,35). | |
§ 3 | 91 “Segundo teus decretos permanece o dia”. Tudo isso, de fato, constitui o dia. E este é o dia que o Senhor fez; exultemos e nos alegremos (Sl 117,24); como de dia, andemos decentemente (cf Rm 13,13). “Porque todas as coisas te servem. Todas as coisas”, a saber, das quais falava o salmista. “Todas as coisas” que pertencem a este dia, “te servem”. Quanto aos ímpios, na verdade, dos quais se diz: “À noite comparei vossa mãe” (Os 4,5, seg LXX), não te servem. | |
§ 4 | 92 Em seguida, considera como se libertará esta terra, para permanecer estável, e prossegue: “Se tua lei não fosse a minha meditação, talvez já tivesse perecido em minha humilhação”. Tal a lei da fé; não de uma fé vã, mas a fé que opera pela caridade (cf Gl 5,6). Por meio desta fé se impetra a graça, que torna os homens fortes na tribulação temporal, a fim de que não pereçam numa humilhação mortal. | |
§ 5 | 93 “Jamais hei de esquecer as tuas justificações, porque com elas me deste vida”. Eis a razão por que ele não perece em sua humilhação. Pois, se Deus não vivifica, que é o homem? Ele pôde matar-se, mas não pode vivificar-se. | |
§ 6 | 94 Acrescenta, a seguir: “Sou teu. Salva-me, porque busquei as tuas justificações”. Não se entenda superficialmente o que foi dito: “Sou teu”. Que existe que não seja dele? Talvez se possa pensar que uma vez que se diz que Deus está nos céus exista algo na terra que não seja seu? No entanto, clama outro salmo: “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que ela encerra, o mundo e todos os seus habitantes” (Sl 23,1). Por que então o salmista julgou que podia de certa maneira recomendar-se mais familiarmente a Deus, dizendo: “Sou teu. Salva-me”, senão para dar a entender que para sua infelicidade quis ser dono de si, o que constitui o primeiro e máximo mal da desobediência? É como se dissesse: Quis ser dono de mim mesmo e me perdi; pede, então: “Sou teu. Salva-me, porque busquei as tuas justificações”, não as minhas vontades, que me faziam dono de mim mesmo, mas “as tuas justificações” a fim de começar a ser teu. | |
§ 7 | 95 “Espreitaram-me os pecadores para perder-me, mas compreendi os teus testemunhos”. Que quer dizer: “espreitaram-me para perder-me?” Por acaso armaram-me insídias no caminho, espreitando para matar-me quando passasse? Então receava perecer por morte corporal? De forma nenhuma. E então que é: “espreitaram-me” a não ser queriam que consentisse no mal que eles faziam? Então, de fato, me arruinariam. No intuito de não perecer, disse: “Compreendi teus testemunhos”. Mas soa de modo mais familiar aos ouvidos da Igreja a palavra grega: “compreendi teus martírios”. Apesar de me matarem se não consentisse no que queriam, confessando teus “martírios”, não pereceria; mas eles, querendo perder-me, espreitavam-me para que consentisse, torturavam-me mesmo quando eu confessava. Mas, o salmista não abandonava o que havia compreendido, vendo e contemplando o fim sem fim, se ele perseverasse até o fim. | |
§ 8 | 96 E prossegue: “Vi que toda perfeição tem um limite; teu mandamento é amplo em extremo”. O salmista entrara, de fato, no santuário de Deus (cf Sl 72,17) e entendera os últimos acontecimentos. Nesta passagem, a meu ver, toda perfeição representa combater até a morte pela verdade, e tolerar todos os males por causa do bem supremo e verdadeiro (cf Eclo 4,33). O fim desta perfeição é ter lugar excelente no reino de Cristo, que não tem fim, e possuir com grande honra ali, onde não há mais morte nem dor, a vida adquirida com as dores e opróbrios da perda desta vida. Entendo que o acréscimo: “Teu mandamento é amplo em extremo” indica a caridade. O que adian-taria, de fato, a iminência de qualquer gênero de morte, e no meio de toda espécie de tormentos confessar aqueles testemunhos, se não houvesse caridade naquele que confessava? Ouçamos o Apóstolo: “Ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria” (1 Cor 13,3). O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5). Nesta difusão há amplidão, onde podemos andar sem aperto mesmo pelo caminho estreito, por dom daquele ao qual dissemos: “Alargaste o caminho sob meus pés e minhas pegadas não se apagaram” (Sl 17,37). Amplo é, portanto, o mandamento da caridade, aquele duplo mandamento que nos preceitua amar a Deus e ao próximo. Que pode haver de mais amplo, do que o mandamento do qual depende toda a lei e todos os profetas? (cf Mt 22,40) | |
XXII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 97 Freqüentemente advertimos que aquela louvável amplidão, onde não padecemos angústia alguma no cumprimento dos mandamentos de Deus, representa a caridade. Por este motivo, tendo um versículo deste longo salmo mais acima declarado: “Teu mandamento é amplo em extremo”, num versículo subseqüente mostra como ele é amplo, nos seguintes termos: “Quanto amei a tua lei, Senhor!” É, portanto, o amor que torna amplo o mandamento. Como seria, na verdade, possível amar o que Deus quer que seja amado, e não amar a própria ordem? Pois, esta é a lei. Diz o salmista: “Todo dia é ela a minha meditação”. Eis a que ponto a amei: todo dia ela é a minha meditação; ou antes, conforme está no texto grego: “durante todo dia”, onde melhor se exprime a continuidade da meditação. Entende-se que dura todo tempo, isto é, sempre. Tal amor exclui a cobiça, que muitas vezes contradiz aos preceitos da lei, pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito (cf Gl 5,17); o espírito deve ter aspirações contra ela, e assim amar a lei de Deus a tal ponto que ela seja a sua meditação todo o dia. Pergunta, porém, o Apóstolo: “Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em força da lei da fé” (cf Rm 3,27). Esta é a fé que opera pela caridade (cf Gl 5,6); porque, procurando, pedindo, batendo (cf Mt 7,7), impetra o espírito bom, por meio do qual o amor se derrama em nossos corações (cf Rm 5,5). Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus (cf Rm 8,14), que são acolhidos para se assentarem à mesa no reino dos céus, com Abraão, Isaac e Jacó (cf Mt 8,11), expulso o servo, que não permanece na casa para sempre (cf Jo 8,35), isto é, Israel segundo a carne, ao qual foi dito: “Quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas no reino de Deus, vós, porém, lançados fora. Eles virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no reino de Deus. Eis que há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (Lc 13,28-30). “Os gentios”, porém, como se exprime o vaso de eleição, “sem procurar a justiça, alcançaram a justiça, isto é, a justiça da fé, ao passo que Israel, procurando uma lei de justiça, não conseguiu esta lei. E por quê? Porque não a procurou pela fé, mas como se a conseguisse pelas obras. Esbarraram na pedra de tropeço” (Rm 9,30-32). Assim se tornaram inimigos daquele que fala nesta profecia. | |
§ 2 | 98 Ainda adiciona: “Fizeste-me perceber melhor do que os meus inimigos o teu mandamento, porque ele está eternamente diante de mim”. Pois, eles têm zelo de Deus, mas não é um zelo esclarecido. Desconhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus (cf Rm 10,2.3). O salmista, efetivamente, que percebe melhor que seus inimigos o mandamento de Deus, quer estar na companhia do Apóstolo, não tendo a justiça da lei, mas a justiça que vem de Deus, apoiada na fé de Cristo (cf Fl 3,9); não significa isto que a lei a que aderem seus inimigos não venha de Deus, e sim que não a percebem como a percebe o salmista, que a entende melhor que seus inimigos, aderindo à pedra contra a qual eles tropeçaram (cf Rm 9,32). A finalidade da lei é Cristo para a justificação de todo o que crê (cf Rm 10,4), a fim de serem justificados gratuitamente, por sua graça (cf Rm 3,24), mas não como aqueles que pensam poder cumprir a lei por suas próprias forças, e assim procurar estabelecer segundo a lei de Deus, é verdade, mas sua própria justiça. Ao contrário, como filho da promessa, que tendo fome e sede da justiça (cf Mt 5,6), pedindo, buscando e batendo de certa maneira a mendiga do Pai, a fim de que sendo adotado pelo Unigênito, a receba. Desta forma, quando é que percebe o mandamento de Deus, senão quando o faz perceber desta forma aquele ao qual diz o salmista: “Fizeste-me perceber melhor do que os meus inimigos o teu mandamento?” Com efeito, seus inimigos, como aqueles gerados por Agar, para a escravidão (cf Gl 4,24), pelo cumprimento do mesmo mandamento buscaram obter recompensas temporais; e por isso, ele não estava eternamente em sua presença, como o salmista. Traduziram melhor os que verteram: “eternamente” do que os que escreveram “pelos séculos”, dando a entender que terminados estes séculos já não poderia existir mandamento algum. De fato, não haverá mandamento escrito em tábuas ou livros visíveis; nas tábuas do coração, contudo, permanecerá o amor a Deus e ao próximo eternamente; deste duplo mandamento dependem a lei e os profetas. Aquele mesmo que o prescreveu será a recompensa de seu cumprimento, e o amado servirá de prêmio ao amor, quando Deus for tudo em todos (cf 1Cor 15,28). | |
§ 3 | 99 Qual o sentido do versículo seguinte: “compreendo melhor do que os meus mestres?” Quem é este que compreende melhor do que seus mestres? Quem é este, digo, que ousa classificar-se quanto ao entendimento acima de todos os profetas, que não somente ao falarem a seus coetâneos, mas ainda ao escreverem para os pósteros ensinaram com autoridade tão grande? Com efeito, foi concedida a Salomão tão grande sabedoria que parece estar acima de todos que existiram antes dele (1Rs 3,12). Mas, não é plausível que seu pai Davi aqui pudesse ter profetizado a respeito dele; principalmente por não se poder afirmar de Salomão o que aqui se diz: “Dos meus caminhos desviei meus passos”. Na verdade, pode ser, o que é mais provável, que o profeta prenuncia Cristo, ora quanto à Cabeça, que é o próprio Salvador, ora quanto ao corpo, que é a Igreja, assimilando as palavras proféticas, e levando-o a falar como um só homem, por causa daquele grande mistério, do qual foi dito: “E serão dois numa só carne” (Ef 5,31). Reconheço-o, na verdade, compreendendo mais do que seus mestres, quando aos doze anos, ficou o menino Jesus em Jerusalém e depois de três dias foi encontrado pelos pais no templo, sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e interrogando-os; e todos os que o ouviam ficavam extasiados com a sua inteligência e as suas respostas (cf Lc 2,42). Foi com razão que ele disse, tanto tempo antes, por meio desta profecia: “Compreendo melhor do que os meus mestres”. Refere-se a todos os homens, não a Deus Pai. Dele falou o próprio Filho: “Falo como me ensinou o Pai” (Jo 8,28). Dificilmente se aplicaria isso à pessoa do Verbo; a não ser que se entenda que o Filho aprendeu do Pai, enquanto gerado. Para ele ser não difere de ser ensinado, mas identifica-se ser com ser ensinado; na verdade, daquele de quem recebe o ser, simultaneamente é por ele ensinado. Quanto à natureza humana, a sua condição de servo, facilmente se entende que tenha aprendido do Pai o que este disse (cf Fl 2,7). Estabelecido nessa condição de servo, principalmente enquanto menino, puderam os adultos pensar que devia aprender, mas aquele a quem o Pai ensinou, compreendia melhor do que os seus mestres. “Porque teus testemunhos são minha meditação”. Por conseguinte, compreendia melhor do que seus mestres porque meditava os testemunhos de Deus. Conhecia por si mesmo e melhor do que eles, aquele que afirmava: “Vós enviastes emissários a João e ele deu testemunho da verdade. Eu, no entanto, não dependo do testemunho de um homem; mas falo assim, para que sejais salvos. João foi o facho que arde e ilumina e vós vos quisestes alegrar, por um momento, com sua luz. Eu, porém, tenho um testemunho maior que o de João” (Jo 5,33-36). | |
§ 4 | 100 É razoável pensar que esses mestres se identificam com os anciãos a respeito dos quais diz logo em seguida: “sou mais prudente do que os anciãos”. Em minha opinião, é uma repetição, a fim de ao lermos nos recordarmos daquela idade mencionada no Evangelho, a infância em meio a adultos, isto é, o menino sentado entre os an-ciãos e que compreendia mais que os mestres (cf Lc 2,46). Costuma-se denominar mais jovem e mais velho respectivamente ao menor e ao maior, embora nenhum deles tenha chegado à velhice, ou dela esteja próximo. Se, porém, quisermos pesquisar onde no evangelho se encontra expresso o nome de anciãos, que ele superou no entendimento, encontramos na pergunta feita pelos escribas e fariseus: “Por que os teus discípulos violam a tradição dos antigos? Pois que não lavam as mãos quando comem”. Eis como é acusado de transgressão da tradição dos antigos. Mas, ouçamos o que lhes replicou aquele que era mais prudente que os anciãos: “E vós, por que violais o mandamento de Deus por causa da vossa tradição”? (Mt 15,2). Em seguida, pouco mais adiante, a fim de que não somente ele, Cabeça do corpo, mas também o próprio corpo, seus membros, compreendessem melhor do que os anciãos, cuja tradição de lavar as mãos era preterida, chamou as turbas e disse-lhes: “Ouvi e entedei!” Seria como se dissesse: Entendei também vós melhor do que os anciãos, e deste modo também se manifeste que se trata igualmente de vós o que foi prenunciado: “Sou mais prudente do que os anciãos”. Aplique-se não somente à Cabeça, mas ainda ao corpo, ao Cristo total. “Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isto sim o torna impuro”. Isso não entendiam aqueles anciãos, que ensinavam preceitos a respeito de lavar as mãos, como se fossem grandes mandamentos. Mas, os próprios membros desta Cabeça, que eram mais prudentes que os anciãos, ainda não haviam entendido o que ele lhes falara. Enfim, pouco depois, Pedro tomou a palavra: “Explica-nos esta parábola”. Pensava que era uma parábola o que o Senhor proferira sem empregar figuras. Este lhe respondeu: “Nem mesmo vós tendes inteligência? Não entendeis que tudo o que entra pela boca vai para o ventre e daí para a fossa? Mas o que sai da boca procede do coração e é isto que torna o homem impuro”? (cf Mt 15,10.11.15.16). Também vós ainda não tendes inteligência, e não sois mais prudentes que os anciãos? Mas, na verdade, já agora, tendo ouvido tal mestre, nossa Cabeça, pode cada um de nós dizer: “Sou mais prudente do que os anciãos”. Pois, mesmo ao corpo convém o que o salmista acrescenta em seguida: “Porque busquei os teus mandamentos. Teus mandamentos”, não preceitos humanos; “teus mandamentos”, não os mandamentos dos anciãos, que pretendendo passar por doutores da lei, não sabem nem o que dizem nem o que afirmam (cf 1Tm 1,7). É justa a resposta dada a respeito dos preceitos de Deus que devem ser procurados e entendidos melhor do que a interpretação dos anciãos, àqueles que preferiam a própria autoridade à verdade: “E vós, por que violais o mandamento de Deus por causa da vossa tradição”? (Mt 15,3). | |
§ 5 | 101 Mas, o que vem em seguida não parece convir à Cabeça, e sim ao corpo: “Dos meus caminhos desviei meus passos para observar tuas palavras”. Pois, nossa Cabeça, o próprio Salvador do corpo, não era impelido para algum caminho maligno, devido a desejos carnais, de sorte que lhe fosse necessário desviar dali seus passos, como se dirigissem para lá espontaneamente. Assim agimos nós, quando resistimos a nossos desejos pervertidos, que ele não teve, a fim de não trilharmos as sendas do mal. Deste modo podemos observar as palavras de Deus, se não nos deixamos levar por nossas paixões (cf Eclo 18,30), para alcançar o mal ambicionado; mas antes as refreemos, seguindo as aspirações do espírito contra a carne (cf Gl 5,17), a fim de que elas não nos arrastem nem subvertam, levando-nos por caminhos malignos. | |
§ 6 | 102 “De teus juízos não me aparto, porque em mim gravaste uma lei”. Indica qual o temor que o impediu de dirigir os passos por caminhos malignos. Que significa: “De teus juízos não me aparto” a não ser o que foi dito em outra passagem: “Temi os teus juízos?” Com perseverança acreditei neles, “porque em mim gravaste uma lei”. Tu que me és mais íntimo do que meu íntimo, puseste no interior de meu coração uma lei, gravada por teu espírito, teu dedo. Hei de temê-la, não servilmente sem amor, mas por um temor casto amá-la-ei como filho, e temerei por um casto amor. | |
§ 7 | 103 Observa agora o versículo seguinte: “Quão doces ao meu paladar as tuas palavras!” ou, mais exatamente, segundo o grego: “Teus oráculos. Excedem em suavidade o mel e o favo, em minha boca”. É o Senhor quem dá tal suavidade, a fim de que nossa terra produza seu fruto (Sl 84,13). Assim, pratiquemos o bem de forma verdadeiramente boa, isto é, não por medo carnal de um mal, mas pelo deleite espiritual da boa ação. Alguns códices não trazem a palavra: “favo”, mas a maior parte a contém. A doutrina da sabedoria claramente enunciada assemelha-se ao mel; quanto ao mel retirado do favo representa a doutrina extraída dos mistérios mais ocultos, como se fossem favos de cera, pela boca do pregador, que os mastiga. Ele é doce à boca do coração e não à carnal. | |
§ 8 | 104 Mas, que quer dizer: “Entendi por meio de teus preceitos?” Uma coisa é: “Entendi teus mandamentos”; e outra: “Entendi por meio de teus preceitos”. Não sei o que o salmista quer dizer que entendeu por meio dos mandamentos de Deus; isto é, a meu ver, ele declara que tendo praticado os preceitos de Deus chegou ao conhecimento daquilo que desejara conhecer. “Desejas a sabedoria, está escrito: “Guarda os mandamentos e o Senhor dar-te-á em profusão” (Eclo 1,26). Não queira alguém, ao invés, antes de possuir a humildade da obediência, alcançar o cume da sabedoria, que não pode apreender se não seguir a ordem. Escuta, portanto: “Não procures o que é muito difícil para ti, não investigues o que vai além de tuas forças. Aplica-te sempre àquilo que o Senhor te ordenou” (Eclo 3,21.22). Assim o homem alcança, através da obediência aos mandamentos, a sabedoria das coisas ocultas. Tendo dito: Aplica-te àquilo que o Senhor te ordenou, acrescentou: “sempre”, porque é necessário guardar a obediência para que se alcance a sabedoria, e uma vez esta obtida, não se abandone a obediência. É voz dos membros espirituais de Cristo: “Entendi por meio de teus preceitos”. É com razão que se assim se exprime o corpo de Cristo naqueles de seus membros que, observando os mandamentos, através desta mesma observância, recebem com maior abundância a doutrina da sabedoria. “Por isso detesto todas as sendas da iniqüidade”. Pois, é necessário que odeie toda espécie de iniqüidade o amor da justiça, que é tanto maior, quanto mais inflamado por suavidade mais intensa da sabedoria. Esta é oferecida a quem obedece a Deus, e entende por meio de seus mandamentos | |
XXIII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 105 Estando a perscrutar e comentar, segundo a faculdade que Deus nos concede, os versículos deste salmo, agora começamos por aqueles que trazem em primeiro lugar: “Facho diante de meus passos é tua palavra e luz para minhas veredas”. O sentido da palavra: “Facho” vem repetido no termo: “luz”; e “meus pés” tem sentido igual a: “minhas veredas”. Que será, então: “tua palavra?” Acaso será o Verbo que no princípio estava com Deus, o Verbo que era Deus, e por meio do qual tudo foi feito? (cf Jo 1,1). Não. Pois, aquele Verbo é luz, não é facho. Com efeito, o facho é uma criatura, e não o Criador. Ele se acende por participação na luz imutável. Assim era João, a respeito do qual diz o Verbo que é Deus: “João foi o facho que arde e ilumina” (Jo 5,35). Também o facho é luz; contudo, em comparação com o Verbo, do qual foi dito: “E o Verbo era Deus”, ele não era luz; foi enviado para dar testemunho da luz (Jo 1,7). Mas existia a luz verdadeira, que não é iluminada como os homens, mas que ilumina todo homem. Se também o facho não fosse luz, não diria o Senhor aos apóstolos: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14). Depois de ouvirem isto, podiam pensar que eram iguais àquele que proferia essas palavras, porque ele dissera em certo lugar de si mesmo: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12); para evitar isso, o Senhor afirmou a respeito deles: “Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte. Nem se acende uma lâmpada e se coloca debaixo do alqueire, mas no candelabro e assim ela brilha para todos os que estão na casa. Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens” (Mt 5,14.15). Assim eles saberiam que eram lâmpadas acesas por aquela luz que brilha imutavelmente. Com efeito, criatura alguma, apesar de racional e intelectual, ilumina-se a si mesma, mas acende-se na participação da verdade eterna. Se alguma vez é denominada dia, não é o dia do Senhor, mas o dia que ele fez; e por isso ouve a ordem: “Acercai-vos dele e sereis iluminados” (Sl 33,6). Por causa desta participação, o próprio Mediador, enquanto homem, recebe no Apocalipse o nome de “lâmpada” (cf Ap 21,23). Mas a Encarnação é singular. De nenhum dos santos se pôde dizer, por inspiração divina, ou é lícito de algum modo declarar: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14), a não ser do único Mediador entre Deus e os homens (cf 1Tm 2,5). Por conseguinte, chama-se luz o Verbo unigênito, igual ao Genitor, luz denomina-se também o homem, iluminado por aquele Verbo, e tem igualmente o nome de facho, como João, como os apóstolos, mas nenhum deles é o Verbo; e aquele Verbo que os ilumina não é facho. Sendo assim, que o verbo é este cognominado luz de tal modo que é facho (pois disse o salmista: “Facho diante de meus passos é a tua palavra, e luz para minhas veredas”) senão a palavra comu-nicada aos profetas, ou anunciada pelos apóstolos? Não o Verbo que é Cristo, mas o verbo de Cristo, do qual foi es-crito: “Pois a fé vem da pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rm 10,17). Ora, o apóstolo Pedro compara a palavra profética a uma lâmpada: “Temos, também, por mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em recorrer como a uma luz que brilha em lugar escuro” (2Pd 1,19). Por conseguinte, neste versículo: “Facho diante de meus passos é a tua palavra e luz para minhas veredas”, palavra é a contida em todas as Sagradas Escrituras. | |
§ 2 | 106 “Jurei e determinei guardar os juízos de tua justiça”, como alguém que anda corretamente à luz daquele facho e se mantém nas veredas retas. A segunda palavra expõe o que diz a primeira. Como se perguntássemos o que significa: “Jurei”, o salmista acrescenta: “e determinei”. Chama de juramento o que determinou por um sinal, porque a mente deve manter-se firme na observância dos juízos da justiça de Deus, de tal modo que o que determinou fazer, vale por um juramento. | |
§ 3 | 107 É pela fé que se guardam os juízos da justiça de Deus. Diante de Deus, justo juiz, nenhuma ação boa fica sem merecimento, nem pecado algum se crê que fica impune. Mas, como, por causa da fê, o corpo de Cristo suportou muitos e gravíssimos males, diz o salmista: “Fui humilhado em extremo”. Não disse: Humilhei-me, dando a entender a humildade que é objeto de um preceito, mas disse: “Fui humilhado em extremo”, isto é, sofreu máxima perseguição por ter jurado e determinado guardar os juízos da justiça de Deus. E em vista de que a fé não desfalecesse diante de tanta humilhação, acrescentou: “Senhor, conserva-me a vida, segundo a tua palavra”, isto é, segundo a tua promessa. Pois, também a palavra das promessas de Deus é facho para os passos, e luz nas veredas. Assim também supra, rezou na humilhação da perseguição, pedindo a Deus que lhe conservasse a vida: “Por pouco não me consumiram na terra, mas eu não abandonei teus mandamentos. Conserva- me a vida segundo a tua misericórdia e eu guardarei os testemunhos”, isto é, os martírios, “de tua boca”. Assim se entende que se ele não vivificar dando paciência, segundo a palavra: “É pela perseverança que mantereis vossas vidas” (Lc 21,19), e a respeito do Senhor: “É dele que depende a minha paciência” (Sl 61,6), não será o corpo que morrerá na perseguição, mas a alma, por não guardar os testemunhos e os juízos da justiça de Deus. | |
§ 4 | 108 “Aceita, Senhor, as ofertas voluntárias de meus lábios”, isto é, elas te agradem; não as reproves, aprova-as. Entende-se bem que “ofertas voluntárias de meus lábios” sejam os sacrifícios de louvor, oferecidos por uma confissão de amor e não por temor e forçados; por isso, foi dito: “Oferecer-te-ei sacrifícios espontâneos” (Sl 53,8). Mas, qual o motivo de acrescentar: “E ensina-me teus juízos?” Ele mesmo não havia declarado nos versículos anteriores: “De teus juízos não me aparto?” Como era possível, se não os conhecia? Se os conhecia, como pede aqui: “E ensina-me teus juízos?” Seria semelhante ao versículo: “Trataste com suavidade o teu servo”, depois do qual o salmista roga: “Ensina-me a suavidade?” Explicamos que se trata de palavras de alguém em progresso, que pede seja-lhe aumentado o que já recebera. | |
§ 5 | 109 “Minha alma está sempre em tuas mãos”. Alguns códices trazem: “em minhas mãos”, a maioria, contudo, “em tuas”. E isto é evidente. Pois, a vida dos justos está nas mãos de Deus (Sb 3,1) e nas suas mãos estamos nós, nossas palavras (Sb 7,16). “E não esqueci a tua lei”. Parece afirmar que para alguém não esquecer a lei de Deus é auxiliado pela memória, a alma. Ignoro como se explica: “Minha alma está em minhas mãos”. Na verdade, são palavras de um justo, não de um injusto; de alguém que volta para o Pai, e não que dele se aparta. Não é provável ter o filho mais moço querido possuir em suas mãos a sua alma, quando disse ao pai: “Dá-me a parte da herança que me cabe” (Lc 15,12). Ele estava morto, estava perdido. Ou teria dito o salmista: “Minha alma está em minhas mãos”, apresentando-a a Deus para que lhe desse vida? Conforme dito em outra parte: “A ti, Senhor, elevei a minha alma” (Sl 24,1). Pois, pedira mais acima: “Conserva-me a vida”. | |
§ 6 | 110 “Os pecadores armaram-me laços, mas não me desviei de teus preceitos”. Donde provém isto, senão porque sua alma está nas mãos de Deus, ou nas suas, oferecendo-a a Deus para ser vivificada? | |
§ 7 | 111 “Em herança adquiri teus testemunhos eternamente”. Alguns, querendo verter numa só palavra o termo grego, traduziram: “Herdei”. Embora seja possível, em latim, significaria antes quem deu a herança do que aquele que a recebeu. Então seria hereditatem, herança no acusativo, conforme ditei. Por conseguinte, o sentido genuíno melhor se expressa em duas palavras, quer se diga: “Possuí em herança”, quer: “Em herança adquiri”. Não: hereditatem, mas hereditate. Se perguntarmos, porém, o que adquiriu “em herança”, diz o salmista: “Teus testemunhos”. Que quer dar a entender senão que foi por um dom do Pai, do qual é herdeiro, que se tornou testemunha de Deus, confessou seus testemunhos, isto é, fez-se mártir de Deus e proferiu seus testemunhos, conforme fazem os mártires? Efetivamente, muitos o quiseram, mas não puderam; contudo, nenhum pôde a não ser que tenha querido, porque não poderia se quisesse negar os testemunhos de Deus. Mas a sua vontade é amparada pelo Senhor. Portanto, o salmista atesta que adquiriu estes bens em herança, e isto “eternamente”. Efetivamente, não se trata da glória temporal dos homens que buscam a vaidade, mas da glória eterna daqueles que sofrem por um breve tempo e hão de reinar sem fim. Daí, a continuação do salmo: “Porque são a alegria de meu coração”. Apesar de ser aflição para o corpo, contudo é alegria para o coração. | |
§ 8 | 112 Em seguida, prossegue: “Inclinei meu coração a praticar as tuas justificações continuamente, em vista da retribuição”. Quem assevera: “Inclinei meu coração”, já suplicara: “Inclina meu coração aos testemunhos teus”, a fim de entendermos que isto resulta simultaneamente de um dom divino e da própria vontade. Mas, por acaso, vamos praticar eternamente as justificações de Deus? As boas obras que praticamos para aliviar as necessidades do próximo não podem ser eternas, como também não essas necessidades; mas se as praticamos sem amor, não existe justificação; se, porém, as fazemos com caridade, esta é eterna, e lhe está preparada uma retribuição eterna. O salmista declara que inclinou seu coração a praticar as justificações de Deus, de tal sorte que amando eternamente, mereça possuir eternamente o objeto de seu amor | |
XXIV SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 113 O trecho deste salmo que, segundo a vontade de Deus, vamos comentar, assim começa: “Detesto os iníquos, mas amo tua lei”. Não disse: Detesto os iníquos e amo os justos; ou: Detesto a iniqüidade e amo a tua lei; mas tendo dito: “Detesto os iníquos”, expõe por que motivo, acrescentando: “e amo a tua lei”. Assim demonstra que não detesta a natureza humana enquanto tal, mas a iniqüidade que os torna inimigos da lei que ele ama. | |
§ 2 | 114 Prossegue: “És meu amparo e protetor. Amparo na prática do bem, protetor” na fuga do mal. Quanto ao acréscimo: “Em tua palavra coloquei toda a minha esperança”, fala como filho da promessa. | |
§ 3 | 115 Qual o sentido do versículo seguinte: “Apartai-vos de mim, malignos e sondarei os mandamentos de meu Deus?” Não afirmou: Farei, e sim: “sondarei”. Deseja que os malignos dele se apartem e obriga-os a se afastarem para que possa perfeita e cuidadosamente conhecer os mandamentos. Pois, os malignos o exercitam na prática dos mandamentos, mas o impedem de sondá-los. E isso, não somente ao perseguirem, ou disputarem conosco, mas ainda quando nos prestam obséquios e honras, e se empenham por que nos ocupemos em ajudá-los em suas ambições viciosas e envolventes e que nisso gastemos nosso tempo. Ou então, oprimem os fracos e os obrigam a apresentar-nos suas causas. Não ousamos dizer-lhes: “Homem, quem me estabeleceu juiz ou árbitro da vossa partilha”? (Lc 12,14). Em tais causas, o Apóstolo estabeleceu juízes na Igreja, proibindo aos cristãos entrar em litígio no foro (cf 1Cor 6,1). Dizemos, não àqueles que não roubam o alheio, mas àqueles que reclamam ambiciosamente o que é seu: Acautelai-vos de toda ambição. Colocamos diante de seus olhos aquele homem ao qual foi dito: “Insensato, nessa mesma noite ser-te-á reclamada a alma. E as coisas que acumulaste, de quem serão”? (Lc 12,20). Quando dizemos isto, não se afastam de nós, não nos deixam; mas insistem, pressionam, suplicam, agitam-se, extorquem, de forma que temos de nos ocupar destas coisas que eles amam mais do que sondar os mandamentos de Deus que nós amamos. Oh! com que tédio das turbas turbulentas, com que desejo das palavras divinas foi dito: “Apartai-vos de mim, malignos, e sondarei os mandamentos de meu Deus!” Perdoem-nos os fiéis obedientes que raramente nos procuram por causa de suas questões mundanas, e facilmente atendem a nossos julgamentos; eles não nos esmagam com seus litígios, mas antes nos consolam por causa de sua obediência. Certamente, por causa daqueles que entre si discutem pertinazmente, e quando oprimem os bons, desprezam nossos julgamentos e fazem-nos perder o tempo que devíamos dedicar às coisas divinas, certamente, digo, ser-nos-ia lícito exclamar, com essa expressão do corpo de Cristo: “Apartai-vos de mim, malignos, e sondarei os mandamentos de meu Deus”. | |
§ 4 | 116 Em seguida, depois que fez como se tocasse dos olhos de seu coração as moscas que os atacavam, volta-se para aquele ao qual dizia: “És meu amparo e protetor. Em tua palavra pus a minha esperança”, continuando a prece: “Recebe-me, segundo a tua palavra e viverei; e não me confundas em minha esperança”. Havia dito: “Meu amparo” e pede que seja acolhido cada vez melhor, e seja conduzido àquele bem pelo qual suporta tantas incomodidades; confia que há de viver mais realmente ali do que nos sonhos das coisas humanas. Assim, pois, fala do futuro: “e viverei”, como se não vivesse neste corpo de morte. Pois, o corpo está morto por causa do pecado. E esperando a redenção de nosso corpo, em esperança somos salvos. E se esperamos o que não vemos, é pela perseverança que o aguardamos (cf Rm 8,10.24.25). E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cf Rm 5,5). Clamamos ao Pai a fim de recebê-lo mais amplamente: “Não me confundas em minha esperança”. | |
§ 5 | 117 E como se silenciosamente lhe fosse respondido: Não queres ser confundido em tua esperança? Não interrompas a meditação de minhas justificações; e como o salmista percebe que esta meditação é muitas vezes perturbada pelas fraquezas da alma, disse: “Ajuda-me e serei salvo e meditarei sempre as tuas justificações”. | |
§ 6 | 118 “Desprezaste a todos”, ou conforme parece mais exato, segundo o texto grego: “Reduziste a nada todos os que se apartam de tuas justificações, porque é injusto o seu pensamento”. Ele clamou, portanto: “Ajuda-me e serei salvo e meditarei sempre as tuas justificações”, considerando que Deus reduziu a nada todos os que se apartam de suas justificações. Por que se apartam eles? “Porque é injusto o seu pensamento”. O pensamento aproxima ou afasta. Todas as ações, más ou boas, procedem do pensamento; cada qual se torna inocente pelo pensamento, ou por meio dele se torna réu. Por esta razão foi escrito: “O pensamento santo te guardará” (cf Pr 2,11); e lê-se em outra parte: “Indagar-se-á sobre os planos do ímpio” (Sb 1,9); e o Apóstolo: “E seus pensamentos que alternadamente acusam ou defendem” (Rm 2,15). Como, porém, pode ser feliz quem é infeliz em seus pensamentos? Ou como não será infeliz quem foi reduzido a nada? A iniqüidade é, de fato, grande esterilidade. Com justeza foi dito: “Confundidos sejam todos os iníquos obreiros de coisas vãs” (Sl 24,4), isto é, inutilmente, pois foram reduzidos a nada. | |
§ 7 | 119 Continua o salmo: “Reputei prevaricadores, ou julguei, ou considerei todos os pecadores da terra”. Os nossos traduziram de muitos modos uma única palavra grega: elogisámen; mas é uma sentença profunda, e com o auxílio do Senhor, num comentário mais trabalhado penetraremos em outros sentidos. Pois, o acréscimo: “e por isso amei sempre os teus testemunhos” tornam-na muito mais profunda. Com efeito, diz o Apóstolo: “A lei produz a ira”, e dá a razão deste dito: “Onde não há lei, não há transgressão” (Rm 4,15). Assim demonstra que nem todos são prevaricadores. Pois, nem todos têm a lei. Que nem todos têm a lei, ele o demonstra com evidência noutra passagem: “Todos aqueles que pecaram sem lei, sem lei perecerão” (Rm 2,12). Que quer dizer, então: “Reputei prevaricadores todos os pecadores da terra?” Mas, para hoje é suficiente ter formulado a questão. Em outro sermão, se Deus quiser, a comentaremos, para que a extensão deste não nos obrigue a explicá-la mais rapidamente do que o necessário para ser bem entendida | |
XXV SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 119 Estamos pesquisando a possibilidade de descobrir, se Deus nô-lo conceder, como entender o que declarou este longo salmo: “Prevaricadores”, ou antes os “que estão preva-ricando”, visto que o texto grego traz parabainontas e não parabatas; pequisamos, portanto, como interpretar: “Reputei que estão prevaricando todos os pecadores da terra?” devido à afirmação do Apóstolo: “Onde não há lei, não há transgressão”. Assim falou, distinguindo a promessa, da lei. Ora, a fim de se depreender melhor o sentido, vejamos os versículos anteriores: “De fato, não foi através da lei que se fez a promessa a Abraão, ou à sua descendência, de ser o herdeiro do mundo, mas através da justiça da fé. Porque, se os herdeiros fossem os da lei, a fé ficaria esvaziada da promessa e a promessa sem efeito. Mas o que a lei produz é a ira, ao passo que onde não há lei, não há transgressão. Por conseguinte, a herança vem pela fé, para que seja gratuita e para que a promessa fique garantida a toda a descendência, não só à descendência segundo a lei, mas também à descendência segundo a fé de Abraão, que é o pai de todos nós” (Rm 4,15.13-16). Por que se exprime desse modo o Apóstolo, senão para demonstrar que a lei sem a graça da promessa, não somente não o apaga, mas até aumenta o pecado? Daí provém a palavra: “Ora, a lei interveio para que avultassem as faltas” (Rm 5,20). Mas como através da graça todos os pecados são perdoados, não somente os cometidos fora da lei, mas também os cometidos sob a lei, ele acrescenta: “Mas, onde avulto o pecado, a graça superabundou”. Conseqüentemente, o Apóstolo não considera que são prevaricadores todos os pecadores, mas julga que estão prevaricando somente aqueles que transgridem a lei. “Onde não há lei, não há transgressão”. Assim de acordo com o Apóstolo todo prevaricador é pecador, porque peca sob a lei, mas nem todo pecador é prevaricador, porque alguns pecam estando fora da lei. Portanto, “onde não há lei, não há transgressão”. Na verdade, se ninguém pecasse sem lei, não teria dito o mesmo Apóstolo: “Todos aqueles que pecaram sem lei, sem lei perecerão” (Rm 2,12). Conforme este salmo, porém, se estão prevaricando todos os pecadores da terra, não existe pecado sem prevaricação; mas não há prevaricação sem a lei; portanto, não existe pecado a não ser sob a lei. Quem, pois, afirma: “Reputei que estão prevaricando todos os pecadores da terra”, não quer, absolutamente, que sejam considerados pecadores senão os que tiverem transgredido a lei; com isso, opõe-se àquele que disse: “Todos aqueles que pecaram sem lei, sem lei perecerão”. Segundo seu parecer, na verdade, existem alguns pecadores, apesar de não serem prevaricadores, isto é, que sem “lei pecaram. Onde não há lei, não há transgressão”. No parecer deste, contudo, ninguém é pecador se não transgrediu; porque considera prevaricadores todos os pecadores da terra. Por conseguinte, segundo este ninguém pecou sem lei, porque “onde não há lei, não há transgressão”. Ou talvez havemos de afirmar que, de fato, é verdade que não há transgressão onde não há lei, mas não é verdade que alguns sem lei pecaram; ou que é verdade que alguns pecaram sem lei, mas não é verdade que onde não há lei não possa haver transgressão? No entanto, o Apóstolo afirmou ambas as coisas; por conseguinte ambas são verdadeiras, porque a Verdade afirmou as duas coisas através do Apóstolo. Como, então, pode ser verdade o que neste salmo, sem dúvida pela mesma Verdade, foi dito: “Reputei que estão prevaricando todos os pecadores da terra?” Alguém pode responder-nos: Quem são, então, os que segundo o Apóstolo pecaram sem lei? Pois, nenhum deles deve ser considerado prevaricador, porque segundo o mesmo Apóstolo, “onde não há lei, não há transgressão”. | |
§ 2 | Mas, efetivamente, ao dizer o Apóstolo: “Todos aqueles que pecaram sem lei, sem lei perecerão”, tratava da lei que Deus promulgou através de seu servo Moisés, para seu povo de Israel. O próprio contexto o demonstra. O Apóstolo disputava acerca de judeus e gregos, isto é, gentios que não eram circuncisos, mas incircuncisos; por isso, declara-os sem lei, porque não haviam aceitado a lei que se gloriavam ter recebido os judeus. Daí replicar-lhes: “Ora, se tu te denominas judeu e descansas na lei e te glorias em Deus” (Rm 2,17). Finalmente, devemos ponderar de onde vem esta sentença, para que ele diga: “Todos aqueles que pecaram sem lei, sem lei perecerão”. Tinha dito: “Ira e indignação, tribulação e angústia para toda pessoa que pratica o mal, para o judeu em primeiro lugar, mas também para o grego; glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, para o judeu em primeiro lugar e também para o grego. Porque Deus não faz acepção de pessoas. A isto acrescentou o trecho em questão, nesses termos: “Portanto, todos aqueles que pecaram sem lei, sem lei perecerão; e todos aqueles que pecaram com lei, pela lei serão julgados” (Rm 2,8-12). Ele quer se subentenda por estes últimos os judeus, e por aqueles os gregos, porque falava deles, demonstrando que ambos estavam marcados pelo pecado, e confessando que ambos necessitavam da graça; por isso, assim se exprime: “Pois não há diferença, sendo que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus, e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,22-24). Quais são os que ele assegura terem todos pecado, senão judeus e gregos, dos quais dissera: “Não há diferença”? Pois, a respeito deles afirmara pouco antes: “Acabamos de provar que todos, tanto os judeus como os gregos, estão debaixo do pecado” (Rm 3,9). Por isso, “todos aqueles que pecaram sem lei”, a lei da qual se gloriavam os judeus, “sem lei perecerão; e todos aqueles que pecaram com lei, isto é, os próprios judeus, pela lei serão julgados”. Nem por isso deixarão de perecer, a não ser que acreditem naquele que veio procurar o que estava perdido (cf Lc 19,10). | |
§ 3 | Com efeito, alguns comentadores, mesmo católicos, compreendendo estas palavras do Apóstolo de maneira diferente do que são, pensaram por falta de atenção que ele afirmara perderem-se os que pecaram sem lei; quanto aos que pecaram sob a lei, seriam apenas julgados, sem serem condenados; julgavam que se purificariam com penas transitórias, como aquele do qual foi dito: “Será salvo, mas como que através do fogo” (1 Cor 3,15). Mas isto exatamente se refere ao fundamento de que tratava o Apóstolo quando assim falou. Mais acima ele dissera: “Como bom arquiteto, lancei o fundamento; outro constrói por cima. Mas cada um veja como constrói. Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Cristo Jesus” (1 Cor 3,10.11) etc., até o lugar onde ele disse que se salva como que através do fogo quem sobre este fundamento edifica, não com ouro, prata, pedras preciosas, mas com madeira, feno ou palha; todavia, ele não recusou este fundamento, nem o aban-donou depois de o ter aceitado. Ele prefere este fundamento a todos os prazeres carnais, que o prendem e o fazem sucumbir, quando estivesse diante de ocasião em que devesse abandoná-los ou a Cristo. Se não preferir a Cristo, este não é para ele o fundamento. Na verdade, tem prevalência o fundamento a todas as outras partes posteriores da construção. Considero que os que julgaram não se perderem aqueles dos quais foi dito: “Pela lei serão julgados” (Rm 2,12), foi apenas por que tinham estes a Cristo por fundamento. Deram pouca atenção ao que demonstramos; no entanto, a própria Escritura clama que o Apóstolo o afirma a respeito dos judeus, os quais não têm a Cristo por fundamento. Que cristão há de se assegurar que não se perderá o judeu que não acreditar em Cristo e que será apenas julgado, se o próprio Cristo atesta que foi enviado a este mesmo povo, por causa das ovelhas perdidas de Israel (cf Mt 15,24), e que o dia do juízo será mais tolerável para Sodoma, por que seus habitantes perecerão sem lei, do que para a cidade da Judéia que não acreditou nele, apesar de ter feito ali tão grandes milagres? (cf Mt 10,15). | |
§ 4 | Efetivamente, se o Apóstolo assevera que os outros povos estavam sem lei, a lei que Deus deu a seu povo de Israel por intermédio de Moisés, mas não deu aos demais povos, como interpretaremos a palavra deste salmo: “Reputei prevaricadores todos os pecadores da terra”, a não ser que entendamos haver alguma lei que não foi promulgada através de Moisés, segundo a qual são considerados transgressores os pecadores dos demais povos? Pois, “onde não há lei, não há transgressão”. De que lei se trata, senão daquela mencionada pelo Apóstolo (Rm 4,15): “Quando então os gentios, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela lei, eles, não tendo lei para si mesmos são lei”? (Rm 2,14). Conforme o que ele diz: “não tendo lei, pecaram sem lei, e sem lei perecerão; segundo, porém, a palavra: “para si mesmos são lei”, com razão são julgados transgressores todos os pecadores da terra. Ninguém injuria a outrem se não quer ser ele próprio injuriado; e nisto transgride a lei natural, que não pode ser ignorada, pois faz a outrem o que não quer para si. Porventura o povo de Israel não tinha a lei natural? Tinha, é certo, porque também eram homens. Estariam sem a lei natural se pudessem estar fora da natureza do gênero humano. Por conseguinte, tornaram-se muito mais transgressores da lei divina, pela qual a lei natural foi instaurada, ou aumentada ou consolidada. | |
§ 5 | Com efeito, se entre os pecadores da terra convém contar também as crianças, por causa dos vínculos do pecado original, demonstra-se que também elas, de modo semelhante à transgressão de Adão (Rm 5,14), são ligadas à prevaricação primeira cometida sob a lei dada no paraíso (cf Gn 3,6). Assim, na verdade, sem excessão, são tidos por transgressores todos os pecadores da terra. De fato, “todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23). A graça do Salvador, portanto, encontrou a todos como prevaricadores, uns mais, outros menos. Pois, quanto maior em alguém o conhecimento da lei, tanto menor a escusa do pecado; quanto menor a escusa do pecado, tanto mais manifesta a transgressão. Faltava, portanto, que a justiça, não a sua própria, mas a justiça de Deus, isto é, concedida por Deus, socorresse a todos. Daí a afirmação do Apóstolo: “Da lei vem só o conhecimento do pecado. Não a abolição, mas o conhecimento. Agora, porém, independente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rm 3,20.21). Por este motivo, continua o salmo: “Por isso, amei os teus testemunhos”. De certo modo, ele diz: Uma vez que a lei, seja a promulgada no paraíso, seja a inspirada naturalmente, ou promulgada por escrito, tornou a todos os pecadores da terra prevaricadores, “por isso amei os teus testemunhos”, incluídos em tua lei, por tua graça, de tal modo que em mim não constituem a minha justiça, mas a tua. Pois, a lei serve para nos remeter à graça. Não somente enquanto atesta a lei de Deus a ser manifestada, sem a lei, mas ainda pelo fato mesmo de fazer prevaricadores, enquanto a lei mata (cf 2Cor 3,6); o temor impele a se procurar refúgio no Espírito, pelo qual se apagam todos os pecados, e se inspira o amor das boas obras. “Por isso, amei os teus testemunhos”. Alguns códices trazem: “sempre”; outros, não. Mas se é assim, devemos tomar “sempre” na seguinte acep-ção: enquanto se vive aqui na terra. Aqui de fato são necessários os testemunhos, da lei e dos profetas, a atestarem a justiça de Deus, que nos justifica gratuitamente; aqui também são necessários nossos testemunhos. Por eles, os mártires deram a sua vida terrena. | |
§ 6 | 120 Conhecida, portanto, a graça de Deus, única a libertar da transgressão que se comete com o conhecimento da lei, reza o salmista: “Traspassa com os cravos de teu temor a minhas carnes”. Assim mais literalmente verteram alguns dos nossos, o que em grego se exprime com uma só palavra: kathéloson. Alguns disseram “traspassa”, sem acrescentar: “com cravos”. Tencionando assim traduzir uma só palavra grega por uma só latina, a frase ficou menos explícita, porque “traspassar” não inclui a palavra cravos, enquanto kathéloson não se entende sem incluir o termo cravos. Em latim só se pode exprimir com duas palavras, conforme foi dito: ”Traspassa com cravos (confige clavis)”. Que quer dar a entender, senão o que o Apóstolo afirmou: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo”? (Gl 6,14). E ainda: “Fui crucificado com Cristo. Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl 2,19). Que significa, senão: Não existe em mim justiça que me é própria, provinda da lei, sob a qual me fiz transgressor; mas a justiça de Deus (cf Fl 3,9), isto é, que vem de Deus, está em mim, mas não vem de mim? Assim, efetivamente, vive em mim, não eu, mas Cristo, “que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se gloria, se glorie no Senhor” (1 Cor 1,30; 2Cor 10,17). E ainda: “Pois os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos” (Gl 5,24). Aqui se afirmou que eles “crucificaram a carne”, enquanto no salmo pede-se a Deus que o faça, nesses termos: “Traspassa com os cravos de teu temor as minhas carnes”; deste modo entendamos que o bem que praticamos deve ser atribuído à graça de Deus, pois é Deus quem opera em nós o querer e o operar, segundo a sua vontade (Fl 2,13). | |
§ 7 | Mas, qual o motivo de primeiro dizer: “Traspassa com os cravos de teu temor as minhas carnes”, e depois: “porque temi os teus juízos?” Por que: “Traspassa com o teu temor; porque temi?” Se já tivera medo, ou temia, por que ainda pedia que Deus crucificasse suas carnes com o temor? Seria por desejar crescesse seu temor a ponto de temer quanto bastasse para crucificar suas carnes, isto é, as concupiscências e afetos carnais? Como se dissesse: Leva à perfeição em mim o teu temor; porque temi os teus juízos? Mas existe um sentido mais profundo, que devemos retirar daí, à medida que Deus nos conceder, perscrutando o interior das Escrituras. “Traspassa com os cravos de teu temor as minhas carnes; porque temi os teus juízos”, isto é, reprimi meus desejos carnais com o teu casto temor, que permanece pelos séculos dos séculos (cf Sl 18,10); “porque temi os teus juízos”, ao ameaçar-me a lei, que não me podia dar a justiça, com castigos. Mas este temor, o medo do castigo, é lançado fora pelo amor consumado (cf 1Jo 4,18). Este liberta, não pelo receio da pena, mas pelo deleite da justiça. Pois, o temor que não leva a amar a justiça e sim a temer o castigo, é servil, porque é carnal; portanto, não cru-cifica a carne. Pois, o desejo de pecar permanece vivo, e aparece nas obras quando se conta com a impunidade. Quando se acredita que o castigo seguirá, esse desejo fica latente, mas vivo. Pois, o pecador preferia que fosse lícito, e sente ser ilícito o que a lei proíbe; ele não se deleita espiritualmente no bem, mas teme carnalmente o mal que o ameaça. Pelo temor casto, ao contrário, a própria caridade que expulsa o temor receia pecar, mesmo se houvesse impunidade. Ele não considera haver impunidade, porque por amor à justiça reputa como castigo o próprio pecado. Tal temor crucifica a carne, pois os deleites carnais, proibidos pela letra da lei, mais do que evitados são vencidos pelo deleite dos bens espirituais, e são eliminados até a perfeição, por meio de vitórias maiores. “Traspassa com os cravos de teu temor as minhas carnes; porque temi os teus juízos”; isto é: Dá-me o temor casto. O temor da lei, qual pedagogo, me levou a pedi-lo e por este temor “temi os teus juízos” | |
XXVI SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 121 Agora começamos a considerar e comentar os seguintes versículos deste salmo tão longo: “Pratiquei o juízo e a justiça; não me entregues aos meus opressores”. Não é de admirar que tenha praticado o juízo e a justiça o salmista que mais acima pedira o temor de Deus, temor casto, para traspassar com cravos as suas carnes, isto é, as concupiscências carnais, que costumam perturbar nosso julgamento, impedindo-o de ser reto. Reto ou errado, contudo, usualmente falamos de juízo, conforme se diz no evangelho aos homens: “Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça” (Jo 7,24); nesta passagem, porém, emprega-se o vocábulo juízo de tal modo que se não for reto não deve ser denominado juízo; aliás, não bastaria dizer: “Pratiquei o juízo”, mas ter-se-ia: Pratiquei um juízo reto. Desta forma falou o Senhor Jesus, na locução: “Omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23). Aqui também emprega-se a palavra juízo de tal modo que não seja juízo se for perverso. Encontra-se esse modo de falar em muitas passagens das Sagradas Escrituras, como a seguinte: “Cantar-te-ei a misericórdia e o juízo, Senhor” (Sl 100,1). E o trecho de Isaías: “Deles esperava o juízo, mas o que produziram foi a transgressão” (Is 5,7). Ele não se expressou deste modo: Esperava deles um juízo justo, mas eles emitiram um juízo iníquo. Falou como se pelo fato de ser juízo já fosse justo, e não seria juízo, se injusto. Quanto à justiça, não se costuma falar: boa justiça, ou má justiça, conforme por vezes se diz bom ou mau juízo; mas é boa pelo fato mesmo de ser justiça. Assim, pois, existe o costume de se falar em bom juízo e mau juízo, como se fala em bom juiz e mau juiz; ao invés, não se diz boa justiça ou má justiça, como não se diz: bom justo e mau justo, porque automaticamente é bom, se é justo. A justiça, portanto, é uma virtude da alma grande e especialmente louvável; é ocioso agora falar acerca dela mais longamen-te. Relativamente ao juízo, porém, quando usado no bom sentido conforme o modo de empregar o termo, é a ação derivada desta virtude. Pois, quem possui a justiça, julga com retidão; ou antes, de acordo com o modo de se expressar do salmista, quem tem a justiça, julga: porque não julga, se não julga com retidão. E justiça, neste trecho, representa não a própria virtude, mas assinala a sua operação. De fato, quem opera a justiça no homem, a não ser aquele que justifica o ímpio, isto é, por meio de sua graça transforma o ímpio em justo? Daí provém o dito do Apóstolo: “São justificados gratuitamente, por sua graça” (Rm 3,24). Pratica, portanto, a justiça, isto é, a obra de justiça, quem tem em si a justiça, isto é, a obra da graça. | |
§ 2 | “Pratiquei o juízo e a justiça; não me entregues aos meus opressores”. Quer dizer: Pratiquei um justo juízo; não me entregues àqueles que me perseguem. De fato, alguns códices trazem: “Não me entregues aos que me perseguem”. A expressão grega antídikos foi traduzida por alguns: “opressores”; por outros: “perseguidores”; por outros ainda: “caluniadores”. Admiro-me de que entre todos os códices que tinha à mão nunca li: “adversários”, quando indiscutivelmente o que os gregos chamam de antídikos em latim se denomina adversário. Ao suplicar, portanto, que não seja entregue a seus adversários, que está pedindo o salmista senão aquilo mesmo que rogamos: “Não nos deixes cair em tentação”? (Mt 6,13). O adversário é o referido pelo Apóstolo: “Temendo que o Tentador vos tivesse seduzido” (1 Ts 3,5). A este Deus entrega quem ele abandona. Com efeito, o Tentador não engana aquele a quem Deus não abandona, em sua benevolência, confirmando-o em sua honra (cf Sl 29,7). Daquele, porém, que dissera na prosperidade: “Jamais serei abalado”, Deus esconde a sua face e ele fica perturbado (Sl 29,7.8), e revela-se a si mesmo. Todo aquele, portanto, que tem as carnes crucificadas pelo casto temor de Deus, e não se corrompe pelos atrativos da carne, praticando o juízo e as obras da justiça, deve suplicar para não ser entregue aos adversários, isto é, não ceder pelo medo de sofrer males aos perseguidores, fazendo o mal. Pois, o Senhor, de quem recebe a vitória contra a concupiscência para não ser arrastado pelo prazer, recebe igualmente a força da paciência para não ser esmagado pela dor; pois daquele mesmo modo do qual se diz: “O Senhor dará a suavidade” (Sl 84,13), igualmente se declara: “Dele depende a minha paciência” (Sl 61,6). | |
§ 3 | 122 Continua: “Ampara teu servo para seu bem. Não me (mihi) caluniem os soberbos”. Eles impelem para que eu caia no mal; tu ampara para o bem. Os que verteram: “Não me (me) caluniem”, seguiram literalmente o grego, numa forma menos usada em latim. Ou talvez significaria: “Não me caluniem” o mesmo que dizer: Não me apanhem, caluniando-me? | |
§ 4 | 123 Contam-se muitas espécies de calúnias dos soberbos, que desprezam a humildade cristã. Mas a maior delas estaria aqui, se tomamos a palavra homens no sentido de soberbos. Estes nos caluniam, dizendo que adoramos um morto. Com efeito, a humildade cristã alude à morte de Cristo, e a recomenda como fato divino. Esta calúnia, porém, é comum a ambos os infiéis, isto é, judeus e gentios. Os hereges também possuem suas próprias calúnias, cada qual a sua; têm-nas igualmente os cismáticos. Todos eles se separaram da união dos membros de Cristo pela soberba. Como não é grande e de que espécie a calúnia do próprio diabo, com a qual atacou o justo: “É em vão que Jó teme a Deus”? (Jó 1,9). As calúnias destes soberbos todos, qual veneno das serpentes, são vencidas quando se olha com piedade vigilante e intensa a Cristo crucificado. Prefigurou-o Moisés quando, por ordem compassiva de Deus, levantou no deserto a estátua duma serpente num madeiro, prefigurando a semelhança da carne de pecado que devia ser crucificada em Cristo (cf Jo 3,14; Nm 21,9). Expeliremos todo o vírus destes caluniadores soberbos, olhando para esta cruz salutífera. De certo modo, também o salmista atentamente a contempla e diz: “Meus olhos se enfraqueceram no anseio por tua salvação e a palavra de tua justiça”. Na verdade, Deus fez o próprio Cristo, por causa da semelhança com a carne do pecado, pecado por nós, a fim de nos tornarmos justiça de Deus nele (cf Rm 8,3). O salmista declara que seus olhos enfraqueceram no anseio pela palavra da justiça de Deus, contemplando-a cheio de ardor e sede, enquanto lembrado da fraqueza humana, deseja em Cristo a graça divina. | |
§ 5 | 124 Por isso, vem em seguida: “Trata o teu servo segundo tua misericórdia” e não, de fato, segundo a minha justiça. “E ensina-me as tuas justificações”, aquelas que por meio das quais Deus justifica e não os justos mesmos a si. | |
§ 6 | 125 “Sou teu servo”. Nada me correu bem quando quis ser livre por minha conta e não ser teu servo. “Dá-me in-teligência para conhecer teus testemunhos”. É um pedido que deve ser ininterrupto. Pois, não basta ter recebido inteligência e ter aprendido os testemunhos de Deus, se não os recebermos sempre, e de certa maneira sempre bebermos da fonte da luz eterna. Na realidade, quanto mais alguém se torna inteligente, tanto melhor conhece os testemunhos de Deus. | |
§ 7 | 126 “Para o Senhor é tempo de intervir”. Assim se lê na maioria dos códices e não como consta de alguns: “Ó Senhor”. Que “tempo”, então é esse, ou que intervenção ele deseja “do Senhor?” A que foi citada pouco antes pelo salmista: “Trata o teu servo segundo a tua misericórdia”. Para tal intervenção é que “é tempo para o Senhor”. Em que consiste ela senão na graça revelada em Cristo, em tempo oportuno? Acerca deste tempo diz o Apóstolo: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho” (Gl 4,4). Por isso, acrescente-se também o testemunho do profeta em outra parte: “No tempo do meu favor te respondi, no dia da salvação te socorri” (Is 49,8). E o Apóstolo: “Eis agora o tempo favorável por excelência. Eis agora o dia da salvação” (2 Cor 6,2). Mas, qual o motivo de acrescentar imediatamente, como que desejando mostrar ter chegado o tempo para o Senhor de intervir: “Eles dissiparam a tua lei”? Então, seria tempo para o Senhor de intervir porque os soberbos dissiparam a sua lei; desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus? (cf Rm 10,3). Que significa: “Eles dissiparam a tua lei” senão: Pela iniqüidade da prevaricação, não guardaram a integridade da lei? Convinha, portanto, fosse dada a lei aos soberbos e aos que presumiam da liberdade de seu arbítrio. Depois de transgredi-la, todos os que, arre-pendidos, se humilhassem, correriam em busca do socorro da graça, por meio da fé e não mais por causa da lei. Por conseguinte, abolida a lei, era tempo de ser enviada a misericórdia por intermédio do unigênito Filho de Deus. Ora, a Lei interveio para que avultassem as faltas (cf Rm 5,20). Por essas faltas a lei foi dissipada; e já era ocasião oportuna para a vinda de Cristo, de sorte que onde avultou o pecado, a graça superabundasse. | |
§ 8 | 127 “Por isso amei os teus mandamentos mais do que ao ouro e o topázio”. A graça faz com que por amor se cumpram os preceitos de Deus, que não podiam ser praticados por temor. Na verdade, a graça de Deus, “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5). Esta a razão de dizer o próprio Senhor: “Não vim revogar a lei, mas dar-lhe pleno cumprimento” (Mt 5,17) e o mesmo Apóstolo: “A caridade é a plenitude da lei” (Rm 13,10). Por isso, “mais do que ao ouro e ao topázio”. Isso igualmente se lê em outro salmo: “Muito mais desejáveis do que o ouro e a pedra preciosa” (Sl 18,11). De fato, o topázio é considerado pedra muito preciosa. Os israelitas, no Antigo Testamento, não entendendo a graça oculta, como que escondida sob um véu, figurada quando eles não podiam olhar para a face de Moisés (cf Ex 34,35; 2Cor 3,13), esforçavam-se por cumprir os mandamentos de Deus, tendo em vista uma recompensa terrena e carnal, mas não o conseguiam; porque não amavam os mandamentos, mas outra coisa. Assim, suas obras não eram voluntárias, mas antes um peso imposto contra sua vontade. Ao contrário, quando os próprios mandamentos são amados muito mais do que o ouro e a pedra preciosa, toda recompensa terrena é insignificante em comparação com os próprios preceitos. Não há comparação alguma entre outros bens para o homem e os bens que tornam bom o próprio homem. | |
§ 9 | 128 “Por isso, corrigiam-me todos os teus mandamentos”. Na realidade, eu me corrigia, porque amava e aderia com amor a esses mandamentos retos a fim de me tornar reto também eu. O que vem em seguida é conseqüência do que precede: “Detestei toda senda iníqua”. Como seria possível não detestar uma senda perversa se ele amava o caminho reto? Pois, se ele amava como ouro e pedra preciosa o preceito, detestaria efetivamente tudo o que pudesse causar-lhe prejuízo nessas coisas; assim, uma vez que amava os mandamentos de Deus, detestava a senda da iniqüidade, da mesma forma que os marinheiros têm pavor de um imenso rochedo, contra o qual poderiam naufragar com bens tão preciosos. Para evitá-lo, velejam bem longe dali, aqueles que navegam sobre o madeiro da cruz com as mercadorias dos preceitos di- vinos | |
XXVII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 129 Os versículos do salmo sobre os quais vamos fazer nossa exposição, com o auxílio do Senhor, são os seguintes: “Maravilhosos são os teus testemunhos; por isso minha alma os perscrutou”. Quem pode enumerar ao menos de um modo geral os testemunhos de Deus? O céu e a terra, as suas obras visíveis e invisíveis, mostram de certa maneira os testemunhos de sua bondade e grandeza. O próprio curso ordinário e usual da natureza, por onde decorre o tempo veloz, relativamente a todas as espécies de seres, embora temporais e mortais e certamente despercebidas devido ao costume, se forem observadas por alguém que seja piedoso e reflexivo, dá testemunho ao Criador. Qual deles não é digno de admiração, se os medirmos pela razão e não por hábito? Se, efetivamente, ousarmos considerá-los sob um só olhar, numa única contemplação, não nos sucederá o que disse o profeta: “Considerei as tuas obras e fui tomado de pavor”? (Hab 3,1). No entanto, ele não ficou apavorado, ao admirar os seres, mas afirmou que a causa de serem perscrutados está em que são admiráveis. Tendo dito: “Maravilhosos são os teus testemunhos”, logo prossegue: “por isso minha alma os perscrutou”; tornou-se mais curioso pela dificuldade que encontrou em sondá-los. Pois, quanto mais ocultas as causas, tanto mais se tornam admiráveis os fatos. | |
§ 2 | Se, portanto, encontrarmos alguém que diga estar perscrutando os testemunhos de Deus porque eles são admiráveis, quando se acham cheias deles tanto as coisas visíveis quanto as invisíveis, o universo criado, não refrearíamos dizendo-lhe: “Não procures o que é muito difícil para ti, não investigues o que vai além de tuas forças. Aplica-te sempre ao que te ordenou Deus”? (Eclo 3,22). Mas se nos responder: Estes mesmos testemunhos, o que o Senhor ordenou, e que me mandas meditar, são admiráveis. Eles atestam que ele é o Senhor porque ordena, e é bom e grande porque ordena tais coisas. Acaso ousaremos afastar alguém de perscrutar e não devemos antes exortá-lo a assim agir com empenho e a dar-se quanto puder a esta tarefa? Talvez confessaremos serem os preceitos de Deus testemunhos de sua bondade, mas negaremos que são admiráveis? Seria espantoso que um bom Senhor ordene ações boas? Ao contrário, seria completamente admirável, e mereceria investigação do motivo por que assim é, que tendo Deus que é bom ordenado ações boas, no entanto, tenha dado uma lei boa àqueles que a mesma lei não poderia vivificar, nem proviria a justiça desta boa lei. “Se tivesse sido dada uma lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente, a justiça viria da lei” (Gl 3,21). Por que, então, foi dada uma lei que não poderia comunicar a vida, a da qual não viria justiça alguma? Na verdade, é admirável, é estupendo. Tais são, portanto, os maravilhosos testemunhos de Deus. A estes perscrutou minha alma, porque a respeito deles não se lhe pode dizer: “Não procures o que é muito difícil para ti, mas aplica-te sempre ao que te ordenou Deus”. São as coisas que o Senhor nos ordenou e por isso nelas devemos sempre pensar. Agora vejamos antes o que esta alma que perscrutou terá encontrado. | |
§ 3 | 130 “A exposição de tuas palavras ilumina, e dá inteligência aos pequeninos”. Quem é pequeno senão o humilde e o fraco? Não te ensoberbeças, portanto, não presumas de tuas forças, que são nulas; e compreende como Deus que é bom deu uma lei boa, a qual, no entanto, não pode vivificar. Foi dada a fim de te fazer de grande um pequeno, e te demonstrar que para praticar a lei não tens forças por ti mesmo; e assim, necessitado de socorro e pobre, te refugiasses na graça, clamando: “Tem piedade de mim, Senhor; estou enfraquecido” (Sl 6,3). Foi isso, portanto, que entendeu esse pequeno em sua investigação, e que mostrou o mínimo dos apóstolos, Paulo, isto é, o pequeno, a saber: foi dada uma lei que não podia vivificar, pois “a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem” (Gl 3,22). Faze isto, Senhor, faze isto, Senhor misericordioso; ordena o que não é possível cumprir, ou antes ordena o que só se pode cumprir por tua graça, a fim de que os homens, não podendo por suas próprias forças cumpri-lo, “toda boca se cale”, e ninguém se tenha na conta de grande. Sejam todos pequenos, e todo mundo se reconheça como réu diante de ti; “porque diante dele ninguém será justificado pelas obras da lei, pois da lei vem só o conhecimento do pecado. Agora, porém, independente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rm 3,19-21). São estes os admiráveis testemunhos teus, que a alma deste pequeno perscrutou e encontrou-os, porque se humilhou e fez-se pequeno. Quem é, então, que pratica os teus preceitos como devem ser praticados, isto é, pela fé que age pela caridade, a não ser que o próprio amor seja derramado em seu coração pelo Espírito Santo? (cf Gl 5,6; Rm 5,5). | |
§ 4 | 131 Isto é igualmente o que confessa esse pequeno: “Abri minha boca, para aspirar, porque anelava pelos teus preceitos”. Qual seu anelo senão praticar os preceitos divinos? Mas aquele que era fraco não tinha com que praticar ações fortes, nem o pequeno, grandes feitos; ele abriu a boca, confessando o que por si mesmo não podia fazer. E aspirou o que possibilitaria essa prática; abriu a boca pedindo, procurando, batendo (cf Mt 7,7); e sedento, hauriu o Espírito bom para fazer o que por si mesmo não podia, o preceito santo, justo e bom (cf Rm 7,12). Ora, se nós que somos maus sabemos dar boas dádivas aos nossos filhos, quanto mais o vosso Pai, que está nos céus, dará o Espírito bom aos que lhe pedem? (cf Mt 7,11). Pois, não são os que são conduzidos pelo próprio espírito, mas todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus que são filhos de Deus (cf Rm 8,14). Não significa isso que nada façam, mas o bem que fazem, eles o fazem conduzidos pelo Espírito bom. Efetivamente, tanto mais alguém se torna bom filho quanto mais largamente o Pai lhe concede o Espírito bom. | |
§ 5 | 132 Enfim, o salmista ainda formula pedidos. Com efeito, abriu a boca e aspirou. Mas ainda bate à porta do Pai e procura; bebe, mas quanto mais suave é a bebida, tanto mais ardentemente tem sede. Escuta as palavras deste sedento: “volta para mim o olhar e tem compaixão segundo costumas fazer para com os que amam o teu nome”, isto é, conforme costumas julgar aqueles que amam o teu nome; de fato, a fim de que eles te amassem, tu os amaste primeiro. Assim se exprime o apóstolo João: “Nós amamos a Deus”. E como se alguém interrogasse qual o motivo de amarmos, acrescentou: “Porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). | |
§ 6 | 133 “Dirige meus passos segundo a tua palavra, e nenhuma injustiça me domine”. Que quer dizer senão: Faze-me reto e livre segundo a tua promessa? Ora, quanto mais em alguém reinar a caridade de Deus, tanto menos o dominará a maldade. Que está pedindo a não ser amar a Deus, por um dom seu? Quem ama a Deus, ama a si mesmo e assim pode amar também de forma salutar ao próximo como a si mesmo. Destes mandamentos dependem toda a lei e os profetas (cf Mt 22,40). Que está pedindo a não ser que possa cumprir com o auxílio de Deus os preceitos que ele impôs por uma ordem? | |
§ 7 | 134 Mas, por que diz o salmista: “Liberta-me das calúnias dos homens e guardarei os teus mandamentos?” Se os crimes de que os homens o acusam são reais, não se trata de calúnias; se são falsos, por que ambiciona ser libertado das calúnias, isto é, de acusações falsas, que não podem prejudicá-lo? Com efeito, um crime falso, em que consiste a calúnia, não torna réu o homem, a não ser diante de um juiz humano; quando, porém, é Deus que é o juiz, a ninguém prejudica uma falsa incriminação; o crime não seria inputado ao acusado, mas antes ao acusador. Ou será que aqui se prefigura a oração da Igreja e de todo o povo cristão, que foi libertado das calúnias dos homens, com as quais até agora eram atacados os cristãos? Mas é por isso que observa os mandamentos de Deus? Não seria no meio das próprias calúnias, quando eram inflamadas, que o povo santo observava de modo muito mais glorioso os mandamentos de Deus entre tribulações, sem ceder aos perseguidores, não perpetrando impiedades? Mas, de fato, “Liberta-me das calúnias dos homens e guardarei os teus mandamentos” seria o seguinte: Senhor, infunde-me o teu Espírito e faze com que não me vença o medo das calúnias dos homens e não me afaste de teus mandamentos, nem me arrastem eles a suas obras más. Pois, se agires assim para comigo, isto é, que deste modo não tema as acusações falsas que me lançam, e suas calúnias, tu me libertarás, dando-me paciência; entre as próprias calúnias, hei de guardar os teus mandamentos. | |
§ 8 | 135 “Irradia a luz de tua face sobre teu servo”, isto é, manifesta a tua presença, socorrendo e auxiliando. “E ensina-me as tuas justificações”. Ensina, mas para que as pratique; é o que evidencia outra passagem: “Ensina-me a fazer a tua vontade” (Sl 142,10). De forma alguma se considera que um ouvinte aprendeu, embora conserve na memória o que ouviu, se não o pratica. É palavra da própria Verdade: “Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende vem a mim” (Jo 6,45). Quem, portanto, não faz, isto é, não vem, não aprendeu. | |
§ 9 | 136 O salmista recordando a dor do arrependimento de sua transgressão, diz: “Desceram de meus olhos torrentes de águas, por não haverem observado a tua lei”, isto é, os meus próprios olhos. Pois, em alguns códices se lê: “por não haver eu observado a tua lei. Desceram, portanto torrentes de lágrimas”, isto é, lágrimas abundantes. Pode-se usar este modo de falar: meus pés desceram a montanha; em vez de: pela montanha, ou na montanha; pode-se também usar esta locução: desci a escada, e não: pela escada; ou desci à piscina, e não: desci até a piscina. Por isso, também: desceram, a saber, pela humilhação da penitência. Pois, eles subiram quando por uma soberba contumaz se ergueram e elevaram. Parecia-lhes estar no alto quando ignorando a justiça de Deus, procuraram estabelecer a sua (Rm 10,3). Fatigados, e confusos pela transgressão da lei, desceram chorando daquela altura, a fim de impetrarem antes a justiça de Deus, por sua penitência. Há códices que não trazem: “desceram”, mas “ultrapassaram”. Seria dizer com certo exagero que, chorando, ultrapassaram torrentes de águas; entendamos: “torrentes de águas”, isto é, choraram mais do que manam as águas de suas fontes. Por que, então, se chora assim por não ter guardado a lei, senão a fim de se impetrar a graça? Esta apaga a iniqüidade do penitente e fortalece a vontade do fiel | |
XXVIII SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 13.138 O cantor deste salmo dissera mais acima: “Desceram de meus olhos torrentes de lágrimas, por não haverem observado a tua lei”. Atesta ter chorado muito a sua transgressão. Em seguida, como que dando a razão de seu choro abundante e do grande arrependimento de seu pecado: “És justo, Senhor, e é reto teu juízo. Mandaste observar tua justiça, teus testemunhos e tua verdade sobremaneira”. Todo pecador deve temer de fato esta justiça de Deus, seu reto juízo e a verdade. Baseado nelas, Deus condena todos os que são condenados. Não há absolutamente quem possa queixar-se retamente de sua condenação por um Deus justo. Daí ser justificado o pranto do penitente; porque se fosse condenado seu coração impenitente, na verdade seria condenado com toda justiça. É exato denominar o salmista de justiça os testemunhos de Deus; efetivamente ele se mostra justo ordenando a justiça. Esta é igualmente verdade, porque Deus se revela por tais testemunhos. | |
§ 2 | 139 Mas que significa o que segue: “O meu zelo me fez definhar” ou conforme outros códices: “teu zelo”? Em alguns consta: “de tua casa”, e não: “me fez definhar”, mas: “me consumiu”. Parece-me que o copista emendou de acordo com o outro salmo, onde está escrito: “Devorou-me o zelo de tua casa” (Sl 68,10), que foi citado também no evangelho, conforme sabemos (cf Jo 2,17). Entretanto, alguma semelhança existe entre “me fez definhar” e o que ali se encontra: “devorou-me”. Quanto a “meu zelo”, de vários códices, não oferece dificuldade. Que há de extraordinário se alguém definha devido a seu zelo? Quanto à expressão de alguns: “teu zelo” representa alguém que tenha zelo por Deus e não por si; mas neste caso nada repugna dizer: “meu”. Pois, não é assim que fala o Apóstolo: “Zelo por vós com zelo para Deus?” Pois, ao dizer: “Zelo por vós” não demonstra apenas o seu zelo? Mas uma vez que disse: “para Deus”, isto é, não relativamente a si mesmo e sim a Deus, acrescentou: “com zelo de Deus”. Este zelo, efetivamente, Deus inspira a seus fiéis através de seu Espírito; é efeito do amor e não do ciúme. De fato, qual foi o cuidado que teve o Apóstolo para falar desta maneira? Diz ele: “Desposei-vos a um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura. Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade e da pureza devida a Cristo” (2 Cor 11,2.3). Devorava-o o zelo pela casa de Deus, no entanto, o zelo era para Deus, não para si. Pois, é o esposo que tem zelo pela esposa; o amigo do esposo, porém, deve ter zelo por ela, mas a favor do esposo e não de si. Por conseguinte, entende-se que se trata de um bom zelo, pois o salmista declara em seguida qual a causa deste zelo: “Porque os meus inimigos esqueceram tuas palavras”. Eles, portanto, retribuíam o bem com o mal. Com efeito, o salmista tinha zelo por Deus de maneira tão veemente e ardente que dizia ter definhado por causa deste zelo; os inimigos, porém, por isso mesmo, demonstravam-lhe inimizade; de fato, ele queria que aqueles por quem tinham zelo em sua caridade, amassem a Deus. Não sendo ingrato para com a graça de Deus, que o reconciliara com Deus quando era inimigo, amava até seus inimigos, e por eles tinha zelo para Deus, sofrendo e definhando porque eles estavam esquecidos das palavras de Deus. | |
§ 3 | 140 Em seguida, considerando o salmista as chamas de seu amor à palavra de Deus, disse: “Tua palavra é excessivamente inflamada e teu servo a ama”. Com razão tinha zelo pelo coração impenitente de seus inimigos, que esqueceram as palavras de Deus. Ardia no anelo de os converter ao que ele amava de maneira tão inflamada. | |
§ 4 | 141 “Sou mais jovem e desprezado, mas não esqueço as tuas justificações”. Não sou como meus inimigos, que esqueceram tuas palavras. Parece que o mais moço, lembrado das justificações de Deus, se condói por causa de seus inimigos mais velhos que as esqueceram. Pois, que significa: “Sou mais jovem, mas não esqueço”, senão: Eles, que são mais velhos, esqueceram? Néoteros é termo grego que se encontra igualmente no versículo: “como o jovem corrigirá seu caminho?” Este nome está no comparativo e entende-se bem que a comparação é com um mais velho. Reconheçamos, portanto, aqui, dois povos, que lutavam no seio de Rebeca (cf Gn 25,23), “quando não dependendo das obras, mas daquele que chama, foi-lhe dito: O maior servirá o menor” (Rm 9,13). Mas o mais jovem se diz desprezado; no entanto, tornou-se o maior, “porque o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é” (cf 1Cor 1,28). Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos (cf Mt 20,16). | |
§ 5 | 142 Com justeza, esqueceram as palavras de Deus os que desejaram estabelecer sua justiça, ignorando a justiça de Deus (cf Rm 10,3); quanto ao menor, não esqueceu, porque não quis estabelecer sua própria justiça e sim a de Deus, da qual também diz agora: “A tua justiça é justiça eternamente, e tua lei é verdade”. Como não seria verdade a lei, pela qual vem o conhecimento do pecado, e que dá testemunho da justiça de Deus? Assim se expressa o Apóstolo: “Agora se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas” (cf Rm 3,21). | |
§ 6 | 143 Por causa dela o mais jovem sofreu perseguição da parte do mais velho, de tal forma que o mais moço dis-sesse o que segue: “Surpreenderam-me a tribulação e a angústia. Teus mandamentos são minha meditação”. Enfureçam-se, persigam, contanto que não sejam abandonados os teus mandamentos e sejam amados por efeito destes mesmos mandamentos até esses homens cruéis. | |
§ 7 | 144 “Eterna é a justiça de teus testemunhos. Dá-me inteligência e viverei”. Este mais jovem pede inteligência. Se não a tivesse não entenderia mais que os mais velhos. Mas ele a pede na tribulação e na angústia, a fim de que com-preenda como é desprezível aquilo que os inimigos podem tirar-lhe, perseguindo-o. Afirma que eles o desprezam. Por isso diz: “e viverei”, ponderando que se a tribulação e a angústia chegarem ao ponto de que os inimigos perseguidores o matem, ele viverá eternamente, pois ele antepõe a justiça que permanece para sempre aos bens temporais. Esta justiça na tribulação e na angústia constitui os martírios, testemunhos de Deus que coroam os mátires | |
XXIX SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 145 Quem tem dúvidas de não ser em vão um clamor dirigido ao Senhor pelos que oram, se produzido pela voz do corpo, sem que o coração esteja orientado para Deus? Se, porém, se dá no coração, mesmo silenciando a voz, pode ficar oculto a qualquer outro, não contudo a Deus. Seja, portanto, com a voz corporal, quando necessário, seja em silêncio diante de Deus, ao orarmos, temos de clamar com o coração. O clamor do coração, porém, consiste em grande tensão do pensamento. Na oração, ela exprime um forte afeto daquele que deseja e pede, com esperança de obter o efeito desejado. Na verdade, alguém clama de todo coração quando não pensa em outra coisa. Para muitos tais orações são raras, para poucos são freqüentes; mas não sei se para alguns assim sejam todas as suas orações. O cantor deste salmo menciona tal oração como sua, nesses termos: “Clamei de todo meu coração; escuta-me, Senhor”. Prossegue declarando para que serve este seu clamor: “Procurarei tuas justificações”. Clamou, por conseguinte, de todo seu coração, com o anelo de conseguir do Senhor o seguinte: que procure as suas justificações. Na verdade, pedimos nos dê procurar aquilo que ele nos ordena fazer. Quão longe ainda se encontra de fazer aquele que está à procura! Não é forçoso encontre aquele que procura, ou que faça aquele que encontra. Mas, não pode fazer sem ter encontrado, nem encontrar se não tiver procurado. Mas o Senhor Jesus nos deu grande motivo de esperança, dizendo: “Buscai e achareis” (Mt 7,7). Ainda diz a sabedoria (que é ela, a não ser ele próprio?): “Buscar-me-ão os maus, e não me encontrarão” (Pr 1,28). Em conseqüência, não foi aos maus, e sim aos bons que foi dito: “Buscai e achareis”. Ou antes, foi dito àqueles aos quais na mesma passagem o Senhor declarou um pouco mais adiante: “Ora, se vós que sois maus sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos” (Mt 7,11). Como, então, se diria aos maus: “buscai e achareis”, se de outro lado, foi assegurado: “Buscar-me-ão os maus, e não me encontrarão?” Acaso, queria o Senhor que procurassem outra coisa que a sabedoria, quando prometia aos bons que o encontrariam se o procurassem? Nela, na verdade, se encontra tudo o que hão de procurar aqueles que ambicionam ser felizes. Ali, portanto, estão também as justificações de Deus. Diante disso, resta ainda compreendermos que nem todos os maus deixam de encontrar a sabedoria, se a procurarem; e sim aqueles que são tão maus que a odeiam. Assim, pois, assegurou também: “Buscar-me-ão os maus e não me encontrarão; porque odiaram o saber” (Pr 1,29). Não encontram porquanto a odeiam. Mas de outro lado se odeiam, como procuram, a não ser que não a procuram por si mesma, mas por outra coisa que os malvados amam, e pensam que a alcançarão mais facilmente por meio da sabedoria? Pois, são muitos os que procuram cuidadosamente os ditos da sabedoria, e querem tê-la em conhecimento, mas não na vida. Desta forma não chegam à luz de Deus, que é a sabedoria, por meio dos costumes inspirados pela sabedoria; mas por meio das palavras da sabedoria procuram obter o louvor humano, isto é, a vanglória. Não é, portanto, a sabedoria que procuram, porque não a procuram por si mesma; do contrário viveriam de acordo com o que ela prescreve, mas querem orgulhar-se de suas palavras; e quanto mais se incham de soberba, tanto mais se põem fora de seu âmbito. O salmista, contudo, pede ao Senhor lhe conceda fazer o que ele manda, a fim de que o próprio Senhor opere nele o que ordena. Pois, é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade (cf Fl 2,13). “Clamei de todo meu coração; escuta-me, Senhor. Procurarei tuas justificações”, para praticá-las e não apenas para conhecê-las, para não me assemelhar àquele servo duro que apesar de ter escutado, não obedece. | |
§ 2 | 146 “Clamei, salva-me”; ou conforme alguns códices gregos e latinos: “Clamei por ti. Salva-me”. Que significa: “Clamei por ti”, senão: clamando, eu te invoquei? Mas depois de pedir: “Salva-me”, que acrescenta? “E guardarei teus testemunhos”, a fim de não te negar por fraqueza. Com efeito, pela salvação da alma faz-se o que se conhece ser o dever, até a morte do corpo, se uma prova extrema o exigir, combatendo pela verdade dos testemunhos divinos; onde, porém, não há salvação, a fraqueza sucumbe e abandona-se a verdade. | |
§ 3 | 147 Logo vem algo de obscuro que será preciso expor um pouco mais longamente. “Antecipei a meia noite (in-tempesta nocte), e clamei”. Muitos códices não trazem: intempesta nocte, mas immaturitate, aurora. Encontrei apenas um que traz dupla preposição, isto é, in imma-turitate. Com efeito, imaturidade neste lugar figura o tempo da noite que não está maduro, isto é, oportuno, para se ficar desperto e fazer algo. O povo também costuma dizer: hora importuna. Também, hora importuna da noite, isto é, meia noite, é tempo de descansar. O nome deve derivar do fato de ser então nada oportuno à ação. Os antigos denominavam tempestivo o que é oportuno; e intem-pestivo o que não é oportuno. A palavra origina-se do vocábulo tempo e não de tempestade, que usualmente no latim indica o céu carregado. Embora os historiadores empreguem livremente o termo, dizendo: ea tempestate quando querem designar o tempo, conforme disse o autor egrégio: “Unde haec tam clara repente tempestas. Como de repente o tempo ficou tão luminoso”? (Virg. Aen. 9,19.20). Com este nome não designou um céu carregado de nuvens e ventos, antes um céu brilhante por súbita e esplên-dida serenidade. Em grego encontram-se não uma, mas duas palavras, isto é, a preposição e o nome en aoria. Alguns de nossos tradutores verteram por meia noite, intempesta nocte; muitos por immaturitate, não por duas palavras, mas uma só. O nominativo deste vocábulo é im-maturitas, imaturidade. Outros, por duas palavras, conforme o grego: in immaturitate; aoria de fato é imaturidade, en aoria in immaturitate, como se aquele que disse: intempesta nocte quisesse falar com dupla preposição: in intempesta. Uma preposição representaria em que hora, e a outra pertenceria à composição do nome. Não muda a sentença se alguém disser que fez uma coisa qualquer ao canto do galo, ou no canto do galo; assim não há diferença se o salmista diz ter clamado intempesta ou in intem-pesta nocte, isto é, à meia noite. O texto grego, porém, traz no meio da noite, o que equivale a: na aurora, isto é, no tempo da noite não oportuno, in immaturitate. Até aqui tratamos do termo obscuro; agora vejamos qual o seu sentido. | |
§ 4 | “Antecipei a meia noite, e clamei; esperei em tuas palavras”. Se o referirmos a cada um dos fiéis e ao sentido próprio, muitas vezes acontece que em tal parte da noite o amor de Deus está desperto, e impelido por grande e premente afeto à oração não espera, mas antecipa o tempo de rezar, que costuma ser após o canto do galo. Se, porém, queremos tomar a palavra noite no sentido de todo este século, na verdade é no meio da noite que clamamos a Deus, e antecipamos o tempo marcado de nos dar o que prometeu, conforme se lê noutra parte: “Com a confissão saiamos ao seu encontro” (Sl 94,2). De outro lado se quisermos entender como não oportuno tempo da noite, a época anterior à plenitude do tempo (cf Gl 4,4), isto é, o tempo oportuno quando Cristo se manifestou na carne, nem então a Igreja se calou, mas antecipando esta maturidade, clamou por meio dos profetas, e esperou na palavra de Deus, que é poderoso para realizar o que prometeu, a saber, que na descendência de Abraão seriam abençoadas todas as nações (cf Gn 12,3; 22,18). | |
§ 5 | 148 “Meus olhos adiantam-se ao amanhecer, para meditar as tuas palavras”, diz também a Igreja. Consideremos que amanhecer seria quando nasceu uma luz para os que estavam sentados à sombra da morte (cf Is 9,2). Os olhos da Igreja não se adiantaram para este amanhecer, através dos santos que haviam vivido antes na terra, porque eles previram este futuro, de sorte que meditavam as palavras de Deus, realizadas então e que prenunciavam os fatos futuros, pela lei e os profetas? | |
§ 6 | 149 “Escuta, Senhor, a minha voz, segundo a tua misericórdia e dá-me a vida de acordo com teu juízo”. Pois, primeiro Deus segundo a sua misericórdia retira a pena dos pecados, depois dá a vida aos justos de acordo com seu juízo; não é por nada que se diz nessa ordem: “Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor” (Sl 100,1), visto que, mesmo o tempo da misericórdia não está desprovido de julgamento, de acordo com o que diz o Apóstolo: “Se nos examinássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas por seus julgamentos o Senhor nos corrige, para que não sejamos condenados com o mundo” (1 Cor 11,31); e seu coapóstolo: “É tempo de começar o juízo pela casa de Deus. Ora, se ele começa por nós, qual será o fim dos que se recusam a obedecer ao evangelho do Senhor”? (1Pd 4,17). Mesmo o último tempo do juízo não será sem misericórdia, porque conforme o salmo, “ele te coroa por sua comiseração e misericórdia” (Sl 102,4). Para os maus da esquerda, contudo, o juízo será sem misericórdia porque eles não tiveram misericórdia (cf Tg 2,13). | |
§ 7 | 150 “Aproximaram-se os que me perseguem com iniqüi-dade”, ou, de acordo com alguns códices: “iniquamente”. Aproximaram-se os perseguidores, quando chegam até a atormentar e matar o corpo. Daí a palavra do salmo vinte e um, onde foi profetizada a paixão do Senhor: “Não te afas-tes de mim, porque a tribulação está próxima” (Sl 21,12). Trata-se do que o Senhor padeceu, não quando a paixão estava iminente, mas já presente. Chama a tribulação de próxima, porque na carne; nada, na verdade, de mais próximo da alma do que o corpo a que está unida. Aproxi-maram-se, portanto, os perseguidores, afligindo o corpo da-queles que eles perseguiam. Mas observa o que segue: “Bem longe estão de tua lei”. Quanto mais se aproximaram dos justos perseguidos, tanto mais se distanciaram da justiça. Mas em que prejudicaram aqueles de quem se aproximaram perseguindo, quando é mais profunda a aproximação do Senhor, que de forma alguma os abandona? | |
§ 8 | 151 Enfim, prossegue: “Perto estás, Senhor, e verdade são todos os teus caminhos”. É usual que os santos confessem, atribuindo à verdade de Deus, mesmo as suas tribulações, que merecidamente sofrem. Assim agiram a rainha Ester (cf Est 14,6), o santo profeta Daniel (cf Dn 6,22) os três jovens na fornalha (cf Dn 3,24), e os seus companheiros na santidade. Pode-se questionar como se diz aqui: “Verdade são todos os teus caminhos”, quando se lê em outro salmo: “Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade” (Sl 24,10); mas, para com os santos todos os caminhos do Senhor são misericórdia e todos os caminhos do Senhor são verdade, porque ao julgar ele socorre, e assim não falta a misericórdia; e ao ter compaixão demonstra o que prometeu, de tal forma que não falte a verdade. Para com todos, quer os liberte, quer os condene, todos os caminhos do Senhor, porém, são misericórdia e verdade, porque onde não demonstra compaixão, mostra-se a verdade no castigo. Com efeito, livra a muitos sem o merecerem, mas não condena a ninguém que não o mereça. | |
§ 9 | 152 “Desde o início sei a respeito de teus testemunhos, que os estabeleceste eternamente”. A expressão grega: kat’archás foi vertida por alguns dos nossos: “desde o início”, outros: “no início”, outros ainda: “nos começos”. Mas os que preferiram o plural seguiram servilmente a locução grega. Na língua latina usa-se antes: “desde o início ou no início”, o que o grego parece exprimir no plural, mas de fato é advérbio: kat’archás. Assemelha-se ao que assim dizemos: “Alias” assim faço. Parece plural do gênero feminino, mas é um advérbio que significa: em outra ocasião. Que significa então: “Desde o início sei”, ou antes, para empregar um advérbio: “Inicialmente sei a respeito de teus testemunhos, que os estabeleceste eternamente?” O salmista afirma que os testemunhos do Senhor foram estabelecidos eternamente, e atesta que os conhece desde o início, e que não os conheceu de outra forma senão segundo os mesmos testemunhos. Quais são estes testemunhos, a não ser aqueles em que Deus atestou que haveria de dar a seus filhos um rei eterno? E isto atestou que haveria de dar em seu Unigênito, do qual foi dito: “E o seu reinado não terá fim” (Lc 1,33); deste modo afirmou que os mesmos testemunhos foram estabelecidos eternamente, porque o objeto da promessa é eterno. Pois, por si mesmos os testemunhos então não serão necessários, quando a realidade se mostrar; são requeridos agora os testemunhos para que se acredite. Por isso, bem se entende a palavra: “os estabeleceste”, porque mostram-se verdadeiros em Cristo. Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo (cf 1Cor 3,11). Donde vem, então, que o salmista o conheceu desde o início, a não ser que é a Igreja quem fala? Ela não estava ausente no início do gênero humano. Primícias dela foi o santo Abel, imolado também ele (cf Gn 4,8) em testemunho do futuro sangue do Mediador que devia ser derramado por um ímpio irmão. Pois, no começo também foi dito: “Serão dois numa só carne” (Gn 2,24). Expondo este grande mistério, disse o apóstolo Paulo: “Refiro-me a Cristo e a sua Igreja” (cf Ef 5,32) | |
XXX SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 153 Membro algum do corpo de Cristo se considere alheio a esta voz (porque verdadeiramente diz todo o corpo de Cristo estar nessa condição de humilhação), com a qual inicia-se a leitura deste salmo, que agora vamos comentar: “Vê a minha humilhação e livra-me, porque não esqueci a tua lei”. Nesta passagem, entendemos tratar-se de nenhuma lei de modo mais adequado do que daquela firmemente estabelecida: todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado (cf Lc 14,11;18,14). O soberbo, portanto, é envolvido em males para que se humilhe; o humilde é libertado dos males, para ser exaltado. | |
§ 2 | 154 “Julga a minha causa e resgata-me”. De algum modo repete uma sentença anterior. O que foi dito: “Vê a minha humilhação” corresponde a: “Julga a minha causa”. E quanto a: “porque não esqueci a tua lei” combina com o que está mais abaixo: “por causa de tua palavra dá-me a vida”. A palavra é a lei de Deus, que o salmista não esqueceu, humilhando-se para ser exaltado. A esta mesma exaltação pertence a expressão: “Dá-me a vida”, porque a exaltação dos santos é a vida eterna. | |
§ 3 | 155 “A salvação está longe dos pecadores, porque não buscaram as tuas justificações”. Que te distingue, a ti que disseste: “A salvação está longe dos pecadores?” Que te distingue dos pecadores, de tal sorte que a salvação não esteja longe de ti, e sim contigo? Isto, na verdade, te distingue, que fizeste o que estes não fizeram, isto é, buscaste as justificações de Deus. Que é que possuis que não tenhas recebido? (cf 1Cor 4,7). Não és tu que pouco antes dizias: “Clamei de todo meu coração; escuta-me, Senhor. Procurarei tuas justificações?” Por conseguinte, recebeste o dom de procurá-las daquele a quem clamaste. Ele, portanto, te distingue daqueles que estão longe da salvação, porque não buscaram as justificações de Deus. | |
§ 4 | 156 Também o salmista o verificou. Nem eu o veria, se não o visse em Cristo, se nele não estivesse. Estas pala-vras são, de fato, do corpo de Cristo, de quem somos membros. O salmista o viu, e logo prosseguiu: “Tuas comise-rações são muitas, Senhor”. Até mesmo o fato de procurarmos tuas justificações pertence as tuas comiserações. “Segundo teu juízo vivifica-me”. Sei que mesmo o teu juízo não me atingirá sem tua comiseração. | |
§ 5 | 157 “Muitos me perseguem e afligem; não me afastei de teus testemunhos”. Isto aconteceu. Nós o sabemos, disto nos recordamos, reconhecemo-lo. Toda a terra ficou purpúrea com o sangue dos mártires; o céu floriu com as coroas dos mártires, as Igrejas se ornaram com as memórias dos mártires, os tempos foram assinalados com as festas natalícias dos mártires, aumentam as curas pelos méritos dos mártires. Donde vem isto, a não ser porque foi realizado o que foi predito deste homem espalhado pela terra inteira: “Muitos me perseguem e afligem; não me afastei de teus testemunhos?” Nós o reconhecemos e damos graças ao Senhor nosso Deus. Tu pois, ó homem, tu em outro salmo, tu mesmo disseste: “Se o Senhor não estivesse conosco, decerto nos teriam devorado vivos” (Sl 123,2). Eis porque não te afastaste de seus testemunhos, e chegaste à palma da vocação do alto entre as mãos de muitos que te perseguiam e afligiam. | |
§ 6 | 158 “Vi os insensatos e me consumia”; ou conforme alguns códices: “Vi os transgressores do pacto”; são muitos os que assim contêm. Mas quais os transgressores do pacto, a não ser os que se afastaram dos testemunhos de Deus, não suportando as tribulações dos muitos perseguidores? O pacto consiste em que sejam coroados os vencedores. Não o observaram os que não suportando a perseguição, se afastaram pela negação dos testemunhos de Deus. O salmista os notou e se consumia, porque amava. Trata-se do zelo bom, proveniente do amor e não do ciúme. Em seguida vem qual o ponto em que não observaram o pacto: “Porque não guardaram tuas palavras”. Efetivamente, eles as negaram nas tribulações. | |
§ 7 | 159 O salmista, diferenciando-se deles, recomenda-se, dizendo: “Vê que amei teus mandamentos”. Não afirma: Não neguei tuas palavras, ou teus testemunhos. Isto é que os mártires eram instigados a fazer, e quando não faziam, sofriam tormentos intoleráveis. Mas foi dito onde se encontra o fruto de todos os padecimentos; porque ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria (cf 1Cor 13,3). Relembrando-o disse o salmista: “Vê que amei teus mandamentos”. Em seguida pediu o prêmio: “Senhor, em tua misericórdia dá-me a vida”. Eles dão a morte, tu dá-me a vida. Se o prêmio, que a justiça deve dar, é pedido por misericórdia, quanto mais não será misericórdia que obtenha a própria vitória o prêmio que lhe compete? | |
§ 8 | 160 “A verdade é o princípio de tuas palavras, e todos os juízos de tua justiça são eternos”. Tuas palavras procedem da verdade, e portanto são verazes, e a ninguém enganam. Elas prenunciam a vida ao justo, e a pena ao ímpio. Tais são, na verdade, os eternos juízos da justiça de Deus. | |
§ 2 | Em conseqüência disso, meus irmãos, cantemos este salmo de ascensão para subirmos pelo coração, pois Cristo desceu até nós a fim de podermos subir. Efetivamente Jacó viu uma escada e nela anjos que subiam e desciam; viu ambas as coisas (cf Gn 28,12). Podemos pensar que os que subiam representavam aqueles que se aperfeiçoam; e os que desciam, os que desistem de avançar. De fato, encontramos isso no povo de Deus: uns progridem, outros desanimam. A escada podia figurá-los, mas talvez seja melhor entender que tanto os que sobem como os que descem na escada são os bons. Não foi sem razão que não se disse: os que caem, e sim: os que descem. Há grande diferença entre descer e cair. Pois Adão caiu (cf Gn 3,5), e Cristo desceu. Um caiu, outro desceu. Um caiu por soberba, outro desceu por misericórdia. Não foi somente ele que desceu. Na verdade, do céu foi apenas ele que desceu, mas muitos santos, imitando-o, descem até nós, e desceram até nós. Com efeito, o Apóstolo habitava em determinada altura do coração, quando dizia: “Se nos deixamos arrebatar para fora do bom senso, foi por causa de Deus” (2 Cor 5,13). Se fora arrebatado, fora arreba-tado por causa de Deus. Fora arrebatado para além de toda fragilidade humana, além do tempo, de tudo que desvanece nascendo e morrendo, de tudo o que é transitó-rio; de coração habitava em certa inefável contemplação, quanto possível; sobre ela declara que ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir (cf 2Cor 12,4). Mas, apesar de não poder ele te repetir o que viu, podia até certo ponto ver o que não te podia explicar. Por con-seguinte, se quisesse permanecer sempre naquilo que via, sem poder exprimi-lo, não te levaria até onde poderias ver. Que fez ele, então? Desceu. Pois, disse naquela passagem: “Se nos deixamos arrebatar como para fora do bom senso, foi por causa de Deus; se somos sensatos, é por causa de vós” (2 Cor 5,13). Que quer dizer: “somos sensatos?” Falamos de tal modo que podeis compreender. Pois, também Cristo assim fez, ao nascer e sofrer, a fim de que os homens pudessem falar a seu respeito, pois é fácil para o homem falar sobre o homem. Quanto a Deus, quando falará o homem sobre ele assim como ele é? Facilmente, porém, fala o homem sobre outro homem. Tendo em vista que os grandes descessem até os pequenos e só lhes falassem daquele que é grande, o Senhor que era grande se fez pequeno, a fim de que os grandes falassem aos pequenos sobre ele. Ouvistes agora isso mesmo que digo ao lermos o Apóstolo. Se estáveis atentos, ele assim se exprimiu: “Não vos pude falar como a homens espi-rituais, mas tão-somente como a homens carnais” (1 Cor 3,1). Por conseguinte, fala aos espirituais nas alturas; mas para se dirigir aos carnais, ele desce. Pois, para saberdes que ao descer fala daquele que desceu, eis como fala João, permanecendo em si mesmo: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No prin-cípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1-3). Apreende, se podes; to-ma-o, é alimento. Mas, hás de responder-me: Na verdade, trata-se de um alimento; eu, porém, sou uma criancinha, devo tomar leite para tornar-me capaz de comer alimento sólido. Então, se deves nutrirte de leite, mas isto é um alimento sólido que ele passe pelo corpo da mãe antes de vir a teus lábios. A mãe come o alimento, que ela passa à criança, transformando-o através de seu corpo, em leite. Assim também, o alimento dos anjos, o Senhor, o Verbo se fez carne (Jo 1,14), se transformou em leite. Ora, diz o Apóstolo: “Dei-vos a beber leite, não alimento sólido, pois não o podíeis suportar” (1 Cor 3,2). Portanto, oferecendo leite desceu até os pequenos; e tendo descido, deu aquele que havia descido. Porquanto disse: “Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1 Cor 2,2). Se dissesse apenas: “Jesus Cristo”, podia ser Jesus Cristo segundo a divindade, segundo o Verbo junto de Deus, Filho de Deus Jesus Cristo; mas a este, isto é, dito desta maneira, os pequenos não entendem. Como, então, entendem os que tomam leite? “Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”. Suga aquilo em que ele se transformou por tua causa, e crescerás para alcançar aquilo que ele é. Existem, portanto, alguns que descem e outros que sobem. Naquela escada há os que sobem e os que descem (cf Gn 28,12). Quais são os que sobem? Os que avançam até o sentido espiritual. Quais os que descem? Aqueles que, embora de acordo com as possibilidades humanas, gozam da inteligência das coisas espirituais, no entanto, descem até os pequenos, falando-lhes de sorte que possam compreender, e nutridos de leite, tornam-se capazes e idôneos relativamente ao alimento espiritual. Isaías, irmãos, também ele foi do número dos que desceram até nós; evidenciam-se os degraus pelos quais desceu. Assim falou a respeito do Espírito Santo: “Sobre ele repousará o espírito de sabedoria e de discernimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor” (Is 11,2-3). Começou pela sabedoria e desceu até o temor. Da mesma forma que aquele que ensinava desceu da sabedoria até o temor, tu que aprendes, se progrides, sobe do temor à sabedoria. Pois está escrito: “O temor do Senhor é o princípio do saber” (Pr 1,7). Agora, pois, escutai o salmo. Eis: tenhamos diante dos olhos um homem que está para subir. Onde está a ascensão? “No coração”. De onde há de subir? Da humildade, isto é, do “vale de lágrimas”. Aonde vai subir? Ao que é inefável, e apesar disso foi dito: “Ao lugar que ele determinou” (Sl 83,7). | |
§ 3 | Ora, ao começar alguém a dispor-se a subir, ou falando mais claramente, ao começar o cristão a pensar em progredir, passa a sofrer das línguas dos adversários. Quem ainda não as suportou, evidentemente ainda não progrediu; quem não as suporta, também não se empenha em avançar. Quer saber o que estamos dizendo? É preferível que experimente algo que possamos ouvir juntos. Comece a aperfeiçoar-se, comece a querer subir, a desprezar as coisas terrenas, frágeis, temporais, a considerar por nada a felicidade deste mundo, a pensar somente em Deus, a não se alegrar com os lucros, nem se abater pelos prejuízos, a vender o que é seu e distribuir entre os pobres e seguir a Cristo, vejamos como há de sofrer das línguas dos detra-tores e de muitas contradições, e o que é pior, dos que o aconselham, afastando-o da salvação. Quem aconselha a outrem, aconselha em vista da salvação, aconselha o que lhe é útil; estes, porém, aparentam aconselhar, mas afastam da salvação. É língua enganosa a daquele que aparenta dar um bom conselho, e oferece o veneno mortal. Estando, portanto, para subir, primeiro suplica a Deus, contra as línguas dos detratores; de fato, diz: “Clamei ao Senhor na minha tribulação e ele me atendeu”. Em que o atendeu? Colocou-o na escada para subir. | |
§ 4 | 2 E como foi ouvido, estando já para subir, como reza? “Senhor, livra a minha alma de lábios iníquos e de língua enganadora”. Qual a língua enganadora? A astuta, que aparenta aconselhar e é perniciosa e prejudicial. São aqueles que perguntam: E tu hás de fazer o que ninguém fez? Somente tu és cristão? E se demonstrares que outros assim agiram, e leres o evangelho onde o Senhor o ordenou, e leres os Atos dos Apóstolos, que haverão de responder as línguas enganadoras e os lábios iníquos? Talvez não consigas realizá-lo; é grande demais o que empreendes. Uns assustam e procuram impedir, outros louvam e pressionam ainda mais. Pois, esta vida é tal que já encheu o mundo; tão grande é a autoridade de Cristo que nem um pagão ousa censurá-lo mais. Lê, e não pode criticar a palavra: “Vá, vende os teus bens e dá aos pobres. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). Ele não pode contradizer a Cristo, não pode contradizer ao evangelho, não pode repreender a Cristo; volta-se a língua enganosa a um louvor que tolhes. Se louvas, exorta. Por que coíbes com o elogio? Seria melhor injuriares do que louvares dolosa-mente. Que dirias como injúria? Não faças isto. É uma vida horrível, uma vida má. Mas, ciente de que a autoridade do evangelho pode atacar tuas palavras, mudas a espécie de dissuasão. Elogiando falsamente, tu me afastas da aprovação verdadeira. Ou antes, louvas a Cristo, enquanto me afastas dele, dizendo: Que é isto? Eles agiram assim, mas talvez não te seja possível. Começas a subir e cais. Parece admoestar. É uma serpente, uma língua enganadora, venenosa. Reza contra ela, se queres subir, e dize a teu Deus: “Senhor, livra a minha alma de lábios iníquos e de língua enganadora”. | |
§ 5 | 3.4 Teu Senhor te interroga: “Qual será a tua paga, o teu castigo, ó língua enganadora?”, isto é, que tens contra a língua enganadora, que podes opor-lhe, como te armas contra esta língua, “qual será a tua paga, o teu castigo?” Interrogou raciocinando, pois ele mesmo responderá à pergunta. Responde a si mesmo prosseguindo: “Aguçadas setas de poderosos, com carvões devoradores, ou devastadores”. Quer digas: “devoradores ou devastadores” (com efeito, nos vários códices as versões são diversas) o sentido é idêntico. Vede: chamam-se carvões devoradores, porque devorando e devastando facilmente levam à desolação. Que carvões são estes? Entenda, V. Caridade, primeiro que significam as setas. “Aguçadas setas de poderosos” são as palavras de Deus. São lançadas e traspassam os corações; mas quando os corações forem traspassados pelas setas da palavra de Deus, excita-se o amor e não se ocasiona a morte. O Senhor sabe lançar setas de amor. E ninguém lança setas de amor de maneira mais bela do que aquele que lança palavras. Ou melhor, traspassa o coração do amante, para que seja estimulado; traspassa para fazê-lo amar. As palavras que proferimos são setas. E os carvões devastadores, que são eles? Não basta lançar palavras contra a língua enganadora e os lábios iníquos, é pouco empregar apenas palavras; são neces-sários os exemplos. Os exemplos são carvões devoradores. V. Caridade receba resumidamente uma explicação acerca da denominação de carvões devoradores. Em primeiro lugar, notai como apresentar exemplos. A língua enganadora, por mais enganadora que fosse, nada mais pôde dizer senão o seguinte: Não podes fazer isto; é demais para ti empreender tal coisa. Tomaste o preceito evangélico, tens a seta, mas ainda não possuis os carvões. É provável que somente as setas nada consigam contra a língua enganadora, mas existem os carvões. Por exemplo, Deus começa a interrogar-te: Tu não podes; por que ele pode? Por que outro pôde? Por acaso és mais delicado do que aquele senador? És mais fraco do que este ou aquele, quanto à saúde? És mais débil que as mulheres? As mulheres puderam, os homens não podem? Ricos frágeis puderam, pobres não podem? Mas, responde ele, eu pequei demais, sou grande pecador. Enumeram-se também aqueles que pecaram muito, e amaram tanto mais quanto mais lhes foi perdoado, conforme disse o evangelho: “Mas aquele a quem pouco foi perdoado mostra pouco amor” (Lc 7,47). Tendo sido enumerado tudo isso, e foram nomeados aqueles que puderam assim agir, o opositor recebe uma seta no coração, e ainda por cima carvões devastadores, e assim elimina-se nele a cogitação terrena. Que significa: elimina-se? É reduzido à desolação. Existiam nele árvores más frondosas, muitos pensamentos carnais, muitos amores mundanos; são queimados pelos carvões devoradores, para que se purifique o lugar desolado, e nesse terreno limpo Deus levante seu edifício. Ali o diabo arruinara tudo, ali se edifica Cristo; pois enquanto o diabo ali permanece, Cristo não pode ser ali edificado. Atingem-no os carvões desoladores, e derrubam o que fora mal edificado, e no local limpo levanta-se a estrutura da felicidade perpétua. Observai, então, por que são denominados carvões. Efetivamente, os que se convertem ao Senhor, de mortos que estavam ressuscitam. Quanto aos carvões que se acendem, antes de serem acesos, estavam apagados. Carvões apagados são mortos; ao arderem, chamam-se vivos. Como exemplo, muitos malvados, convertidos para o Senhor, são chamados carvões. Escutas as exclamações dos homens: Eu o conheci. Era um ébrio, um criminoso, um freqüentador do circo ou do anfiteatro, um fraudulento. Agora, como serve a Deus, como se tornou inócuo! Não te espantes; é um carvão. Alegras-te por verificares que está vivo aquele que choravas como morto. Mas quando o louvas enquanto vive, se sabes louvar, aproxima o carvão morto para que ele se acenda; isto é, a qualquer que ainda está lento para seguir a Deus, aplica-lhe o carvão que estava apagado, e tenha a seta da palavra de Deus, e o carvão devorador, para que vás ao encontro dos lábios iníquos e da língua enganadora. | |
§ 6 | 5 Como continuar? O salmista já recebeu setas ardentes, receba ainda carvões devoradores. Já repeliu a língua enganadora e os lábios iníquos, já subiu os degraus, começa a progredir, mas ainda vive entre maus, entre iníquos; a eira ainda não foi ventilada. Imagina que ele se fez trigo; acaso já está no celeiro? Ainda é necessário que fique angustiado no meio de muita palha. Quanto mais avança, tanto mais observa escândalos no povo. Ora, se não avança, não vê os pecados; se não é cristão genuíno não nota os falsos. Com efeito, irmãos, o Senhor nô-lo ensina com aquela parábola do trigo e do joio. “Quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu também o joio”, isto é, os maus não se revelam a quem não se tornar bom, porque “quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu também o joio”. Por conseguinte, o salmista já começou a progredir, começou a ver os maus e muita maldade que antes não conhecia, e clama pelo Senhor: “Ai de mim! porque minha peregrinação muito se prolongou!” Muito me afastei de ti. Minha peregrinação se estendeu por regiões longínquas. Ainda não alcancei a pátria, onde não conviverei com malvado algum; ainda não cheguei à companhia dos anjos, onde não temerei escândalos. Por que motivo, porém, ainda não estou ali? “Porque minha peregrinação muito se prolongou”. Ser estrangeiro é peregrinar. Chama-se estrangeiro quem habita em terra estranha, não em sua cidade. “Minha peregrinação muito se prolongou”. Por que região longínqua? Às vezes, meus irmãos, quando alguém é peregrino, vive no meio de homens melhores dos que os que se encontram em sua pátria; mas o mesmo não acontece, quando peregrinamos longe daquela Jerusalém celeste. Pois, o homem emigra e por vezes sente-se bem na peregrinação. Encontra amigos fiéis no estrangeiro, quando na pátria não conseguia encontrá-los. Tinha inimigos que o expulsaram da pátria; e ao peregrinar, encontrou o que não tinha na pátria. Tal não sucede naquela pátria que é Jerusalém, onde todos são bons. Todo aquele que de lá se afasta, acha-se no meio de maus; e não pode apartar-se dos maus a não ser voltando à companhia dos anjos, para permanecer ali de onde se afastara. Lá todos são justos e santos. Gozam do Verbo de Deus, sem leitura, sem letras; o que encontramos escrito em páginas, vemos ali na face de Deus. Que pátria! Pátria grandiosa, e infelizes são os peregrinos longe daquela pátria. | |
§ 7 | Mas as palavras do salmista: “Minha peregrinação muito se prolongou” são especialmente da própria Igreja que labuta nesta terra. Trata-se da voz daquele que clama dos confins da terra, e que diz em outro salmo: “Dos confins da terra clamei a ti” (Sl 60,3). Qual de nós clama dos confins da terra? Nem eu, nem tu, nem ele. Mas, dos confins da terra clama toda a Igreja, toda a herança de Cristo. De fato, a Igreja é sua herança, e dela foi dito: “Pede-me e dar-te-ei as nações por herança, e como propriedade os confins da terra” (Sl 2,8). Se, portanto, a propriedade de Cristo vai até os confins da terra, e a posse de Cristo são todos os santos, e todos os santos constituem um só homem em Cristo, porque a unidade santa se acha em Cristo, este homem único diz: “Dos confins da terra clamei a ti, quando meu coração se angustiava” (Sl 60,3). A longínqua peregrinação deste homem, portanto, se realizou no meio de gente má. E como se alguém lhe dissesse: Com quem moras, de fato, para gemeres? “Minha peregrinação muito se prolongou”. Mas, que importa, se ele estava entre bons? Se estivesse entre homens bons não diria: “Ai de mim!” Ai é uma interjeição de infelicidade, é uma palavra que indica calamidade e infelicidade; contudo, com esperança, porque já aprendeu a gemer. Pois, muitos são infelizes e não gemem; peregrinam e não querem voltar. O salmista quer voltar, reconhece a infelicidade de sua peregrinação. Uma vez que a reconhece, volta; e começa a subir, porque começou a cantar o cântico gradual. Então, onde é que geme? Habita no meio de que povo? “Habitei nas tendas de Cedar”. Certamente não entendestes esta palavra, porque é hebraica. Que significa: “Habitei nas tendas de Cedar?” Cedar, quanto me lembro dos sentidos das palavras hebraicas, significa trevas. Cedar vertido para o latim seria trevas. Sabeis que Abraão teve dois filhos, mencionados pelo Apóstolo, que diz serem imagem dos dois testamentos: um era da escrava, outro da livre. Filho da escrava era Ismael; de Sara, a livre, era Isaac que ela recebeu, devido a fé, quando já não havia esperança. Ambos da descendência de Abraão, mas não ambos herdeiros de Abraão (cf Gl 4,22; Gn 16,15; 21,2). Um, nascido de Abraão, contudo não herda; outro herda, e não era apenas filho, mas também herdeiro. Ismael figura todos os que cultuam carnalmente a Deus. A estes pertence também o Antigo Testamento, pois assim se exprime o Apóstolo: “Vós que quereis estar debaixo da lei, não ouvis a lei? Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da serva e outro da livre. Isto dito em alegoria. Elas, com efeito, são as duas alianças” (Gl 4,21.22.24). Quais são as duas alianças? Uma é o Antigo Testamento, outra o Novo. O Antigo Testamento proveio de Deus, e o Novo Testamento veio de Deus, como de Abraão nasceram Ismael e Isaac. Mas Ismael para o reino terreno, Isaac para o celeste. Por este motivo, o Antigo Testamento possui promessas terrenas, uma Jerusalém terrena, uma Palestina terrena, um reino terreno, uma salvação terrena, a sujeição dos inimigos, a abundância de filhos, a fecundidade da terra. Todas essas são promessas terrenas. Entendem-se em figura espiritualmente como a Jerusalém terrena era sombra do reino celeste, e o reino terreno sombra do reino dos céus. Ismael em sombra, Issac na luz. Se, portanto, Ismael estava em sombra, não é espantoso que ali houvesse trevas. As trevas são sombras mais espessas. Por conseguinte, Ismael nas trevas, Issac na luz. Todos aqueles que na Igreja terrena pedem a Deus uma felicidade terrestre, ainda pertencem a Ismael. São eles que contradizem aos homens espirituais que avançam; são detratores, têm lábios iníquos e línguas enganadoras. Contra estes rogou o salmista ao subir, e foram-lhe dados carvões devoradores e setas aguçadas de poderosos. Vive ainda no meio deles, até que seja ventilada toda a eira. Por isso declara: “Habitei nas tendas de Cedar”. Pois as tendas de Ismael são denominadas de Cedar. Assim narra o livro do Gênesis (Gn 25,13), afirma que Cedar pertence a Ismael. Portanto, Isaac na companhia de Ismael, isto é, os que pertencem a Isaac, vivem entre os que pertencem a Ismael. Os primeiros querem subir, os segundos os empurram para baixo; os primeiros querem voar para Deus, os segundos procuram arrancar-lhes as asas. Pois, assim diz o Apóstolo: “Mas como o nascido segundo a carne perseguia o nascido segundo o espírito, assim também agora” (Gl 4,29). Os espirituais, portanto, padecem perseguição da parte dos carnais. Mas que diz a Escritura? “Expulsa esta serva e seu filho, para que o filho desta serva não seja herdeiro com meu filho Isaac” (Gn 21,10). Quando se realizará a palavra: “Expulsa”? Quando se começar a ventilar a eira. Agora, porém, antes que seja expulso: “Ai de mim! porque minha peregrinação muito se prolongou. Habitei nas tendas de Cedar”. E expõe-nos quais são os que pertencem às tendas de Cedar. | |
§ 8 | 6 “Por muito tempo a minha alma andou peregrina”. Disse que a alma andava peregrina a fim de não pensares numa peregrinação corporal. O corpo viaja por vários lugares, a alma peregrina pelos afetos. Se amas a terra, peregrinas longe de Deus; se amares a Deus, sobes para junto dele. Exercitemo-nos no amor a Deus e ao próximo, para voltarmos à caridade. Se cairmos na terra, murchamos e apodrecemos. Aquele que havia caído, desceu até ele, a fim de subir. Entendendo qual era o tempo de sua peregrinação, afirmou que estava como peregrino nas tendas de Cedar. Por quê? “Porque minha peregrinação muito se prolongou”. Subiu do lugar onde era peregrino. Não peregrina corporalmente, nem foi corporalmente que subiu. Mas de onde subiu? “Em seu coração preparou ascensões” (Sl 83,6). Se subiu pelo coração, somente a alma peregrina sobe por ascensões do coração. Mas até que chegue, “por muito tempo a minha alma andou peregrina”. Onde? “Nas tendas de Cedar”. | |
§ 9 | 7 “Com os que odeiam a paz fui pacífico”. Para ouvirdes a verdade, irmãos caríssimos, não podereis provar a realidade do que cantais, se não começardes a praticar o que cantais. Por mais que eu o diga, por mais que exponha, sejam quais forem as palavras que empregue, nada disso entra no coração daquele que não o observa. Começai a agir, e vereis o que falamos. Então, à cada pala-vra correm as lagrimas, então o salmo é cantado, e o coração faz o que o salmo canta. Pois, quantos não fazem ressoar sua voz e ficam mudos no coração? E de quantos calam os lábios, e clamam os afetos? Porque os ouvidos de Deus estão atentos ao coração do homem. Como os ouvidos do corpo atendem à boca do homem, assim os ouvidos de Deus, ao coração humano. Muitos de boca fechada são atendidos e muitos com grandes clamores não são ouvidos. Devemos rezar com os afetos, e dizer: “Por muito tempo a minha alma andou peregrina. Com os que odeiam a paz fui pacífico”. Como nos dirigimos a estes hereges, senão com as palavras: Reconhecei a paz, amai a paz? Afirmais que sois justos. Mas se fôsseis justos, gemeríeis no meio das palhas, sendo grãos. Mas os grãos estão na Igreja católica, e são grãos verdadeiros; por isso toleram a palha, até que a eira seja ventilada. No meio da palha os grãos clamam: “Ai de mim! porque a minha peregrinação muito se prolongou. Habitei nas tendas de Cedar”. Habitei com as palhas. Mas como da palha se levanta muita fumaça, assim também das trevas de Cedar. “Habitei nas tendas de Cedar. Por muito tempo a minha alma andou peregrina”. É a voz do trigo que geme no meio das palhas. Assim falamos aos que odeiam a paz e dizemos: “Com os que odeiam a paz fui pacífico”. Quais são os que odeiam a paz? Os que rompem a unidade. Se não odiassem a paz, permaneceriam na unidade. Mas, uma vez que se separaram, para serem justos, para não se misturarem com os injustos, esta voz é nossa ou deles: escolhe de quem é. A Igreja católica declara: Não se deve abandonar a unidade, não é lícito dividir a Igreja de Deus. Posteriormente Deus julgará maus e bons. Se agora os maus não podem ser separados dos bons, devem ser suportados por algum tempo. Os maus podem estar conosco na eira; no celeiro, não. E talvez os que hoje parecem maus, amanhã serão bons; e os que hoje se orgulham de sua bondade, amanhã se revelarão maus. Todo aquele, portanto, que humildemente suporta por algum tempo os maus, chegará ao repouso eterno. Esta é a voz da Igreja católica. Qual a voz daqueles que não entendem nem o que falam, nem o que afirmam? (cf Tg 1,7). “Não toqueis nada do que seja impuro” (Is 52,4), e “Todo aquele que tocar alguma coisa impura, ficará impuro” (Lv 22,4.6). Separemo-nos, não nos misturemos com os maus. E nós lhes respondemos: Amai a paz, amai a unidade. Não sabeis de quantos bons vos afastais, quando os caluniais como sendo maus? Ficam furiosos, fora de si, quando assim falamos; procuram até matar-nos. Muitas vezes manifestam-se seus ataques, suas insídias. Enquanto vivemos no meio de suas ciladas e lhes dizemos: Amai a paz, eles se tornam nossos adversários. Essa palavra então não é nossa: “Com os que odeiam a paz fui pacífico? Quando lhes falava, sem motivo me impugnavam”. Que significa, irmãos: “me impugnavam?” E não basta; acrescentou: “sem motivo”. Acaso pedimos àqueles aos quais dizemos: Amai a paz, amai a Cristo: Amai-nos e honrai-nos? Mas dizemos: Honrai a Cristo. Não queremos que nos prestem honras e sim a Cristo. Pois, que somos nós ao lado do apóstolo Paulo? Ele, no entanto, falava àqueles pequenos, que os maus queriam, persuadindo-os mal, separar da unidade, levando-os a aderir ao cisma. Que lhes dizia? “Paulo terá sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo”? (1 Cor 1,13). É isso mesmo que dizemos também nós: Amai a paz, amai a Cristo. Pois, se amam a paz, amam a Cristo. Ao exortarmos: Amai a paz, dizemos: Amai a Cristo. Por quê? Porque o Apóstolo afirma acerca de Cristo: “Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só” (Ef 2,14). Se, portanto, Cristo é a paz, porque “de ambos os povos fez um só”, por que vós de um só fizestes dois? Como sois pacíficos se quando Cristo faz um só de dois, vós fazeis de um só, dois povos? Mas ao falarmos assim, somos pacíficos com aqueles que odeiam a paz; no entanto, os que odeiam a paz, ao lhes falarmos, impugnavam-nos sem motivo. | |