ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 109 | ||
§ 109:1 | Ơ Ó Deus do meu louvor, não te cales; | |
§ 109:2 | ᵽ pois a boca do ímpio e a boca fraudulenta se abrem contra mim; falam contra mim com uma língua mentirosa. | |
§ 109:3 | ⱻ Eles me cercam com palavras de ódio, e pelejam contra mim sem causa. | |
§ 109:4 | ⱻ Em paga do meu amor são meus adversários; mas eu me dedico à oração. | |
§ 109:5 | ꭆ Retribuem-me o mal pelo bem, e o ódio pelo amor. | |
§ 109:6 | Ꝓ Põe sobre ele um ímpio, e esteja à sua direita um acusador. | |
§ 109:7 | Ꝙ Quando ele for julgado, saia condenado; e em pecado se lhe torne a sua oração! | |
§ 109:8 | ᶊ Sejam poucos os seus dias, e outro tome o seu ofício! | |
§ 109:9 | Ƒ Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva a sua mulher! | |
§ 109:10 | Ɑ Andem errantes os seus filhos, e mendiguem; esmolem longe das suas habitações assoladas. | |
§ 109:11 | Ꝋ O credor lance mão de tudo quanto ele tenha, e despojem-no os estranhos do fruto do seu trabalho! | |
§ 109:12 | Ɲ Não haja ninguém que se compadeça dele, nem haja quem tenha pena dos seus órfãos! | |
§ 109:13 | ᶊ Seja extirpada a sua posteridade; o seu nome seja apagado na geração seguinte! | |
§ 109:14 | ⱻ Esteja na memória do Senhor a iniqüidade de seus pais; e não se apague o pecado de sua mãe! | |
§ 109:15 | Ɑ Antes estejam sempre perante o Senhor, para que ele faça desaparecer da terra a memória deles! | |
§ 109:16 | Ꝓ Porquanto não se lembrou de usar de benignidade; antes perseguiu o varão aflito e o necessitado, como também o quebrantado de coração, para o matar. | |
§ 109:17 | ⱴ Visto que amou a maldição, que ela lhe sobrevenha! Como não desejou a bênção, que ela se afaste dele! | |
§ 109:18 | Ɑ Assim como se vestiu de maldição como dum vestido, assim penetre ela nas suas entranhas como água, e em seus ossos como azeite! | |
§ 109:19 | ᶊ Seja para ele como o vestido com que ele se cobre, e como o cinto com que sempre anda cingido! | |
§ 109:20 | ᶊ Seja este, da parte do Senhor, o galardão dos meus adversários, e dos que falam mal contra mim! | |
§ 109:21 | ɱ Mas tu, ó Deus, meu Senhor age em meu favor por amor do teu nome; pois que é boa a tua benignidade, livra-me; | |
§ 109:22 | ᵽ pois sou pobre e necessitado, e dentro de mim está ferido o meu coração. | |
§ 109:23 | ⱻ Eis que me vou como a sombra que declina; sou arrebatado como o gafanhoto. | |
§ 109:24 | Ꝋ Os meus joelhos estão enfraquecidos pelo jejum, e a minha carne perde a sua gordura. | |
§ 109:25 | ⱻ Eu sou para eles objeto de opróbrio; ao me verem, meneiam a cabeça. | |
§ 109:26 | Ɑ Ajuda-me, Senhor, Deus meu; salva-me segundo a tua benignidade. | |
§ 109:27 | ᶊ Saibam que nisto está a tua mão, e que tu, Senhor, o fizeste. | |
§ 109:28 | Ɑ Amaldiçoem eles, mas abençoa tu; fiquem confundidos os meus adversários; mas alegre-se o teu servo! | |
§ 109:29 | ⱴ Vistam-se de ignomínia os meus acusadores, e cubram-se da sua própria vergonha como dum manto! | |
§ 109:30 | ɱ Muitas graças darei ao Senhor com a minha boca; | |
§ 109:31 | Ꝓ Pois ele se coloca à direita do poder, para o salvar dos que o condenam. | |
O SALMO 109 | ||
SERMÃO AO POVO 💬 | ||
§ 1 | À medida do dom do Senhor, que nos estabeleceu ministros de sua palavra e de seus sacramentos, a fim de vos servir segundo a abundância de sua misericórdia, empreendemos considerar e comentar este salmo que acabamos de cantar, curto pelo número de palavras, mas grande pelo peso das sentenças, auxiliados por aquele que vos tornou atentos. Faça-nos ele, de acordo com nossa capacidade, idôneos para desincumbir-nos desta tarefa. Viva a vossa alma e esteja vigilante na presença de Deus. Deus determinou uma época para fazer suas promessas, e outra para o cumprimento das mesmas. Tempo das promessas foi o tempo dos profetas até João Batista; partindo dele, porém, e de então em diante até o fim, temos o tempo de realização das promessas. Fiel é Deus que se fez nosso devedor, não por ter recebido algo de nós, mas por nos ter feito tão grandes promessas. Não bastaram, contudo, as promessas; além disso quis se comprometer por escrito, dando-nos um documento válido de suas promessas. Assim, ao começar ele a realizar as promessas, poderíamos considerar nas Escrituras a ordem do pagamento. Com efeito, o tempo das profecias era, conforme já dissemos, o da predição do que prometia. Ele prometeu a salvação eterna, a vida feliz e sem fim na companhia dos anjos, a herança imarcessível, a glória eterna, a suavidade da visão de seu rosto, a casa de sua santificação nos céus, e com a ressurreição dos mortos a exclusão de então em diante do medo da morte. Nisso consiste o termo final de suas promessas, de onde decorre todo o nosso empenho. Obtendo-o, nada mais busca-remos, nada mais exigiremos. Não calou nem mesmo, prometendo e anunciando, em que ordem alcançaremos o que virá no fim. Pois, ele prometeu aos homens a divin-dade, aos mortais a imortalidade, aos pecadores a justi-ficação, aos seres ínfimos a glorificação. Tudo aquilo que prometeu, ele o prometeu a indignos, de sorte que não aparentasse prometer como recompensa das obras, mas tudo fosse dado pela graça, gratuitamente portanto, conforme diz o nome. Pois, o fato mesmo de viver na justiça, enquanto é possível ao homem viver na justiça, não deriva de mérito humano, mas é benefício divino. De fato, ninguém vive na justiça, se não tiver sido justificado, isto é, transformado em justo. Converte um homem em justo aquele que nunca pode ser injusto. Da mesma forma que uma lâmpada não se acende sozinha, a alma humana não é luz para si mesma, mas clama por Deus: “Senhor, farás brilhar a minha lâmpada” (Sl 17,29). | |
§ 2 | Fora prometido o reino dos céus aos pecadores, não aos que permanecessem no pecado, mas aos dele libertos e já servidores da justiça. Para tal, conforme dissemos, são ajudados pela graça e justificados por aquele que sempre é justo. Parecia incrível que Deus tivesse tanto cuidado acerca dos homens. Hoje os que perdem a esperança na graça divina e não querem se voltar para Deus, abandonando seus péssimos hábitos, a fim de serem justificados por ele e depois de perdoados todos os seus pecados por seu perdão começarem a viver nele com justiça (nele, que nunca viveu sem a justiça) têm esse pernicioso pensamento e dizem que Deus não se importa com os acontecimentos humanos, nem pode Deus que criou e governa o mundo pensar como vive cada um dos mortais na terra. Assim o homem criado por Deus pensa que Deus não se preocupa com ele. Se pudermos falar com tal homem; se ele nos abrir primeiro seus ouvidos e em seguida seu coração; se não repelir com resistência a quem o procura, e estando perdido deixar se encontrar, podemos dizer-lhe: Ó homem, como Deus não se preocupa contigo depois de criado, se ele antes de te criar tratou de seres criado? Por que pensas que não és contado na ordem das criaturas? Não acredites no sedutor: para teu criador até teus cabelos são contados (cf Mt 10,30). Finalmente, o Se-nhor no evangelho disse a seus discípulos que não temessem a morte, como se pela morte algo de si mesmos perecesse. Eles tinham receio acerca de sua alma por ocasião da morte, mas o Senhor lhes dava garantias até sobre seus cabelos. Então havia de perecer a alma, se nem os cabelos se perdem? Aliás, irmãos, como parecia aos homens incrível o que Deus prometia, que os homens desta mortalidade, corrupção, abjeção, fraqueza, pó e cinza se tornariam iguais aos anjos de Deus, não somente deu aos homens um documento escrito para acreditarem, mas ainda estabeleceu um mediador de sua fidelidade. Não foi um príncipe qualquer, ou qualquer anjo ou arcanjo, mas seu Filho único, de tal modo que nos mostrasse e oferecesse o caminho para atingir o fim prometido, por meio dele, o próprio Filho. Para Deus não bastou que seu Filho se fizesse um indicador do caminho; tornou-se ele mesmo o caminho a fim de andares sob sua direção pelo caminho que ele mesmo é. | |
§ 3 | Deus prometeu, portanto, que chegaríamos até junto dele, isto é, àquela inefável imortalidade e igualdade com os anjos. A que distância estávamos? A que altura ele se achava e nós, em que profundidade? Em que cume estava ele, e nós, desesperados, em que profundezas jazíamos? Estávamos doentes, sem esperança de cura; foi enviado o médico, que o doente não reconheceu. Pois, se eles tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (cf 1Cor 2,8). Mas, até isso serviu para tratamento do doente: que este matou o médico. Ele veio para visitar e foi morto para curar. Entre os fiéis o homem Deus se insinuou; Deus que nos criou, homem que nos refez. Alguma coisa nele aparecia; outra, nele se escondia, mas o que estava escondido era muito mais valioso do que o que aparecia. O mais valioso não podia ser visto. O doente era curado pela natureza visível, a fim de ser depois capaz de ver aquilo que diferia sua aparição pelo escondimento, mas não se subtraía por uma recusa. O único Filho de Deus, portanto, que haveria de vir para junto dos homens, assumir a natureza humana e por meio dela fazer-se homem, morrer, ressuscitar, subir ao céu, assentar-se à direita do Pai e realizar entre os gentios as suas promessas, e depois deste cumprimento, ainda realizar a sua volta para cobrar o que confiou, distinguir os vasos da ira dos vasos de misericórdia, retribuir aos ím-pios com o que ameaçou e aos justos com o que prome-teu! Tudo isso, devia ser profetizado, prenunciado, relem-brado que viria, para não causar horror vindo subitamente, mas ser acreditado e esperado. Entre tais promessas encontra-se este salmo, que profetiza com segurança e clareza acerca de nosso Senhor e salvador, Jesus Cristo, de tal sorte que não podemos absolutamente duvidar que o salmo anuncia o Cristo, principalmente porque somos cristãos e já cremos no evangelho. Ora, quando nosso Senhor e salvador, Jesus Cristo, perguntou aos judeus de quem o Cristo seria filho e eles responderam: “de Davi”, replicou-lhes imediatamente: “Como então Davi, falan-do sob inspiração, lhe chama Senhor, ao dizer: O Senhor disse ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés? Ora, se Davi sob inspiração lhe chama Senhor, como pode ser seu filho”? (cf Mt 22,42-45). O salmo inicia com este ver-sículo. | |
§ 4 | 1 “Oráculo do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te a minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. Devemos expor no próprio começo do salmo esta questão proposta pelo Senhor aos judeus. Se, então, for-nos pedida a mesma proposta que aos judeus, para mostrar que confessamos também nós, ou negamos, de forma alguma havemos de negar. Se nos for dito: Cristo é, ou não, filho de Davi? Se respondermos: Não, contradizemos ao evangelho; pois Mateus assim começa o evangelho: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi” (Mt 1,1). O evangelista afirma que escreve o livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi. Foi com razão, portanto, que os judeus, interrogados por Cristo, de quem acreditavam que o Cristo era filho, responderam: “De Davi”. A resposta deles concorda com o evangelho. Não se tratava apenas de uma opinião dos judeus, mas constitui a fé dos cristãos. Verifico ainda outra confirmação. Diz o Apóstolo: “Nascido da estirpe de Davi segundo a carne” (Rm 1,3). Escreve também a Timóteo: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi, segundo o meu evangelho”. E o que assevera sobre o próprio evangelho? “Pelo qual eu sofro, até às cadeias, como malfeitor. Mas a palavra de Deus não está algemada”! (2 Tm 2,8.9). O Apóstolo, portanto, sofria até às cadeias por seu evangelho, isto é, pelo ministério do evangelho que pregava aos povos, que distribuía às nações. Ele, que de manhã devorara a presa e até à tarde repartia o despojo (cf Gn 49,27). Sofria, portanto, até às cadeias pelo evangelho. Que evangelho? “O de Cristo Jesus, ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi”. Era em prol deste evangelho que o Apóstolo sofria. No entanto, Cristo interrogava sobre esta questão; e como os judeus respondessem o mesmo que o Apóstolo anunciava, replicou com certa contradição: “Como então Davi, falando sob inspiração, lhe chama Senhor”? E intercalou o testemunho deste salmo: “Oráculo do Senhor ao meu Senhor. Ora, se Davi sob inspiração lhe chama Senhor, como pode ser seu filho?” Diante de tal interrogação os judeus calaram, sem encontrar daí em diante uma resposta, nem procurá-lo como Senhor, porque não reconheceram que ele era filho de Davi. Nós, contudo, irmãos, acreditemos e digamos pois, quem crê de coração obtém a justiça e quem confessa com a boca, a salvação (cf. Rm 10,10), acreditemos, digo, e confessemos que ele é filho de Davi e Senhor de Davi. Não nos envergonhemos do filho de Davi, para não encontrarmos irado o Senhor de Davi. | |
§ 5 | Clamando por ele, sob tal nome, com toda razão, enquanto passava, aqueles cegos mereceram recuperar a vista. Pois, Jesus passava, e eles tendo ouvido o tumulto da turba de passagem (ouvindo souberam aquilo que não podiam ver) clamaram em altas vozes: “Filho de Davi, tem compaixão de nós!” (cf Mt 20,29-34). A multidão repreendia-os para que se calassem; mas eles, entretanto, vencendo a contradição da multidão por desejo da visão, continuaram gritando; retiveram o Senhor que passava, e conseguiram pelo contacto com ele obter a visão. Pois pediam à sua passagem: “Filho de Davi, tem compaixão de nós”. Jesus parou, e tendo superado eles o clamor dos que se opunham, disse-lhes: “Que quereis que vos faça? Responderam-lhe: Senhor, que os nossos olhos se abram. Jesus tocou-lhes os olhos” e eles viram presente aquele que haviam percebido passando. Por conseguinte, algumas ações do Senhor foram transitórias; outras estáveis. Digo, que umas foram transitórias e outras estáveis dentre as ações do Senhor. Acontecimentos transitórios para o Senhor foram o parto da Virgem, a encarnação do Verbo, a sucessão das idades, a realização dos milagres, os sofrimentos da paixão, a morte, a ressurreição, a ascensão ao céu. Tudo isso foi transitório. Cristo já não nasce, já não morre, não mais ressuscita ou sobe ao céu. Não vedes que estes feitos decorreram no tempo, através dos tempos mostraram aos viandantes algo de transitório, para que não parassem no caminho, mas chegassem à pátria? Enfim, também aqueles cegos estavam sentados à beira do caminho, perceberam o transeunte, e com seus gritos o retiveram. O Senhor, portanto, no caminho deste mundo fez esta obra transitória, e ela pertence ao filho de Davi. Por isso, enquanto o Senhor passava, clamaram: “Filho de Davi, tem compaixão de nós”. Pareciam dizer: Reconhecemos o filho de Davi neste homem que passa, tomamos conhecimento daquele que se fez filho de Davi e está passando. Reconheçamos também nós, confessemos que é filho de Davi, para merecermos ver a luz. Percebemos que o filho de Davi está passando e recebemos a luz do Senhor de Davi. | |
§ 6 | Eis, portanto, que nosso Mestre interrogou os judeus e estes não responderam por não terem querido ser seus discípulos; e se nos interrogasse, que responderíamos? Os judeus falharam nesta interrogação; os cristãos dela tirem proveito, não se perturbem, mas se instruam. Pois, o Senhor não interroga para aprender, mas pergunta como doutor. Os infelizes judeus deviam responder: Responde-nos tu mesmo. Eles preferiram arrebentar, como o tumor de seu silêncio, do que aprender por uma humilde confissão. Diga-nos, portanto, o nosso Mestre e vejamos como responder quando nos interroga: “Que pensais a respeito do Messias? Ele é filho de quem?” Respondamos o mesmo que os judeus, mas não nos detenhamos onde eles pararam. Rememoremos o evangelho no qual acreditamos: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi”. Diante dessa pergunta, não nos esqueçamos de que Cristo é filho de Davi. O Apóstolo nos exorta a disso nos lembrarmos: Ó cristão, lembra-me de que “Cristo Jesus, ressuscitado dentre os mortos, é filho de Davi”. Por conseguinte, sejamos interrogados e respondamos: “Que pensais a respeito do Messias? Ele é filho de quem?” Unânimes, afirmem os cristãos: “De Davi”. Replique ainda o Doutor e nos pergunte: “Como então Davi, falando sob inspiração, lhe chama Senhor? Oráculo do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te a minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. Como o afirmaríamos se não tivéssemos aprendido de ti? Agora, pois, uma vez que aprendemos, dizemos: “No princípio era só Verbo; ó Verbo, estavas com Deus; ó, Verbo eras Deus; tudo foi feito por meio de ti: eis o Senhor de Davi. Mas, por causa de nossa enfermidade, pois jazíamos sem esperança de cura para a carne, tu, Verbo, te fizeste carne e habitaste entre nós (cf Jo 1,1.3.14): eis o filho de Davi. Certamente, sendo de condição divina, não te prevaleceste de tua igualdade com Deus: portanto, Senhor de Davi; mas tu te aniquilaste a ti mesmo, assumindo a condição de escravo (cf Fl 2,6.7): eis o filho de Davi. Finalmente, em tua própria interrogação: “como pode ser seu filho?” não negaste que és seu filho, mas inquiriste a maneira como isto se fez. “Davi lhe chama Senhor”; como pode ser seu filho? Não o nego; mas, declara como. Se eles, portanto, segundo as Escrituras que liam e não entendiam, ao serem interrogados se recordassem do modo de realização, não responderiam: Como perguntas? “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome de Emanuel, o que se traduz por: Deus está conosco” (Is 7,14; Mt 1,23). Conceberá a virgem, a virgem da descendência de Davi dará à luz um filho, de sorte que seja filho de Davi, pois José e Maria eram da casa e da família de Davi (cf Lc 1,27.32; 2,4.5). Por conseguinte, aquela virgem deu à luz, de tal forma que ele fosse filho de Davi. Quanto ao recém-nascido, “chamá-lo-ão com o nome de Emanuel, Deus conosco”. Temos aí o Senhor de Davi. | |
§ 7 | Talvez este salmo também nos insinuará algo sobre o assunto, como Cristo é filho de Davi. Ouçamos, pois, e comentemo-lo. Batamos à porta com a piedade, extraiamos com a caridade. Davi, portanto, também disse; e não é lícito contradizer ao Senhor. Declara ele: “Davi, falando sob inspiração, lhe chama Senhor”. O próprio Davi, o que diz de Cristo? Pois, o “salmo é de Davi”. Tal é o título inteiro, simples, sem figura que questione, sem nó algum que cause dificuldade. Que, então, profere Davi? “Oráculo do Senhor a meu Senhor: Assenta-te a minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. Escabelo de teus pés é o mesmo que sob “teus pés”, pois o escabelo dos pés fica sob os pés. “Oráculo do Senhor ao meu Senhor”. Ouviu-o Davi, ouviu-o em espírito. Nós não ouvimos quando ele ouviu, mas acreditamos no que falou e escreveu ter ouvido. De fato, ouviu, ouviu em determinado e escondido lugar da verdade, em certo santuário dos mistérios. Ouviu Davi lá onde os profetas ouviram ocultamente o que pregaram em público e com grande confiança diz: “Oráculo do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te a minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. Sabemos que Cristo está assentado à direita do Pai, após sua ressurreição dentre os mortos e ascensão ao céu. Isto já se realizou. Não o vimos, mas acreditamos. Lemos nos Livros, ouvimos o anúncio, retivemos na fé. Cristo, enquanto era filho de Davi, tornou-se Senhor de Davi. Tendo nascido da descendência de Davi, foi honrado de tal modo que fosse Senhor de Davi. Tu te admiras como se essas coisas não sucedessem nas questões humanas. Se acontecer que o filho de um cidadão qualquer se tornar rei, não será senhor de seu pai? Mais admirável ainda é o que pode suceder: que não só o filho de um particular se torne rei e seja senhor de seu pai, mas que o filho de um leigo se torne bispo e seja pai de seu pai. Portanto, pelo mesmo fato de que Cristo assumiu a carne, que com ela morreu, ressuscitou, subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, por esta carne, assim honrada, glorificada, transformada em celeste, ele é filho de Davi e também Senhor de Davi. Segundo esta disposição divina acerca da passagem de Cristo, diz o Apóstolo: “Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho no céu, na terra e nos infernos” (Fl 2,9.10). Deu-lhe um nome que está acima de todo nome”, diz ele. A Cristo, segundo a natureza humana, a Cristo morto segundo a carne, ressuscitado e que subiu aos céus, foi dado “um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho no céu, na terra e nos infernos”. Onde estará Davi para que ele não seja seu Senhor? Esteja no céu, esteja na terra, esteja no inferno; será seu Senhor aquele que é Senhor dos seres celestes, terrestres e infernais. Alegre-se, portanto, também conosco Davi, honrado com o nascimento de seu filho, e libertado por seu domínio; diga alegre e seja ouvido pelos que se regozijam: “Oráculo do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. | |
§ 8 | “Assenta-te”, não somente no alto, mas também ocultamente: sublime para imperares, escondido para seres objeto de fé. Pois, qual seria o merecimento da fé, se não estivesse oculto o que cremos? Recompensa da fé é vermos o que acreditamos antes da plena visão. A Escritura proclama: “O justo viverá da fé” (Rm 1,17). Efetivamente, não existiria a justiça da fé, se não estivesse escondido o que é anunciado para crermos, e crendo chegarmos à visão. Pois, “como é grande, Senhor, a abundância de tua doçura, reservada para os que a ti temem!” (Sl 30,20). Portanto, reservaste; e assim ficaram? De forma nenhuma: “E perfeita para os que em ti esperam”. Por conseguinte, admirável é o mistério de Cristo, assentado à direita de Deus: escondido para que se creia, subtraído para que se espere. “Pois fomos salvos em esperança e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê?” São palavras do Apóstolo. De fato, vós as reconheceis, mas relembro por causa dos que as ignoram. Que diz, então o Apóstolo? “Pois fomos salvos em esperança e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que aguardamos” (Rm 8,24.25). “Uma vez que ver o que se espera não é esperança, reservaste a tua doçura para os que a ti temem. E visto que esperamos o que não vemos e é na perseverança que aguardamos, ela é perfeita para os que em ti esperam”. Finalmente, caríssimos, recebei atentamente o que vou dizer. Uma vez que nossa justiça provém da fé e pela fé se purificam nossos corações, a fim de podermos ver o que acreditamos, estão escritas ambas as coisas: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8) e: “Purificou os seus corações pela fé” (At 15,9). Tendo em vista que a justiça da fé consiste em crer o que não vês, e pelo próprio mérito da fé chegar em tempo oportuno à visão, o Senhor no evangelho, ao prometer o Espírito Santo, declarou: “Estabelecerá a culpabilidade do mundo a respeito do pecado, da justiça e do julgamento”. De que pecado? De que justiça? De que julgamento? Continua e explica; não admite conjecturas humanas. Diz: “Do pecado, porque não crêem em mim”. Quantos pecados a mais tinham os judeus! Todavia, como se houvesse um só, disse: “Do pecado, porque não crêem em mim”. É o pecado mencionado em outro trecho: “Se eu não tivesse vindo, não seriam culpados de pecado” (Jo 15,22). Que significa isto: “Se eu não tivesse vindo, não seriam culpados de pecado?” Então vieste para junto dos justos e os transformastes em pecadores? Mas excluindo os outros pecados, que poderiam ser perdoados pela fé, nomeou apenas um pecado, que se não fosse cometido, todos podiam ser perdoados. “Do pecado, porque não crêem em mim” e em outra passagem: “Se eu não tivesse vindo, não seriam culpados de pecado”. Pelo fato mesmo de que ele veio e não acreditaram nele, caíram em pecado; se não o cometessem, todos os outros pecados poderiam ser perdoados pela graça impetrada pela fé. Portanto, “do pecado, porque não crêem em mim; da justiça, porque vou para o Pai e não mais me vereis” (Jo 16,8-10). Esta é a justiça: vais para o Pai e eles não mais te verão. É a justiça que vem da fé. Pois, “o justo viverá da fé” (Rm 1,17). Vive da fé, se não vê o que crê. Uma vez que à justiça compete viver da fé, e ninguém vive da fé a não ser crendo no que não vê, a fim de que a justiça existisse entre os homens, isto é, que eles acreditassem no que não vissem, diz o Senhor: “Da justiça, porque vou para o Pai e não mais me vereis”. Vossa justiça consistirá em crer naquele que não vedes, e purificados pela fé, vereis no dia da ressurreição aquele em que acreditastes. | |
§ 9 | Conseqüentemente, Cristo está sentado à direita de Deus, o Filho está ocultamente à direita do Pai. Creiamos. Efetivamente, o salmo aqui afirma duas coisas, porque também Deus as disse: “Assenta-te a minha direita e prossegue: “Até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”, isto é, sob teus pés. Não vês Cristo, sentado à direita do Pai; ao menos podes ver como os inimigos foram postos como escabelo de seus pés. Se isto se cumpre publicamente, acredita que aquilo se realiza ocultamente. Quais os inimigos que se tornaram escabelo de seus pés? Aqueles que fazem planos vãos e aos quais se pergunta: “Por que as nações se agitaram e os povos tramaram em vão? Os reis da terra se sublevaram e os príncipes unidos conspiraram contra o Senhor e o seu Cristo”; e disseram: “Quebremos suas cadeias e sacudamos o seu jugo”. Não nos domine, não nos subjugue. “Rir-se-á deles o que habita nos céus”. Eras inimigo: estarás sob seus pés, ou como filho adotivo, ou como vencido. Procura saber, portanto, que lugar terás aos pés do Senhor teu Deus; pois, forçoso é que tenhas um, ou da graça, ou de castigo. De fato, ele está sentado à direita de Deus, até que seus inimigos sejam postos sob seus pés. Isto se faz, isto se realiza; embora aconteça paulatinamente, ininterruptamente se realiza. Agitem-se, pois, as nações, e os povos tramem em vão; sublevem-se os reis da terra e os príncipes unidos conspirem contra o Senhor e o seu Cristo. Por acaso, agitando-se, tramando em vão, conspirando unidos contra Cristo, conseguem impedir que se realize a palavra: “Dar-te-ei as nações por herança e como propriedade os confins da terra”? (Sl 2,1-8). Cumprir-se-á absolutamente, mesmo quando eles se agitam e tramam em vão; “Dar-te-ei as nações por herança e como propriedade os confins da terra”. Com efeito, eles tramam em vão; mas para que se cumpra a promessa: “Dar-te-ei as nações por herança e como propriedade os confins da terra”, esta não foi proferida por um falador vão qualquer, mas: “disse-me o Senhor”. Assim também, neste salmo podemos asseverar: “Disse”, não qualquer, nem aqueles que se agitaram e tramam em vão, mas: “Oráculo do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. Agitem-se, tramem em vão, gritem; acaso conseguem impedir que isso se faça? “Ruiu com estrépito a lembrança deles”. Fala isso certamente outro salmo, mas não com outro espírito: “Ruiu com estrépito a lembrança deles. Mas o Senhor permanece eternamente” (Sl 9,7.8). Aquele, portanto, que permanece eternamente, enquanto a lembrança deles perece com estrépito, ele mesmo disse à meu Senhor: “Assenta-te à minha direita”. Está, pois, sentado à direita do Pai, até que ele ponha os teus inimigos como escabelo de seus pés. | |
§ 10 | 2 Como prossegue o salmo? “De Sião o Senhor estenderá o teu cetro poderoso”. Revela-se, irmãos, evidentemente se revela que o profeta não se refere ao reinado de Cristo, enquanto ele reina sempre junto do Pai, como Senhor de tudo o que foi criado por ele, pois quando não reina o Verbo que no princípio era Deus junto de Deus? Pois, diz a Escritura: “ao Rei dos séculos, ao Deus incorruptível, invisível e único, honra e glória pelos séculos dos séculos” (1 Tm 1,17). “Ao rei dos séculos honra e glória, pelos séculos dos séculos”. A qual “Rei dos séculos”? “Ao invisível e incorruptível”. Enquanto Cristo é com o Pai invisível e incorruptível, porque é seu Verbo, e seu Poder, e sua Sabedoria, Deus junto de Deus, por quem tudo foi feito, ele é o Rei dos séculos. Todavia, aquele reino transitório, segundo o plano divino, de onde através de sua carne nos chamou à eternidade, começa com os cristãos; mas seu reino não terá fim. São, portanto, postos como escabelo de seus pés os seus inimigos, quando ele está sentado à direita do Pai, conforme foi dito; isto está se realizando, e até o fim completamente se fará. Ninguém diga que não pode se cumprir o que foi começado. Por que não confias que chegará ao termo o que se iniciou? Foi o onipotente quem começou esta obra, o onipotente prometeu que haveria de levar a bom termo o que ele mesmo começou. De onde, porém, começou? “De Sião o Senhor estenderá o teu cetro poderoso”. Sião é o mesmo que Jerusalém. Escuta o próprio Senhor: “O Messias devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia”. Daí, ressuscitando, assenta-se à direita do Pai. Sentado à direita do Pai, que faz ele? Escuta-o a ensinar e expor: “Em seu nome, fosse proclamada a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém” (Lc 24,46.47), porque: “De Sião o Senhor estenderá o teu cetro poderoso. Teu cetro poderoso”, isto é, teu reinado poderoso, porque “hás de governá-las por cetro de ferro” (Sl 2,9); “de Sião o Senhor estenderá”, porque será “a começar de Jerusalém”. | |
§ 11 | Ao estender ele de Sião o seu cetro poderoso, que acontecerá? “Domina entre os teus inimigos”. Primeiro, “domina entre os teus inimigos”, entre as nações em agitação. Porventura depois que os santos receberem a honra e os ímpios, a sua condenação, ele dominará entre os seus inimigos? Por que nos admirarmos que então domine, quando os justos reinarão com ele eternamente e os ímpios arderão nas penas eternas? Por que admirarmos que reine então? Agora, no meio de teus inimigos, agora enquanto decorrem os séculos e se propagam e sucedem uns aos outros os homens mortais, agora quando fluem as torrentes dos tempos, estende-se de Sião teu cetro poderoso para dominares entre os teus inimigos. Domina, domina no meio dos pagãos, dos judeus, dos hereges, dos falsos irmãos. Domina, domina, filho de Davi, Senhor de Davi, domina no meio dos pagãos, dos judeus, dos hereges, dos falsos irmãos. “Domina entre os teus inimigos”. Não compreendemos exatamente este versículo, se não o vemos já realizado. Senta-te, portanto, à direita de Deus, oculta-te a fim de seres objeto de fé até que se cumpram os tempos das nações. Pois, assim está escrito: “Aquele que os céus devem conservar até a restauração universal” (At 3,21). Morreste para ressuscitar, ressuscitaste para subires ao céu; portanto, morreste para te assentares à direita do Pai. Da morte veio a ressurreição, da ressurreição a ascensão, da ascensão a sessão à direita do Pai. Tudo isso começou com a morte. Teve início na humilhação a excelência desta glória. Estando, portanto, sentado à direita do Pai, cumprem-se os tempos dos gentios, todos os inimigos estão postos como escabelo de teus pés, e para se chegar a este ponto, primeiro dominarás entre teus inimigos; para isto, “de Sião o Senhor estende o teu cetro poderoso”. A cegueira dos judeus deu ocasião a que morresses, e por tua morte fosse apagado o título da dívida dos pecados e fosse pregada a penitência e a remissão dos delitos em todas as nações, a começar por Jerusalém (cf Cl 2,14). A cegueira de uns provocou a visão em outros: “O endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios, e assim todo Israel será salvo” (Rm 11,25). A cegueira atingiu uma parte de Israel, e ela te matou; morto ressuscitaste, apagaste em teu sangue os pecados dos gentios, e sentado à direita do Pai congregaste de todas as partes os que sofrem e se refugiam em ti. “O endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios, e assim todo Israel será salvo”, e todos os inimigos serão escabelo de teus pés. Isto agora. E depois? | |
§ 12 | 3 “Contigo está o princípio no dia de teu poder”. Que dia é este de seu poder? Quando está com ele o princípio, ou que princípio é este, ou como está com ele o princípio? Quando, de fato, é este princípio? O Senhor me auxilie, para que não me perturbe ao falar, nem vós vos perturbeis ao ouvirdes. Pois, vejo o que já se fez, e vejo convosco com os olhos da fé. Com os olhos carnais também vejo o que já se realizou, e ainda com os olhos da fé espero convosco o que há de vir. O que, então, já se fez? O que se faz? Que há de vir? Cristo sofreu, morreu, ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, como sabemos, no quadragésimo dia, está sentado à direita do Pai. Isto já se fez; não o vimos, mas nisto cremos. O que se faz agora? Domina no meio de seus inimigos, tendo estendido de Sião o cetro poderoso; isto se realiza agora, se passa agora. Os seus servos então viram-no na condição de servo, diante deles e agora que se ausentou acreditam nisso os seus servos. Enquanto somos servos acreditamos isto a respeito de sua condição de servo, à medida que podemos compreender. Pois, este é o leite dos pequeninos, que ele preparou, alimento que passa através de sua carne. De fato, o pão dos anjos, o Verbo era no princípio; a fim de que o homem pudesse comer o pão dos anjos (Sl 77,25), o Criador dos anjos se fez homem. Assim, o Verbo encarnado se tornou receptível para nós. Não o poderíamos receber, se o Filho igual a Deus não se aniquilasse a si mesmo, assumindo a condição de escravo, assemelhando-se aos homens, e sendo exteriormente reconhecido como homem (cf Fl 2,6.7). Fez-se mortal aquele que é imortal a fim de que até certo ponto pudéssemos apreender quem não pode ser apreendido pelos mortais. Consumada a sua morte, far-nos-ia imortais e apresentar-nos-ia algo a ser examinado, algo a ser criado, algo a ser visto posteriormente. Aos presentes apresentou sua condição de servo, não apenas para ser vista pelos olhos, mas ainda a ser palpada com as mãos. Nesta forma humana subiu ao céu, e ordenou-nos que crêssemos no que deu a eles ocasião de contemplar. Mas, também nós temos o que ver. Eles viram seu cetro poderoso estendido de Sião e nós vemos que ele domina entre os seus inimigos. Tudo isso, irmãos, pertence ao plano divino sobre sua condição servil, que seus servos tolerantemente apreendem, e os futuros libertos amam. A verdade imutável, que é o Verbo de Deus, Deus junto de Deus, por quem foram feitas todas as coisas, permanecendo em si mesmo tudo renova (cf Sb 7,27). Para a contemplarmos, faz-se mister grande e perfeita pureza de coração, que se obtém pela fé. Pois, foi demonstrada a condição de servo, mas adiada a manifestação da condição divina. Com efeito, o Senhor falou seus servos, em sua condição de servo: “Quem observa os meus mandamentos é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,21). Prometeu àqueles que o viam que haveria de se manifestar a eles. Que viam eles? Que prometia o Senhor? Viam a condição de escravo e ele prometia que o veriam na condição divina. “A ele me manifestarei”, disse. Tal é a glória a que será levado o reino, reunido agora enquanto passa esse mundo; é conduzido a certa visão inefável, que os ímpios não merecerão possuir. Ademais, enquanto estava na terra, a condição de servo foi vista pelos ímpios; viram-na os que acreditaram, viram-na os que o mataram. Não consideres grande coisa vê-lo naquela condição, porque viram-na os amigos, viram-na os inimigos; e alguns dos que a viram, mataram-no, alguns dos que não viram acreditaram. A condição de servo, visível na terra em humilhação pelos pios e ímpios, vê-la-ão no juízo ímpios e pios. Quando o Senhor, diante dos olhos de seus discípulos elevava-se ao céu, ressoou a palavra angélica, enquanto eles o olhavam: “Homens da Galiléia, que estais aí a contemplar o céu? Esse Jesus virá do mesmo modo que para o céu o vistes partir” (At 1,11). Assim mesmo, do mesmo modo, na mesma forma; porque a respeito dos ímpios foi dito: “Verão aquele que transpassaram” (Zc 12,10). Vê-lo-ão prestes a julgar aquele mesmo de quem zombaram ao ser julgado. Por conseguinte, a mesma condição de servo será visível no juízo para justos e injustos, pios e ímpios, fiéis e infiéis. Que será, então, que os ímpios não verão? De fato, foi dito a respeito de alguns: “Verão aquele que transpassaram”; ainda a respeito dos mesmos: “Seja afastado o ímpio para que não veja a majestade do Senhor” (Is 26,10). Que significa isto, meus irmãos? Distingamos, examinemos. Incita-se o ímpio a ver algo; é apartado para não ver. Já mostramos o que há de ver; aquele aspecto do qual foi dito: “Virá do mesmo modo”. O que não há de ver? “A ele me manifestarei” (Lc 14,21). Como diz: “me?” Não a condição de escravo. Que quer dizer, então: “me?” A condição divina, na qual não se prevaleceu de sua igualdade com Deus. Que quer dizer: “me? “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2). Esta glória de Deus é uma luz inefável, fonte de luz imutável, verdade sem falha, sabedoria sempre estável em si mesma, que renova tudo: é a substância de Deus. Portanto, seja afastado o ímpio para que não veja esta majestade do Senhor. Pois, “bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). | |
§ 13 | Parece-me, irmãos, de acordo com o que o Senhor se digna conceder à nossa capacidade, que se trata do próprio tempo; se, contudo, se deve denominar tempo, pois em determinado momento chegaremos ao que não é tempo; disto parece-me se tratar; digo-o sem excluir que alguém possa entender melhor, mais habilmente, com maior probabilidade de acertar. Parece-me que daí vem a palavra: “Contigo está o princípio no dia de teu poder”. Enfim, a meu ver, isto está suficientemente explanado no versículo seguinte. Aí fala-se no poder, com que submeteu os povos ao seu domínio, prostrou as nações, não com a lança, mas com o lenho, embora na carne, embora na humildade, embora no que comporta a condição servil; no entanto, apreende-se como é grande seu poder. Com efeito, o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (cf 1Cor 1,25). Por conseguinte, aqui se menciona seu poder, nesses termos: “De Sião o Senhor estenderá o seu cetro poderoso. Domina entre os teus inimigos”. Quão grande não é o poder, daquele que domina no meio de seus inimigos em tumulto, sem conseguirem coisa alguma contra ele, mas que dizem a si mesmos cotidianamente: “Quando há de morrer e de extinguir-se o seu nome”? (Sl 40,6). Enquanto isso, cresce sua glória no meio dos povos, as gentes se submetem a seu nome, o pecador verá e se irritará, rangerá os dentes e se consumirá (Sl 111,10). Portanto, tal é seu poder, mas o profeta quer mostrar de outro modo seu poder, enquanto é a Virtude de Deus e a Sabedoria de Deus, o Cristo na luz perpétua da imutável verdade. Para esta visão somos reservados, visão que é diferida; na perspectiva desta visão purificamo-nos pela fé, e dela é apartado o ímpio para que não veja a glória do Senhor. Querendo mostrar tudo isso, diz o salmo: “contigo está o princípio no dia de teu poder”. Que quer dizer: “Contigo está o princípio?” Imagina um princípio qualquer. Suponhamos que seja o próprio Cristo; alguém diria antes: Tu és o princípio, em vez de: “Contigo está o Princípio”. Pois, ele respondeu aos que o interrogavam: “Quem és tu? O Princípio, eu que vos falo” (Jo 8,25). Princípio é também o Pai, do qual é gerado o Filho unigênito; neste princípio era o Verbo, porque o Verbo estava junto de Deus. Então, se o Pai é princípio e o Filho é princípio são dois princípios? De forma nenhuma. Pois, como o Pai é Deus e o Filho é Deus, no entanto o Pai e o Filho não são dois deuses, mas um só Deus, assim o Pai é princípio e o Filho é princípio, contudo o Pai e o Filho não são dois, mas um só princípio. “Contigo está o princípio”. Então verás como o princípio está contigo. Não se diz que aqui na terra o princípio não esteja contigo. Porventura, não disseste tu mesmo: “Eis que chega a hora em que vos dispersareis, cada um para o seu lado, e me deixareis sozinho. Mas eu não estou só, porque o Pai está comigo”? (Jo 16,32). Também aqui, portanto, “contigo está o princípio”. Disseste, de fato, em outro lugar: “O Pai, que permanece em mim, realiza as suas obras (Jo 14,10). “Contigo está o princípio”; jamais o Pai se sepa- ra de ti. Mas quando se manifestar que contigo está o princípio, então isto será evidente a todos que já se assemelharam a ti, porque te verão como tu és (cf 1Jo 3,2); aqui, Filipe te via e procurava ver o Pai (cf Lc 14,8). Ora, então, se verá aquilo em que agora se acredita. Então “contigo estará o princípio” e vê-lo-ão os santos, os justos, sendo apartados os ímpios para que não vejam a glória do Senhor. | |
§ 14 | Creiamos, portanto, agora, irmãos, o que então veremos. Pois, Filipe foi repreendido por procurar ver o Pai, não reconhecendo o Pai no próprio Filho: “Há tanto tempo estou convosco e não me conhecestes? Filipe, quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Mas, “quem me viu” e não quem em mim viu a condição de escravo. “Quem me viu”, portanto, tal como me escondi para os que me temem, tal como levo à perfeição do meu conhecimento os que esperam de mim, “viu também o Pai”. Mas como tal visão virá posteriormente, agora que teremos em seu lugar? Vejamos o que diz a Filipe, a quem afirmara: “Quem me viu, viu o Pai”. Seria como se Filipe replicasse interiormente: E como te verei, se na condição de escravo aparentas outra coisa? Ou como verei o Pai, débil homem mortal, pó e cinza? Quando aquele que dissera: “Quem me viu, viu o Pai”, dirigia-se a ele, adiando a visão, e ordenando que tivesse fé. Era muito para Filipe e ele estava muito longe de ver. Disse-lhe: “Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim”? (Jo 14,10). Crê o que ainda não podes ver a fim de mereceres a visão. Ao chegar a ocasião de vermos, então aparecerá o sentido da frase: “Contigo está o princípio no dia de teu poder. De teu poder”, não da virtude em tua fraqueza, porque nela há poder. “De teu poder”, agora os homens têm suas virtudes: a fé, a esperança, a caridade, as boas obras; mas irão de virtude em virtude (Sl 83,8). “Contigo, portanto, está o princípio”. Revelarte-ás com o Pai, no Pai, enquanto “contigo está o Pai, o princípio no dia de teu poder”, daquele poder que o ímpio não verá. Pois, a tua fraqueza é mais forte do que os homens (cf 1Cor 1,25); por conseguinte “no dia de teu poder está contigo o princípio”. | |
§ 15 | Expõe, dize-me, de que poder falas. Porque também aqui, conforme foi dito, menciona-se seu poder, ao estender o Senhor o seu cetro poderoso de Sião, a fim de dominar entre os seus inimigos. De que virtude falas? “Entre os esplendores dos santos”. Diz o salmo: “Entre os esplendores dos santos”. A que poder se refere, quando os santos estarão no esplendor; não enquanto vivem com a carne terrena e gemem num corpo mortal e corruptível, que pesa sobre a alma e oprime — tenda de argila — a mente pensativa (cf Sb 9,15). Como não se vêem os pensamentos dos outros, não se está no “esplendor dos santos”. Mas que significa: “No esplendor dos santos? Até que venha o Senhor. Ele porá às claras o que está oculto nas trevas e manifestará os desígnios dos corações. Então cada um receberá de Deus o louvor que lhe for devido” (1 Cor 4,5). Então será o “esplendor dos santos”, porque “então os justos brilharão como o sol no reino de seu Pai”. Ouvi que sentido tem o seguinte: “No esplendor dos santos”. Virá a messe, virá o fim do mundo. O pai de família “enviará os seus anjos e eles apanharão do seu reino todos os escândalos e os lançarão na fornalha ardente. Então os justos brilharão como o sol no reino de seu Pai” (Mt 13,39-43; cf Sb 3,7). Em que reino? Vede se é reservada certa visão, sobre a qual nos foi dito: “Contigo o princípio”. Em que reino? Sem dúvida, na vida eterna. Pois o Senhor dirá aos que estiverem à direita: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34). Em seguida, depois de condenados e separados os ímpios e louvados os justos, como continua, após a palavra: “recebei o reino? E irão estes para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mt 25,46). Denominara “reino a vida eterna”, para a qual não irão os ímpios. Vede se a vida eterna não consiste em certa visão: “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Lc 17,3), porque “contigo está o princípio no dia de teu poder”, portanto, “contigo está o princípio no dia de teu poder, no esplendor dos santos”. | |
§ 16 | Mas isto é adiado, isto será dado mais tarde; o que acontece agora? “Do seio antes da estrela d’alva eu te gerei”. Como é isto? Se Deus tem um Filho, tem igualmente seio? Não tem como os corpos carnais um seio; contudo foi dito: “O Filho unigênito que está no seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18). Seio e útero é a mesma coisa; seio e útero foram usados para indicar o que é secreto. Que significa: “Do seio?” Do lugar secreto, oculto; de mim mesmo, de minha substância. É isto o que quer dizer: “Do seio, porque quem relatará sua geração”? (cf Is 53,8). Tomemos no sentido de que o Pai diz ao Filho: “Do seio antes da estrela d’alva eu te gerei”. Que quer dizer: “antes da estrela d’alva?” A estrela d’alva representa aqui os astros, como se a Escritura tomasse uma parte pelo todo, e de uma estrela eminente, todos os astros. Mas como foram feitos aqueles astros? “Eles sirvam de sinais, tanto para as festas, quanto para os dias e os anos” (Gn 1,14). Se os astros servem para assinalar o tempo, e a estrela d’alva é nomeada em lugar dos astros, antes da estrela d’alva quer dizer antes dos astros. E se, antes dos astros, antes dos tempos; se antes dos tempos, desde a eternidade. Não perguntes quando foi, porque a eternidade não comporta a pergunta quando. Quando e alguma vez são palavras empregadas para o tempo. Não nasceu do Pai no tempo aquele pelo qual foram feitos os tempos. O salmista se exprimiu, portanto, como era possível se expressar, figuradamente, profeticamente, de sorte que seio representava a substância oculta, e a estrela d’alva aparece em lugar do tempo. Ou quereis que examinemos o próprio Davi, que afirmou que seu Senhor era seu filho? Ouviu de seu Senhor para poder afirmá-lo; ouviu daquele que não pode se enganar. E chamou-o de seu Senhor, porque se trata de um “oráculo do Senhor ao meu Senhor: Assenta-te a minha direita”. Ele falou e parece que o contexto é seu. Se, pois, é ele quem fala, talvez ele mesmo pôde dizer: “Do seio antes da estrela d’alva eu te gerei” do seio virginal, “antes da estrela d’alva eu te gerei”. Se, pois, aquela virgem que carnalmente descende de Davi, de seu seio deu à luz o Cristo, de certo modo ele foi gerado por Davi. “Do seio” que não conheceu varão; “do seio” inteiramente, propriamente “do seio”, porque apenas “do seio” somente. Portanto, “do seio”, disse ele, que o denominara seu Senhor, “do seio antes da estrela d’alva eu te gerei”. Até mesmo “antes da estrela d’alva” é significativo, dito com propriedade, e assim cumprido. Pois o Senhor nasceu do seio da virgem Maria à noite. Indicam-no os testemunhos dos pastores que durante as vigílias da noite montavam guarda ao seu rebanho (Lc 2,7.8). “Do seio antes da estrela d’alva eu te gerei”. Tu, meu Senhor, sentado à direita do meu Senhor, donde vem que és meu filho, senão porque “do seio antes da estrela d’alva eu te gerei?” | |
§ 17 | 4 E para que fim nasceu? “Jurou o Senhor e não se arrependerá. Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec”. Nasceste do seio antes da estrela d’alva a fim de seres sacerdote enternamente segundo a ordem de Melquisedec. Se nasceu do seio, entendemos tratar-se da virgem; antes da estrela d’alva, à noite, conforme atestam os evangelhos; sem dúvida nascido do seio antes da estrela d’alva, a fim de ser sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec. Pois, enquanto gerado pelo Pai, Deus junto de Deus, coeterno ao genitor, não é sacerdote; mas é sacerdote por causa da carne que assumiu, por causa da vítima, tirada do que é nosso, a fim de ser por nós oferecida. “Jurou”, portanto, “o Senhor”. Que quer dizer: “Jurou o Senhor?” Então jura o Senhor que proíbe que o homem jure? (cf Mt 5,34). Ou talvez proíbe que o homem jure, mais para que não caia em perjúrio, e Deus jura principalmente porque não pode ser perjuro? Pois, o homem, devido ao hábito de jurar, pode deixar a boca proferir perjúrio, e por isso é bom que se lhe proíba jurar; estará tanto mais longe do perjúrio quanto estiver longe do juramento. O homem que jura, pode jurar falsamente ou com verdade; o que não jura, não pode jurar falso, porque não jura absolutamente. Por que, então, não há de jurar o Senhor, quando o juramento do Senhor é a garantia da promessa? Jure, efetivamente. Ora, que fazes ao jurar? Tomas Deus por testemunha. Jurar é tomar a Deus por testemunha. Por isso há o perigo de apresentares a Deus como testemunha de uma falsidade. Se, portanto, ao jurares tomas a Deus por testemunha, por que Deus ao jurar não há de dar testemunho por si mesmo? “Juro por mim mesmo, palavra do Senhor” é um juramento de Deus. Assim jurou ele sobre a descendência de Abraão: “Juro por mim mesmo, palavra do Senhor; porque ouviste a minha voz, porque não me recusaste teu filho, teu único, eu te cumularei de bênçãos, eu te darei uma posteridade tão numerosa quanto as estrelas do céu e quanto a areia que está na beira do mar. Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra” (Gn 22,16-18). A posteridade de Abraão que é Cristo, descendência de Abraão, que assumiu a carne da posteridade de Abraão, será sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec. A respeito do sacerdócio, portanto, segundo a ordem de Melquisedec, “jurou o Senhor e não se arrependerá”. E que será do sacerdócio segundo a ordem de Aarão? Por acaso, Deus se arrepende, como o homem, ou contra sua vontade cai em alguma falta ou por imprudência, escorrega de tal modo que depois se arrepende da queda? Ele sabe o que faz, sabe até onde uma coisa deve ir; daí, se muda alguma coisa, isto deriva de seu poder. Mas a penitência significa mudança. Como tu, ao te arrependeres, sentes pesar de ter feito o que fizeste, assim quando Deus muda alguma coisa, sem que o homem espere, isto é, além de sua expectativa, diz-se que ele se arrepende. Chega mesmo a se arrepender de nos castigar se nos penitenciarmos por causa de nossa vida má. Por conseguinte, “o Senhor jurou; jurou, firmou; e não se arrependerá”, não mudará. O quê? “Tu és sacerdote eternamente”. Eternamente porque “não se arrependerá”. Mas sacerdote, segundo o quê? Seria por meio daquelas hóstias, vítimas oferecidas pelos patriarcas, altar de sangue e tabernáculo, aqueles sacramentos do primeiro Testamento, o Antigo? De forma nenhuma. Estes foram abolidos, o templo foi destruído, destituído aquele sacerdócio, eliminados suas vítimas e seu sacrifício; nem os judeus os têm mais. Eles vêem que terminou o sacerdócio segundo a ordem de Aarão e não reconhecem o sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec. “Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec”. Fala aos fiéis. Se os catecúmenos não entendem alguma coisa, deixem a preguiça, e procurem com zelo o conhecimento dela. Não é necessário descobrir os mistérios; a Escritura vos explique o que é sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec. | |
§ 18 | 5 “O Senhor está à tua direita”. O Senhor dissera: “Assenta-te à minha direita”. Agora é o Senhor que está à sua direita, como se o trono tivesse mudado de lugar. Ou talvez, melhor: “Jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote eternamente”, foi dito a Cristo? “Tu és sacerdote eternamente, jurou o Senhor”. Qual Senhor? Aquele que disse “a meu Senhor: Assenta-te à minha direita”, ele “jurou: Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec”. E ao mesmo Senhor que jurou, foi dirigida a palavra: “O Senhor está a tua direita”. Ó Senhor, que juraste e disseste: “Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec”, o próprio “sacerdote eternamente, é Senhor à tua direita”, ele, digo, “sacerdote eterno”, sobre o qual juraste, “é Senhor à tua direita”; porque disseste ao mesmo Senhor meu: “Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés”. Este Senhor, portanto, que está à tua direita, acerca do qual juraste, e ao qual juraste, dizendo: “Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec, esmagou os reis no dia de sua cólera”. O próprio Cristo é, de fato, “Senhor à tua direita” e a ele juraste e não te arrependerás. Que faz o sacerdote eternamente? Que faz aquele que está à direita de Deus e intercede por nós, como sacerdote que entrou no interior ou no santo dos santos, na parte secreta dos céus, o único sem pecado, e que por isso, facilmente purifica dos pecados? (cf Rm 8,34; Hb 9,12.14.24). Ele, portanto, “à tua direita esmagará os reis no dia de sua cólera”. Quais são estes reis, perguntas? Tu te esqueceste do que foi dito: “Os reis da terra se sublevaram e os príncipes unidos conspiraram contra o Senhor e o seu Cristo? (Sl 2,2). A estes reis ele esmagou por sua glória, e pelo peso de seu nome tornou-os débeis, a ponto de não poderem fazer o que queriam. Pois, muitos se empenharam em apagar da terra o nome dos cristãos e não o puderam, porque “aquele que cair sobre esta pedra se despedaçará” (Mt 21,44). Caíam, portanto, sobre a pedra de escândalo e por isso esses reis foram despedaçados, ao dizerem: Quem é o Cristo? É um judeu qualquer, um galileu, que foi massacrado assim, assim foi morto. A pedra encontra-se ante teus pés, e jaz por terra de maneira vil e humilde; por isso, tropeças nela por teu deprezo, tropeçando cais, e caindo és despedaçado. Se, portanto, tão grande é a ira do Senhor oculto, que não será no juízo, ao se manifestar? Ouviste qual a ira daquele que se oculta, conforme está inscrito no salmo: “Pelos segredos do filho”; se bem me lembro, é o salmo nono que traz a inscrição: “Pelos segredos do filho” e ali se revela o juízo oculto da ira oculta. Estando Deus irado, vivem os que tropeçam naquela pedra, mas são quebrados. E que importância tem que se quebrem agora? Escuta o que será no juízo futuro: “Aquele que cair sobre esta pedra quebrar-se-á todo, e aquele sobre quem ela cair, ela o esmagará” (Lc 20,18). Quando se cai sobre ela é porque ela está no chão, em condição humilde; e então ela quebra; para esmagar, ela vem de cima. Vede como nesses grupos de duas palavras: quebrará e esmagará, cai sobre ela e sobre quem ela cai, distribuem-se os dois tempos, o da condição humilde e o da exaltação de Cristo, do castigo oculto e do futuro juízo. Cristo, quando vier não esmagará aquele que ele não quebrar enquanto estiver prostrado. Digo prostrado, porque aparentemente desprezível. Pois o Senhor está à direita de Deus e energicamente clamou do alto: “Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4). Todavia, embora do céu, não clamaria: “Por que me persegues?” aquele a quem ninguém tocava, se não estivesse sentado à direita do Pai no céu de tal sorte que em nós de certo modo jazia na terra. “O Senhor está a tua direita. Ele esmagou os reis no dia de sua cólera”. | |
§ 19 | 6 “Julgará as nações”. Mas agora, “pelos segredos”; no juízo será manifesto: “Julgará as nações”. Pois agora, dá-se o seguinte: “Ruiu com estrépito a lembrança deles”. Encontra-se no mesmo salmo: “Pelos segredos”. Ruiu “com estrépido a lembrança deles. Mas o Senhor permanece eternamente. Preparou o tribunal do julgamento. Julgará o mundo inteiro com eqüidade”. Neste salmo foi dito: “Repreendeste as nações e o ímpio pereceu. Apagaste o seu nome nos séculos” (Sl 9,1.6-9). Isto se realiza ocultamente. “Pois ele esmagou os reis no dia de sua cólera. Julgará as nações”. Como? Escuta a continuação: “Encherá tudo de ruínas”. Agora julga as nações de sorte que encha tudo de ruínas; pois, quando julgar no fim, condenará as ruínas. “Encherá de ruínas”. Quais? Todo aquele que temer por causa de seu nome, cairá; ao cair, derrubará o que era, para edificar o que não existia. “Julgará as nações, encherá tudo de ruínas”. Sejas quem fores, se és contumaz contra Cristo, ergueste uma torre que vai cair. É bom que te abaixes, que te tornes humilde, que te prostres aos pés daquele que está sentado à direita do Pai, para te tornares uma ruína a ser reconstruída. Pois se permaneces numa altura imprópria serás derrubado quando não fores edificado. Pois, de tais homens diz em outra parte a Escritura: “Tu os destruirás e não os restabelecerás” (Sl 27,5). Sem dúvida não diria acerca de alguns: “Tu os destruirás e não os restabelecerás”, se não destruísse a alguns para edificar depois. Assim se faz agora, quando Cristo julga as nações de tal modo que enche tudo de ruínas. “Quebrará as cabeças de muitos sobre a terra”. Aqui, “sobre a terra”, nesta vida, “quebrará as cabeças de muitos”. Transforma os soberbos em humildes; e ouso dizer, meus irmãos, é melhor andar aqui na terra humildemente de cabeça quebrada do que com a cabeça erguida no juízo incidir na morte eterna. Quebrará a cabeça de muitos, criando ruínas, mas edificará preenchendo-as. | |
§ 20 | 7 “Beberá da torrente do caminho, por isso levantará a cabeça”. Vejamo-lo a caminho, bebendo da torrente. Primeiro, que é a torrente? O fluxo da mortalidade humana. Como a torrente se forma das águas pluviais, transborda, faz ruído, corre e neste curso decorre, isto é, termina o curso, assim se realiza o percurso da mortalidade. Os homens nascem, vivem, morrem; uns morrem, outros nascem e mais uma vez estes morrem e outros surgem; eles se sucedem, aparecem, desaparecem, não permanecem. O que se retém aqui? O que não corre? O que não vai para o abismo como águas reunidas das chuvas? Assim como o rio, de repente formado com as chuvas, das gotas de chuva, vai para o mar e desaparece, nem aparecia, antes que as águas pluviais se reunissem, assim o gênero humano se congrega de fontes ocultas e flui; pela morte, de novo vai para lugares ocultos; a parte intermediária soa e passa. Desta torrente bebe ele; não menosprezou beber desta torrente. Pois beber desta torrente consistia em nascer e morrer. Encontra essa torrente o nascimento e a morte. Cristo a acolheu. Nasceu e morreu; assim bebeu “da torrente no caminho. Deu saltos de gigante a percorrer o caminho” (Sl 18,6). Portanto, “bebeu da torrente do caminho”, porque não se “deteve no caminho dos pecadores” (Sl 1,1). “Bebeu da torrente do caminho, por isso exaltou a cabeça”, isto é, humilhou-se, e “fez-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho no céu, na terra e nos infernos. E toda a língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor” (Fl 2,8-11). | |