SALMO 𝟭𝟬𝟠

Dá-nos auxílio contra o adversário, pois vão é o socorro da parte do homem.

Em Deus faremos proezas; porque é ele quem calcará aos pés os nossos inimigos.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 108


§ 108:1  Preparado está o meu coração, ó Deus; cantarei, sim, cantarei louvores, com toda a minha alma.

§ 108:2  Ɗ Despertai, saltério e harpa; eu mesmo despertarei a aurora.

§ 108:3  Ł Louvar-te-ei entre os povos, Senhor, cantar-te-ei louvores entre as nações.

§ 108:4  Pois grande, acima dos céus, é a tua benignidade, e a tua verdade ultrapassa as mais altas nuvens.

§ 108:5  Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus, e seja a tua glória acima de toda a terra!

§ 108:6  Para que sejam livres os teus amados, salva-nos com a tua destra, e ouve-nos.

§ 108:7  Ɗ Deus falou no seu santuário: Eu me regozijarei; repartirei Siquém, e medirei o vale de Sucote.

§ 108:8  ɱ Meu é Gileade, meu é Manassés; também Efraim é o meu capacete; Judá o meu cetro.

§ 108:9  ɱ Moabe a minha bacia de lavar; sobre Edom lançarei o meu sapato; sobre a Filístia bradarei em triunfo.

§ 108:10  Quem me conduzirá à cidade fortificada? Quem me guiará até Edom?

§ 108:11  Porventura não nos rejeitaste, ó Deus? Não sais, ó Deus, com os nossos exércitos.

§ 108:12  Ɗ Dá-nos auxílio contra o adversário, pois vão é o socorro da parte do homem.

§ 108:13  Em Deus faremos proezas; porque é ele quem calcará aos pés os nossos inimigos.


O SALMO 108



§ 1
Quem ler cuidadosamente os Atos dos Apóstolos, há de perceber que este salmo contém uma profecia mes-siânica. Foi profetizado acerca de Judas, o traidor de Cristo, o que nele foi escrito:

Seus dias sejam abreviados e tome outro o seu ministério”.

Evidencia-se isto quando se narra que em lugar de Judas foi ordenado Matias, que foi agregado ao número dos doze apóstolos (cf At 1,15-26).

Mas se tentarmos aplicar todo o mal aqui mencionado àquele homem só, não conseguiremos absolutamente, ou com muita dificuldade, fazer uma exposição. Se, ao contrário, referirmos a determinada espécie de homens malvados, isto é, aos inimigos de Cristo e aos judeus ingratos, a meu ver, será possível mostrá-lo com maior clareza. Assim, certas expressões parecem aplicar-se propriamente ao apóstolo Pedro, no entanto não oferecem sentido muito claro a não ser que se refiram à Igreja, que ele figurava, devido ao primado de que gozava entre os discípulos. Por exemplo a expressão:

Eu te darei as chaves do reino dos céus(Mt 16,19) e outras semelhantes. Igualmente, Judas de certo modo figura os judeus, inimigos de Cristo, que então odiaram, e agora o odeiam nos seus sucessores, nos quais continua esta espécie de homens ímpios. A respeito destes e de seu povo é possível entender adequadamente não apenas o que lemos claramente sobre eles neste salmo, mas ainda o que propriamente se diz de maneira mais expressa acerca de Judas, como são os termos que mencionei:

Seus dias sejam abreviados e tome outro o seu ministério”.

Com o auxílio do Senhor, isto se evidenciará quando, tratando por ordem os versículos, chegarmos a esse.



§ 2
2 Começa o salmo da seguinte forma:

Ó Deus, não cales meu louvor, porque a boca do pecador e do pérfido se abriram contra mim”.

Daí se conclui que é falsa a injúria que o pecador e o pérfido não calam, e é verdadeiro o louvor que Deus não silencia. Pois, Deus é veraz e o homem mentiroso; somente é veraz o homem quando Deus fala por ele. O louvor máximo, porém, é próprio do Filho unigênito de Deus; consiste em se anunciar aquilo mesmo que ele é, o unigênito Filho de Deus. Isto não se revelava, mas estava escondido sob uma aparente fraqueza e então a boca do pecador e do pérfido se abriu contra ele; abriu-se porque estava encoberto o seu poder. Por isso diz o salmo:

Abriu-se a boca do pérfido”, porque o ódio que o dolo encobria, irrompeu na voz. Os versículos seguintes o declaram com maior clareza.



§ 3
3 “Com língua mentirosa falaram contra mim”; sucedeu assim, de fato, quando o louvavam com capciosa adulação, chamando-o de bom mestre. Daí se dizer em outra passagem:

Os que me louvavam, juravam contra mim(Sl 101,9).

Em seguida, porque clamavam:

Crucifica-o, crucifica-o!(Jo 19,6), o salmo acrescenta:

E envolveram-me com palavras de ódio”.

Eles proferiram palavras de amizade, como se não fossem de ódio, com uma língua mentirosa:

contra mim”, porque o faziam insidiosamente; depois, com “palavras”, não de falsa e mentirosa amizade, mas de declarado “ódio me envolveram, e sem motivo me atacaram”.

Como os homens piedosos amam gratuitamente a Cristo, os malvados gratuitamente o odeiam; porque assim como a verdade é visada pelos bons, sem outro interesse a não ser ela mesma, igualmente a iniqüidade é procurada pelos homens péssimos. Entre os autores das letras seculares encontra-se esta palavra acerca de um homem muito malvado:

Sem motivo algum, preferia ser mau e cruel(Sallústio, de Cat. coniurat. 16,3).



§ 4
4 “Em vez de me amarem, detraíam de mim.” Deste modo de agir, existem seis espécies diferentes, que se forem mencionadas, facilmente se podem captar: pagar o mal com o bem, não pagar o mal com o mal; pagar o bem com o bem, pagar o mal com o mal; não pagar o bem com o bem, pagar o bem com o mal. Os dois primeiros são bons, e o primeiro dos dois é melhor; os dois últimos são maus, e o segundo deles é o pior; os dois do meio de certo modo são médios, mas o primeiro deles é mais próximo dos bons, e o segundo mais próximo dos maus. Devemos examinar isso nas Sagradas Escrituras. Pagou o mal com o bem o próprio Senhor, “que justifica o ímpio (Rm 4,5), e crucificado disse:

Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem(Lc 23,34).

Santo Estêvão, seguindo estas pegadas, dobrou os joelhos e rezou por aqueles que o apedrejavam:

Senhor, não lhes imputes este pecado(At 7,59).

Pertence a esta questão o preceito:

Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem(Mt 5,44).

O apóstolo Paulo declara que não se deve pagar o mal com o mal:

A ninguém pagueis o mal com o mal(Rm 12,17); e o apóstolo Pedro:

Não pagueis mal por mal, nem injúria por injúria(1Pd 3,9).

Daí também, lermos no salmo:

Se paguei o mal com o mal aos que me retribuiram com o mal(Sl 7,5).

Dos dois últimos o mais suave adapta-se aos nove leprosos, que tendo sido purificados pelo Senhor, não agradeceram (cf Lc 17,12.18).

O último, o pior de todos, cabe àqueles dos quais se lê neste salmo:

Em vez de me amarem, detraíam de mim”.

Com efeito, deviam pagar com amor ao Senhor, em vista de tantos benefícios. Não apenas não pagavam de forma alguma, mas ainda em vez de bem, infligiam-lhe o mal. As duas espécies intermediárias, que atribuímos aos homens do meio, assim se distribuem: a primeira, pagar o bem com o bem, é própria dos bons, dos medíocres no bem ou dos medíocres no mal. Por isso, o Senhor não censura tal modo de proceder, mas não quer que seus discípulos parem aí, e sim deseja levar mais acima aqueles aos quais diz:

Se amais aos que vos amam”, isto é, se pagais o bem com o bem, “que recompensa tendes?” isto é, que fareis de extraordinário? “Não fazem também os publicanos a mesma coisa”? (Mt 5,46).

O Senhor quer que os discípulos assim ajam e ainda melhor; isto é, não amem somente os amigos, mas ainda os inimigos. A segunda espécie, porém, a que paga o mal com o mal, é peculiar aos maus, aos maus medíocres e aos bons medíocres; a este respeito a lei lhes impõe medida na vingança:

Olho por olho, dente por dente(Dt 19,21).

Se assim podemos nos exprimir, temos aqui a justiça dos injustos. Não digo que seja iníquo receber cada qual conforme o que fez; de outra forma a lei absolutamente não o teria estabelecido; mas como o sentimento de vingança é vicioso, compete ao juiz decidir a respeito do castigo e não ao homem honesto aplicá-lo por si mesmo. Com efeito, os ímpios que decaíram daquele cume de bondade, de pagarem o mal com o bem, a que profundidade de malignidade chegaram, retribuindo o bem com o mal! A que precipício se lançaram, atravessando tantos degraus intermediários! Nem se pense que foi pouco, porque o salmista não disse: Em vez de me amarem, mataram-me, mas “detraíram de mim”.

Eles, de fato, mataram, porque detraíram, negando o Filho de Deus, e dizendo: pelo “príncipe dos demônios ele expulsa os demônios(Lc 11,15); e:

Ele tem um demônio! Está louco! Por que o escutais”? (Jo 10,20) etc. Com tal detração afastavam aqueles cuja conversão ele procurava obter. O salmista assim se exprime para demonstrar que mais causam dano os que difamam a Cristo, matando as almas, do que os assassinos cruéis de sua carne mortal, principalmente porque haveria de ressuscitar em breve.



§ 5
Ora, tendo dito:

Em vez de me amarem, detraíram de mim”, que acrescenta? “Eu, porém, orava”.

Não disse, com efeito, o que visava sua oração. Mas, que de melhor senão rezar por eles? Eles especialmente difamavam o crucificado, ao zombarem daquele que aparentemente fora vencido, como se fosse homem somente. Da cruz, ele rezou:

Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem(Lc 23,34).

Eles, nas profundezas da malignidade pagavam o bem com o mal, enquanto ele no cume da bondade pagava o mal com o bem. Embora se possa entender com razão que ele rezara também por seus discípulos, conforme dissera antes da paixão, a fim de que sua fé não desfalecesse (cf Lc 22,32), quando ele, pendente do madeiro, querendo recomendar a paciência, não deixava transparecer seu poder, enquanto ouvia as palavras dos detratores, que ele podia extinguir com a virtude divina. Mas, para nós era mais proveitoso o exemplo de paciência do que a perda imediata de seus inimigos; edificava-nos para que não nos apressássemos impacientes a nos vingarmos, dos que nos fazem mal, quando está escrito:

Mais vale um homem lento à cólera do que um herói(Pr 16,32).

As palavras divinas nos instruem com o exemplo do Senhor, nesses termos:

Em vez de me amarem, detraíam de mim. Eu, porém, orava”.

Assim, quando percebemos que alguns nos são ingratos, não somente deixando de retribuir o bem que fazemos, mas além disso pagando o bem com o mal, devemos rezar. O Senhor, efetivamente, rezava pelos outros: cruéis, queixosos, hesitantes na fé. Quanto a nós, rezemos, em primeiro lugar, por nós mesmos, a fim de vencermos, com a misericórdia e o auxílio de Deus, nossos sentimentos, que nos ferem com a sede de vingança contra nossos detratores, presentes ou ausentes. Em seguida, lembrados da paciência de Cristo (como se ele acordasse, conforme fez ao dormir no barco, e tranqüilizasse a perturbação e tempestade de nosso coração), já acalmados e apaziguados, rezemos igualmente por nossos detratores e digamos com segurança:

Perdoai as nossas ofensas como nós também perdoamos(cf Mt 8,24.25; Mt 6,12).

Mas, como perdoava aquele que, de fato, não tinha pecado a ser perdoado?



§ 6
5 O salmo prossegue:

Pagaram-me o bem com o mal”.

E como se perguntássemos: Que mal? Em troca de que bens? Responde:

E o meu amor com o ódio”.

Aí se acha totalmente seu grande crime. Pois, os perseguidores em que puderam causar dano àquele que morria voluntariamente, não por necessidade? Com efeito, o próprio ódio é o crime máximo do perseguidor, apesar de ser voluntária a pena do paciente. Explicação suficiente temos das palavras supracitadas:

Em vez de me amarem(porque lhe era devido não um amor qualquer, mas o seu amor), no acréscimo:

E o meu amor com ódio”.

Ele menciona este amor no evangelho, nesses termos:

Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo de suas asas, e não o quiseste!(Mt 23,37).



§ 7
Em seguida, começa a profetizar o que hão de receber em paga de sua impiedade, e o profere como se o desejasse devido a um sentimento de vingança, porque prediz o futuro com toda certeza e anuncia que isto lhes advirá, conforme merecem, da parte da justiça de Deus. Alguns que não compreendem esta maneira de predizer o futuro, que parece ser uma imprecação, julgam que se trata de pagar ódio com ódio, e má vontade com má vontade. Efetivamente, poucos sabem distinguir como o castigo infligido aos iníquos agrada ao acusador sequioso de vingança; e como difere bastante isso da vontade reta do juiz, que pune os crimes. O primeiro, de fato, paga o mal com o mal; o juiz, porém, mesmo quando vinga, não paga mal com mal, porque retribui com o que é justo ao homem injusto. E o que é justo, na verdade é bom. Ele pune, portanto, não por se deleitar com a infelicidade alheia, o que seria pagar o mal com o mal; mas por amor à justiça, isto é, pagando o mal com o bem. Por conseguinte, os cegos não caluniem a luz das Escrituras, opinando que Deus não castiga os pecados; nem os injustos se iludam como se ele pagasse o mal com o mal. Ouçamos, portanto, agora o que declara a palavra divina e entendamos sob as palavras que parecem imprecações as predições de um profeta; e elevando nossa mente à lei eterna contemplemos a Deus retribuindo com justiça.



§ 8
6 “Suscita contra ele o pecador e o diabo se levante a sua direita”.

Porquanto mais acima o salmo se queixasse de mais indivíduos, agora fala de um só. Mais acima dissera:

Com língua mentirosa falaram contra mim e envolveram-me com palavras de ódio. Atacaram-me gratuitamente. Em vez de me amarem, detraíram de mim. Eu, porém, orava. Pagaram-me o bem com o mal e o amor com o ódio”.

Tudo acerca de vários. Agora, então, prenunciando o que mereciam por suas iniqüidades, e o que lhes sucederia no juízo de Deus, diz:

Suscita contra ele o pecador”, apontando para aquele que se entregou àqueles acima mencionados como seus inimigos. Se aqui anuncia que o traidor Judas seria punido com o devido suplício, conforme está escrito nos Atos dos Apóstolos (At 1,20), que significa:

Suscita contra ele o pecador”, senão o que está indicado no versículo seguinte:

E o diabo se levante a sua direita”? Ele mereceu, de fato, ter o diabo acima de si, isto é, ser súdito do diabo, porque não quis ser súdito de Cristo.

Levante-se”, porém, “à sua direita”, diz o salmo, porque preferiu as obras do diabo às obras de Deus. Acertadamente se denomina lado direito aquele que prevalece, pois à esquerda se sobrepõe a direita. Por isso, a respeito daqueles que antepõem os prazeres deste mundo a Deus, e consideram feliz o povo que possui estes bens, foi declarado com verdade:

Sua direita é direita iníqua”.

Por conseguinte os que afirmaram ser feliz o povo que possui estas coisas, proferiram com seus lábios a vaidade, segundo foi dito acerca deles mais acima. Quanto à boca que profere a verdade, ao contrário do que asseveraram aqueles que declararam feliz o povo que possui estas coisas, deve também afirmar o que o mesmo salmo diz no versículo seguinte:

Feliz é o povo que tem o Senhor por seu Deus(Sl 143,11.15).

À direita deste povo não se levanta o diabo, mas encontra-se o Senhor, segundo o que se acha em outra passagem:

Via sempre o Senhor diante de mim, porque está a minha direita. Não serei abalado(Sl 15,8).

O diabo, portanto, se levantou à sua direita, quando Judas antepôs a avareza à sabedoria, o dinheiro à sua salvação; traiu aquele que devia possuí-lo para que não caísse no poder daquele cujas obras Cristo destruiu. Não quis que Cristo o possuísse.



§ 9
Ao ser julgado, seja condenado”.

Não desejou fosse-lhe dita a palavra:

Vem alegrar-te com o teu Senhor!”, mas ser daquela espécie da qual se diz:

Lançai-o lá fora nas trevas(Mt 25,21.30).

E sua oração seja tida por pecado”.

Não é justa a oração que não seja feita por meio de Cristo, a quem ele vendeu, cometendo imenso pecado. A oração, porém, que não se faz por Cristo, não somente não pode apagar o pecado, mas ela mesma se torna pecado. É possível fazer esta pergunta: Quando Judas pôde rezar de tal modo que sua oração se tornou pecado? Creio que antes de trair o Senhor, mas cogitava traí-lo; já não podia rezar por meio de Cristo. Pois, após a traição e ter tido remorso, se rezasse por Cristo, pediria perdão; se pedisse perdão, teria esperança; se tivesse esperança, esperaria misericórdia; se esperasse misericórdia, não se teria enforcado por desespero. Em seguida, tendo dito:

Ao ser julgado, seja condenado”, a fim de que não se pensasse que ele poderia ter-se livrado da condenação iminente por meio da oração que aprendera ao mesmo tempo que seus condiscípulos, nesses termos:

Perdoa as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores(Mt 6,12), diz o salmo:

E sua oração seja tida por pecado”, porque não se fez por meio de Cristo, a quem ele não quis seguir, e sim perseguir.



§ 10
8 “Seus dias sejam abreviados”.

Denomina:

seus dias” os dias de seu apostolado; foram poucos, porque foram consumidos por seu crime e por sua morte antes da paixão do Senhor. E como se alguém dissesse: que será do sacratíssimo número doze, pois não foi em vão que o Senhor quis que fossem doze os primeiros apóstolos? o salmo imediatamente acrescenta:

E tome outro o seu ministério”.

Parece dizer: Ele seja punido segundo merece, mas seja suprido o que falta para doze. Se alguém quiser saber como foi feito isso, leia os Atos dos Apóstolos.



§ 11
9 “Fiquem órfãos os seus filhos e viúva a sua esposa”.

É evidente que por sua morte seus filhos ficaram órfãos e sua esposa ficou viúva.



§ 12
10 “Andem errantes e mendigos os seus filhos”.

Errantes, incertos a respeito do lugar para onde irem, destituídos de todo socorro.

Expulsos de suas moradas”.

Explicou o que dissera acima:

andem”.

Os versículos seguintes indicam como tudo isso sudeceu a sua mulher e a seus filhos.



§ 13
11.12 “O credor se apodere de todos os seus bens e estranhos arrebatem o produto de seu trabalho. Ninguém o ajude”, proteja sua posteridade; por isso, continua:

Nem haja quem se condoa de seus órfãos”.



§ 14
13 Mas, como poderiam os órfãos mesmo sem ajuda e sem tutor, crescerem no meio de dificuldades e pobreza, e conservar a descendência, prossegue:

Destinem-se ao extermínio os seus descendentes. Extinga-se o seu nome em uma só geração”, isto é, os que ele gerou não gerem, e logo se extingam.



§ 15
14Mas que significa o que vem logo em seguida? “A ini-qüidade de seus pais seja rememorada na presença do Se-nhor e o pecado de sua mãe jamais se apague”.

Deve-se en-tender que serão castigados nele até os pecados de seus pais? Não são castigados naquele que se transformar em Cristo e deixar de ser filho dos iníquos, não imitando os seus costumes, porque é bem verdade o que foi escrito:

Vingo a iniqüidade dos pais nos filhos”, e a palavra do profeta:

Todas as vidas me pertencem, tanto a vida do pai, como a do filho. Pois bem, aquele que pecar, esse morrerá(Ez 18, 4.20).

Isso se refere àqueles que se voltam para Deus, e não imitam os pecados de seus pais. O mesmo profeta o demons-tra claramente, dizendo que as iniqüidades dos pais não prejudicam os filhos que praticando a justiça se tornarem diferentes deles. Quanto à palavra:

Vingo a iniqüidade dos pais nos filhos”, vem com o acréscimo:

daqueles que me odeiam(Ex 20,5), isto é, como me odiaram os seus pais. Do mesmo modo que a imitação dos bons faz com que os próprios pecados sejam apagados, assim a imitação dos maus faz com que não somente os seus, mas ainda os daqueles que os imitaram, recebam castigo conforme viverem. Se, portanto, Judas se mantivesse de acordo com sua vocação, de forma alguma nem seus pecados passados, nem a iniqüidade de seus pais o tocariam; mas, como não manteve a adoção na família de Deus, mas preferiu a iniqüidade da antiga raça, a iniqüidade de seus pais na presença do Senhor foi levada em conta, de sorte que também ela fosse castigada e o pecado de sua mãe jamais se apagasse.



§ 16
15 “Estejam sempre perante o Senhor”, isto é, seu pai e sua mãe “estejam sempre perante o Senhor”, não para se oporem ao Senhor, mas para que o Senhor não se esqueça do mal que merecerem, ao retribuir a ele.

Perante o Senhor”, quer dizer: na presença do Senhor; pois outros tradutores verteram da maneira seguinte:

Estejam sempre na presença do Senhor”; outros, porém:

Estejam sempre diante do senhor”, segundo se disse em outra passagem:

Puseste diante de ti os nossos pecados(Sl 89,8).

O salmista diz:

sempre”, de tal sorte que aquele crime seja sem remissão, aqui e no século futuro.

Risque-se da terra a sua memória”, a saber, de seus pais e de sua mãe. Chama de memória a que se guarda na descendência. Ele profetizou que esta haveria de desaparecer da terra, porque o próprio Judas e seus filhos, que deram uma espécie de memória dos pais e da mãe, se extinguiram, sem prole para suceder-lhes, conforme dito mais acima, na brevidade de uma só geração.



§ 17
Diria alguém: Deve-se pensar que o castigo de Judas inclui terem a mulher e os filhos caído na mendicidade após sua morte, vagarem errantes, expulsos de suas casas, e que o credor se apoderasse de seus bens, estranhos arrebatassem o produto de seu trabalho, sem terem quem os ajudasse, nem se condoesse de seus órfãos, e terem morrido sem descendentes? Acaso os mortos se condoem do que acontece aos seus após a sua morte? Ou devemos supor que, ao menos, saibam disso, apesar de não terem ali os sentidos, conforme seus méritos, para o bem ou para o mal? Respondo ser questão muito importante, mas agora não devo tratar dela. Seria longo e trabalhoso indagar se, até quando, como os espíritos dos mortos conhecem os eventos que nos tocam. Contudo, em resumo, se não se interessassem por nós, o Senhor não diria que o rico, no meio dos tormentos do inferno, teria pedido:

Tenho em casa de meu pai cinco irmãos; que ele os advirta, a fim de que não venham eles também para este lugar de tormento(Lc 16,28.23).

Mas, seja como for que entendam os que procuram outro sentido, confessemos que não podemos deduzir ser forçoso que os mortos saibam também o que sucede aos seus, sejam eventos alegres ou tristes, mesmo se sabem que eles estão vivos, por não serem vistos nem nos lugares de tormentos onde se achava aquele rico, nem no repouso dos bem-aventurados onde o rico, embora de longe, reconhecia Lázaro e Abraão. Afirmo que poucos são os homens com tal disposição de espírito que menosprezem ou desprezem inteiramente o que, após sua morte, possa suceder de bem ou e de mal aos seus, ao menos enquanto vivem. Muitos, porém, conforme o indicam também tantos cuidados empregados em recomendar suas últimas vontades e em fazer qualquer testamento, tudo fazem a fim de que, depois de sua morte, os seus fiquem em boa situação. Somente descuram de maneira louvável da permanência de sua posteridade, através da sucessão das gerações, os que a ela renunciam por causa do reino dos céus, e desejam que seus filhos também o façam, ou almejam ser coroados de martírio, de sorte que nenhum deles subsista na terra. Todos os outros, contudo, ou quase todos desejam que os seus sejam felizes nesta vida, depois de sua morte, e não querem que se extinga sua raça. Por conseguinte, Judas teve morte tão infeliz, de tal sorte que sua esposa se tornou viúva e seus filhos ficaram órfãos, que o credor se apoderou de seus bens e estranhos arrebataram o produto de seus trabalhos, que foram expulsos de suas moradas, nem encontraram quem se compadecesse de seus órfãos, e numa só geração foram extintos, sem posteridade; se os mortos sentem tais coisas é o cúmulo dos males, e se não sentem, tornam-se elas o pavor dos vivos. Se, porém, alguém cogita como podia Judas ter bens de que o credor se apoderasse e os estranhos arrebatassem, quando já seguia o Senhor na companhia dos outros onze, deve supor que ele tenha deixado tudo o que tinha para os filhos e a esposa, de sorte que não rompera sincera e perseverantemente com o vínculo da ambição. Se aparentara vendê-los e distribuí-los aos pobres, na verdade fazia o que fez Ananias, depois da ascensão do Senhor (At 5,1.2).

Pois, não receava que o Senhor o descobrisse devido a sua divindade; pensava enganá-lo, quando tendo a bolsa comum, roubava o que aí era colocado (cf Jo 12,6).



§ 18
6.15 Mas, vejamos agora, se possível, com o auxílio do Senhor, como tudo isso pode convir também ao povo judaico, cujas inimizades e ódio pertinaz permaneceram contra o Senhor. Dissemos que Judas figurava este povo, como o apóstolo Pedro era um símbolo da Igreja.

Suscita contra ele o pecador e o diabo se levante a sua direita”.

Entenda-se do povo judaico como também de Judas. O povo repeliu Cristo e submeteu-se ao diabo, cujas persuasões acerca de desejos maus e terrenos, preferiu à sua eterna salvação.

Ao ser julgado, seja condenado”, porque persistindo na malícia e na infidelidade, acumulou ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras (cf Rm 2,5.6).

E sua oração seja tida por pecado”, porque não se fez pelo único mediador entre Deus e os homens um homem, Cristo Jesus (1 Tm 2,5), sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec (Sl 109,4).

Seus dias sejam abreviados”.

Relaciona-se ao reino, porque depois disso o reino dos judeus não subsistiu muito.

E tome outro o seu ministério”.

Considero convenientemente tratar-se de Cristo Senhor a exercer o ministério em favor do povo judaico, porque nasceu da tribo de Judá segundo a carne. Diz o Apóstolo:

Pois eu vos asseguro que Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais(Rm 15,8).

E ele próprio afirmou:

Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel(Mt 15,24), porque lhes mostrou a sua presença na carne. E os magos que vieram do oriente, disseram:

Onde está o rei dos judeus, recém-nascido”? (Mt 2,1.2).

Esta denominação estava escrita no título colocado sobre o crucificado e como os judeus queriam mudá-la, de fato, respondeu Pilatos:

O que escrevi, está escrito(Jo 19,19-22).

Este ministério de Cristo Senhor desempenhado junto do povo judaico transferiu-se para outro, isto é, para os gentios.

Fiquem órfãos os seus filhos”.

Sobre eles se disse:

Os filhos do reino serão postos para fora, nas trevas(Mt 8,12).

Ficaram órfãos, privados do reino, tendo perdido o pai. Pode-se dizer, com razão, também que perderam o Deus Pai. Disse a Verdade:

Quem não possui o Filho também não possui o Pai(1Jo 2,24).

E viúva a sua esposa”.

Por esposa do reino pode-se entender o povo, súditos sob o domínio dos reis. Tornou-se viúva ao perder o próprio reino.

Andem erran-tes e mendigos os seus filhos”.

Erravam em perigos; sob a pressão dos inimigos, foram exilados depois de vencidos, os filhos do reino judaico. Que é mendigar senão viver da misericórdia dos outros, como vivem eles sob os reis das nações, para onde foram transportados? “Expulsos de suas moradas”.

Assim se fez.

O credor se apodere de seus bens”, dos bens de seu povo. Nada tão óbvio como o fato de que seus pecados não são perdoados, porque somente por Cristo, que eles rejeitaram, podem ser perdoados. O Senhor também ensinou a rezar:

Perdoai as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores(Mt 6,12).

Todos os seus bens”, afirma o salmo, toda a sua vida, de tal maneira que nenhuma ofensa, isto é, nenhum pecado lhes seja perdoado.

E estranhos arrebatem o produto de seu trabalho”, a saber, o diabo e seus anjos; porque não acumulam tesouros no céu aqueles que não possuem o Cristo.

Ninguém o ajude”.

Quem ajuda aquele que Cristo não ajuda? “Nem haja quem se condoa de seus órfãos”.

Assim ficaram, tendo perdido o pai, isto é, o reino. Ou, tendo perdido a Deus, cujo Filho perseguiram e odiaram, ninguém deles se compadece, não para dar ou sustentar a vida tem-poral, mas a verdadeira vida, a eterna.

Destinem-se ao extermínio os seus descendentes”, ao extermínio eterno.

Extinga-se o seu nome em uma só geração”.

Tendo sido gerados, não regenerados, extinguem-se em uma só geração; pois se conhecessem e mantivessem a segunda, a regeneração, não seriam exterminados.

A iniqüidade de seus pais seja rememorada na presença do Senhor”.

O Senhor retribua ao mesmo povo, que persevera na malícia, também a iniqüidade de seus pais. Assim se dirige a eles:

com isso testificais, contra vós, que sois filhos daqueles que mataram os profetas”.

E pouco mais adiante:

E assim cairá sobre vós todo o sangue dos justos derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até o sangue de Zacarias(Mt 23, 31.35.37).

Pecado de Jerusalém, escrava com seus filhos, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados.

Estejam sempre perante o Senhor”, a iniqüidade e o pecado deles; isto é, não sejam apagados, na presença do Senhor, uma vez que Deus castiga eternamente.

Risque-se da terra a sua memória”.

Terra de Deus, campo de Deus. Campo de Deus, Igreja de Deus (cf Rm 11,20.21).

Desta terra é riscada sua memória, porque sendo ramos naturais, foram quebrados devido a sua infidelidade.



§ 19
16.17 “Porque não se lembrou”, Judas ou o povo, “de praticar a misericórdia”.

Mas é melhor, aplicar ao povo as palavras:

Não se lembrou”, pois uma vez que matou o Cristo, ao menos se recordasse e fizesse penitência, praticando a misericórdia para com os seus membros, que, no entanto, com perseverança perseguiu. Por isso diz o salmista:

Perseguiu o pobre e o mendigo”.

É aplicável a Judas; porque o Senhor se dignou fazer-se pobre, embora fosse rico, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf 2Cor 8,9).

Como pensar que ele é mendigo, a não ser talvez por ter dito à mulher samaritana:

Dá-me de beber”? (Jo 4,7).

E na cruz:

Tenho sede!(Jo 19,28).

Mas não descubro como se pode aplicar o versículo seguinte a nossa própria Cabeça, isto é, ao Salvador de seu corpo, que Judas perseguiu. Tendo dito: Perseguiu o pobre e o mendigo, acrescentou:

E o contrito de coração para matar”, isto é, para o matar, conforme traduziram alguns. Não se costuma falar de contrito de coração senão do que tem remorso dos pecados, na dor da penitência, de acordo como foi dito sobre aqueles que, tendo ouvido os apóstolos após a ascensão do Senhor, “sentiram o coração transpassado”, porque mataram o Senhor. São Pedro se dirigiu a eles, dizendo entre outras coisas:

Convertei-vos, e seja cada um de vós batizado em nome do Senhor Jesus Cristo, para a remissão dos pecados(At 2,37.38).

Mas, como se tornaram membros do corpo de Cristo aqueles mesmos que prenderam os membros dele na cruz, o povo judaico não se lembrou de praticar a misericórdia; perseguiu o pobre e o mendigo, mas em seus membros, dos quais o Cristo haveria de dizer, no que toca às obras de misericórdia:

Todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer(Mt 25,45).

E o contrito de coração para o matar”; na verdade “contrito de coração”, mas em seus membros. Entre os que perseguiram para matar o contrito de coração, achava-se Saulo, que consentia na morte de Estêvão, contrito de coração; porque Estêvão era dos contritos de coração (At 7,59).

Mas Saulo não se recordou de praticar a misericórdia; de manhã devorava uma presa e até à tarde repartia o despojo (cf Gn 49,27).

E quando ele mesmo ficou contrito de coração, até nele os judeus perseguiam o pobre, querendo matar o contrito de coração. Na verdade, odiavam o apóstolo Paulo, porque, contrito de coração, pregava aquele a quem anteriormente perseguia. Ele, perseguindo para o matar, o pobre e mendigo, o contrito de coração em seus membros, ouviu a voz do céu:

Saulo, Saulo, por que me persegues?(cf At 9,1-24).

E transformado em contrito de coração, começou a sofrer as mesmas coisas que infligia aos contritos de coração.



§ 20
18 Continua o salmo:

Amou a maldição e esta lhe sobrevirá”.

Apesar de Judas ter amado a maldição, roubando da bolsa, vendendo e traindo o Senhor, no entanto, o povo judaico mais claramente amou a maldição, quando clamou:

O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos(Mt 27,25).

Não quis a bênção e ela se afastará”.

Com efeito, Judas não quis o Cristo, no qual se acha a bênção eter-na; mas o povo judaico mais abertamente recusou a bênção. A ele disse o cego a quem o Senhor restituiu a vista:

Por acaso quereis tornar-vos seus discípulos?” Recusou a bênção, tendo-a por maldição, e respondeu:

Tu, sim, és seu discípulo(Jo 9,27.28); e a bênção se afastou, porque passou para os gentios.

A maldição como um manto o re-vestiu”; tanto Judas, como aquele povo.

Como água pe-netrou em suas entranhas”.

Portanto, fora e dentro: fora, como um manto, dentro como água, porque incidiu no jul-gamento daquele que pode destruir a alma e o corpo na gee-na (cf Mt 10,28).

O corpo fora, a alma dentro.

E como óleo se infiltrou em seus ossos”.

O salmo mostra que ele praticava o mal com deleite, e adquiria para si a maldição, isto é, a pena eterna; porque bênção é a vida eterna. Agora, de fato, os malefícios deleitam como água nas entranhas e óleo nos ossos; mas chamam-se maldição, porque Deus, aos que os praticam, predisse tormentos. A maldição se infiltra como o óleo nos ossos, porque os homens se consideram fortes, pois lhes é facultado cometer o mal de certo modo impunemente.



§ 21
19 “Seja qual veste com que se cubra”.

Tendo falado mais acima de manto, por que repete? Tendo dito:

A maldição, como veste o revestiu”, seria diferente “a veste com que” não se reveste, mas se cobre? Pois, revestimos a túnica, e cobrimo-nos com o manto. Que significa isto senão gloriar-se na presença dos homens a respeito da iniqüidade? “E qual cinto que sempre o aperte”.

Os homens, em geral, se cingem para estarem mais desimpedidos no trabalho e as dobras da veste não os atrapalhem. Portanto, cingem-se de maldição os que agridem não por maldade repentina, mas proposital, e de tal modo aprendem a fazer o mal ao qual estão sempre dispostos; daí dizer o salmo:

E qual cinto que sempre o aperte”.



§ 22
20 “Tal é a obra dos que detraem de mim junto do Senhor”.

Não disse: a paga, mas a “obra deles”.

É evidente que veste, manto, água, óleo, cinto referiam-se às obras que acarretam maldição eterna. Judas, portanto, não é um só, mas muitos; deles se diz:

Tal é a obra dos que detraem de mim junto do Senhor”.

Embora o plural possa ter sido empregado pelo singular, conforme disse o anjo quando Herodes morreu:

Os que buscavam tirar a vida do menino já morreram(Mt 2,20).

Mas os que detraíam de Cristo junto do Senhor quais são, a não ser os que detraíam das próprias palavras do Senhor, dizendo que ele não era o que fora profetizado pela lei e os profetas? Diz o salmo:

E dos que lançam imprecações contra a minha alma”, negando que ele poderia ressuscitar quando quisesse, conforme afirmou:

Tenho poder de entregar minha vida e poder de retomá-la(Jo 10,18).



§ 23
21 “Mas tu, Senhor, Senhor, faze comigo”.

Alguns julgaram que se devia subentender:

misericórdia”; outros até mesmo acrescentaram a palavra; mas os códices mais exatos formulam:

Mas tu, Senhor, Senhor, faze comigo, por causa de teu nome”.

Daí não devermos passar por alto do sentido mais importante, a saber, que o Filho tenha dito ao Pai:

Faze comigo”, porque as obras do Pai e do Filho são idênticas. Em conseqüência, se entendermos que se trata da misericórdia (pois o salmo prossegue:

porque suave é tua misericórdia”), uma vez que não disse: Faze para comigo, ou faze em meu favor, ou algo de semelhante, mas pediu:

Faze comigo”, é correto pensar que o Pai e o Filho simultaneamente exerceram misericórdia para com os vasos de misericórdia (cf Rm 9,23).

É possível também interpretar assim:

Faze comigo”, isto é, ajuda-me. Costumamos assim nos expressar na linguagem corrente, ao nos referirmos a alguma coisa feita em nosso favor: Faz conosco. Na verdade, o Pai ajuda o Filho, enquanto Deus ajuda a natureza humana, por causa da condição de servo; para a natureza humana ele é Deus, para a condição de servo é também Senhor o Pai. Ora, na condição de Deus, o Filho não necessita de auxílio; pois igualmente com o Pai ele é onipotente e com ele é auxílio para o homem.

Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer(Jo 5,21).

O Pai não faz viver a uns e o Filho a outros, nem este age de um modo e o outro, de maneira diferente; mas fazem a mesma coisa e de modo semelhante. Daí, enquanto o Filho de Deus é homem, ressuscitou-o dos mortos Deus, isto é, o Pai, a quem o Filho diz nos salmos:

Ergue-me e dar-lhes-ei a merecida retribuição(Sl 40,11); mas enquanto é Deus, ele mesmo se ressuscitou e por isso disse:

Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei(Jo 2,19).

Ele o indicou aqui, se alguém examinar cuidadosamente; pois ele ordenou perscrutar as Escrituras, que dele dão testemunho (cf Jo 5,39), e não olhá-las superficialmente. Ele não pediu apenas:

Mas tu, Senhor, Senhor, faze comigo”, porém, proferiu assim:

Mas tu”.

Que significa:

Mas tu”, senão que eu também? Quanto a duas vezes invocar: Senhor, repetindo:

Senhor, Senhor”, vem do afeto daquele que ora, conforme esta outra passagem:

Deus, meu Deus(Sl 21,2).

Em relação à frase:

Faze comigo”, se acrescentou:

por causa do teu nome” é para recomendar a graça. Pois, a natureza humana, sem mérito algum precedente de obras, foi elevada a tais alturas que, simultaneamente, o Verbo e a carne, isto é, Deus e o homem, foram denominados unigênito Filho de Deus. Assim aconteceu a fim de que aquilo que perecera fosse procurado por quem o criara, por meio daquilo que não se perdera. Daí vem a seqüência:

Porque suave é tua misericórdia”.



§ 24
22 “Livra-me porque sou necessitado e pobre”.

Necessidade e pobreza, fraqueza humana que possibilitou fosse ele crucificado.

E perturbou-se meu coração no meu íntimo”.

Refere-se ao que ele proferiu nas proximidades da paixão:

A minha alma está triste até a morte(Mt 26,38).



§ 25
23 “Fui eliminado, como a sombra que foge”.

Com isso indica sua morte. Com o cair das sombras vem a noite; assim a morte provém da carne mortal.

Atirado para longe como gafanhotos”.

Julgo que se adapta melhor a seus membros, a seus fiéis. Para falar com maior clareza, preferiu dizer:

como gafanhotos” do que: como gafanhoto. Embora no singular se possa subentender também muitos, conforme esta outra expressão:

Ordenou e veio o gafanhoto(Sl 104,34), mas seria mais obscuro. Foram atirados, portanto, isto é, afugentados pelos perseguidores os seus fiéis, cuja multidão quis representar pelo nome de gafanhotos; ou então porque passaram de lugar a lugar.



§ 26
24 “Meus joelhos vacilaram pelo jejum”.

Lemos que Cristo Senhor jejuou durante quarenta dias (cf Mt 4,2); mas esta abstenção de alimento prevaleceu tanto contra ele que seus joelhos enfraqueceram? Ou isto se aplica antes a seus santos, a seus membros? “E minha carne definhou por causa do óleo”, da graça espiritual. A palavra Cristo deriva de unção, pois crisma se traduz por unção. A carne, porém, por causa do óleo se transformou não para pior, mas para melhor, isto é, ressuscitou do opróbrio da morte para a glória da imortalidade. Considero que a expressão:

Meus joelhos vacilaram pelo jejum” significa que os membros que aparentemente eram fortes, retirado o pão que os sustentava, na paixão do Senhor falharam até a negação, o que se evidenciou em Pedro. E no intuito de confirmá-los, a fim de não cairem inteiramente, disse:

E minha carne se transformou por causa do óleo”, para corroborar por minha resurreição aqueles que falharam por ocasião de minha morte, e para ungi-los, pela missão do Espírito Santo, que não viria se eu não partisse. Ele afirmara:

Se eu não for, o Paráclito não virá a vós(Jo 16,7); e o evangelista declarara:

O Espírito ainda não fora dado, porque Jesus não fora ainda glorificado(Jo 7,39).

Sua carne ainda não tinha sido transformada. Ora, seja pela água, por causa da ablução ou irrigação, seja pelo óleo, por causa da exultação e ardor da caridade, figura-se o Espírito Santo; ele não se diversifica porque os sinais são vários. Diferem muito mais o leão e o cordeiro, e no entanto ambos simbolizam Cristo. Leão por determinado motivo e cordeiro por outro; Cristo, contudo, não é diverso, porque não é forte o cordeiro, nem o leão é inócuo; Cristo, porém, é inócuo como o cordeiro e forte como o leão. O próprio Jesus Cristo, diz, segundo Isaías:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu(Is 61,1).



§ 27
25 “Tornei-me para eles objeto de opróbrio”, pela morte na cruz. Pois, “Cristo nos remiu da maldição da lei tornando-se maldição por nós(Gl 3,13).

Olharam-me e abanaram a cabeça”, porque eles o viram crucificado, mas não ressuscitado. Viram-no quando seus joelhos vacilaram, mas não quando sua carne foi transformada.



§ 28
26 “Ajuda-me, Senhor meu Deus, salva-me segundo a tua misericórdia”.

Este versículo pode aplicar-se ao todo, isto é, à Cabeça e ao corpo. À Cabeça por causa da condição de escravo; ao corpo, por causa dos próprios servos. Ele pôde por estes dizer a Deus:

Ajuda-me, e salva-me”, por estes a respeito dos quais interrogou Saulo:

Por que me persegues”? (At 9,4).

O acréscimo:

segundo a tua misericórdia”, relembra a graça gratuita, e não a recompensa de determinadas obras.



§ 29
27 “Saibam eles que por aí passou a tua mão. Tu, Senhor, o fizeste. Saibam”, foi dito daqueles enfurecidos pelos quais o Senhor rezou. Aqueles que o injuriaram, meneando a cabeça por zombaria, foram também daqueles que depois nele creram. Mas, aprendam os que atribuem a Deus a forma de um corpo humano como é que Deus tem mãos. Se emprega as mãos para fazer o que faz, acaso fez com as mãos a própria mão? Como então aqui se diz:

Saibam eles que aí passou a tua mão. Tu, Senhor, a fizeste”? Entendamos, portanto, que mão de Deus é o Cristo; daí se encontrar em outra passagem:

E a quem se revelou o braço do Senhor”? (Is 53,1).

Essa mão era, e ele a fez, porque “no princípio era o Verbo, e o Verbo se fez carne(Jo 1,1.14); era fora do tempo segundo a divindade, e tornou-se da descendência de Davi segundo a carne (Rm 1,3).



§ 30
28 “Eles amaldiçoarão, mas tu abençoarás”.

Vã, portanto, e falsa a maldição dos filhos dos homens, que amam a vaidade e procuram a mentira (cf Sl 4,3).

Deus, porém, ao abençoar, realiza o que profere.

Confundam-se os que se insurgem contra mim”.

Pensam que, ao se insurgirem contra mim, conseguem alguma coisa; mas quando eu for exaltado acima dos céus, e minha glória começar a brilhar sobre a terra, confundir-se-ão.

Alegre-se, porém, o teu servo”, seja à direita do Pai, seja em seus membros que se alegram, no meio das tentações em esperança, e depois das tentações eternamente.



§ 31
29 “Vistam-se de ignomínia os meus detratores, isto é, envergonhem-se de terem falado mal de mim. Mas isto pode ser tomado em bom sentido, que eles se corrigem.

Cercados de confusão como um manto duplo”.

Diplois” é um manto duplo. Alguns assim verteram este versículo:

Cercados, como de um pálio duplo, de confusão”.

Entenda-se: confundidos por dentro e por fora, isto é, diante de Deus e diante dos homens.



§ 32
30 “Confessarei intensamente (nimis) o Senhor com meus lábios. Nimis costuma-se empregar em latim para o que é mais do que é devido; o contrário é parum que significa menos do que é devido. Mas nimis correponde ao grego: ágan; este versículo não traz ágan, e sim sphodra. Alguns dos nossos traduzem esta palavra às vezes por nimis e outras, por valde, sobremaneira. Mas se nimis tem aqui o sentido de valde, pode significar louvor; pois confissão significa também louvor. Prossegue o salmo:

Louvá-lo-ei em meio à multidão”.

Diz também outro salmo:

Cantar-te-ei no meio da Igreja(Sl 21,23).

Se canta a própria Igreja, que é o corpo do Cristo, como pode cantar no meio da Igreja? Assim também aqui, sendo multidão os membros de Cristo, se louvam eles, louva Cristo, porque são seus membros; como louva em meio à multidão, quando, ao louvar a multidão se diz que é Cristo quem louva? Acaso louva em meio à multidão, porque ele está com sua Igreja até à consumação dos séculos (cf Mt 28,20); então tomaríamos a expressão:

em meio à multidão” que ele é honrado por esses muitos? De fato, diz-se que está no meio, alguém que recebe insigne honra. Se, porém, o coração for considerado como o meio do corpo humano, nada de melhor do que interpretar que o louvarei nos corações de muitos. Pois, Cristo habita pela fé em nossos corações (cf Ef 3,17).

Com meus lábios”, a saber, os lábios de meu corpo que é a Igreja. Pois, quem crê de coração obtém a justiça e quem confessa com a boca, a salvação (cf Rm 10,10).



§ 33
31 “Porque ele se colocou à direita do pobre”.

Fora afirmado sobre Judas:

E o diabo se levante a sua direita”, porque quis aumentar suas riquezas vendendo o Cristo. Neste versículo o Senhor “se colocou a direita do pobre”, a fim de que seja o próprio Senhor a riqueza do pobre. Com efeito, “colocou-se à direita do pobre”, não para multiplicar-lhe os anos de uma vida que um dia termina, nem para aumentar-lhe os recursos materiais, ou torná-lo forte de forças corporais, ou incólume temporariamente, mas, diz o salmo, “para salvar dos perseguidores a minha alma”.

Minha alma se salva dos perseguidores, se não concorda com eles em cometer o mal; não consente, se o Senhor se coloca à direita do pobre, a fim de que não sucumba devido à própria pobreza, isto é, a sua fraqueza. Foi este o auxílio prestado ao corpo de Cristo, em todos os seus mártires.