SALMO 𝟭𝟬𝟞

Nossos pais não atentaram para as tuas maravilhas no Egito, não se lembraram da multidão das tuas benignidades;

antes foram rebeldes contra o Altíssimo junto ao Mar Vermelho.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 106


§ 106:1  Ł Louvai ao Senhor. Louvai ao Senhor, porque ele é bom; porque a sua benignidade dura para sempre.

§ 106:2  Quem pode referir os poderosos feitos do Senhor, ou anunciar todo o seu louvor?

§ 106:3  Bem-aventurados os que observam o direito, que praticam a justiça em todos os tempos.

§ 106:4  Ł Lembra-te de mim, Senhor, quando mostrares favor ao teu povo; visita-me com a tua salvação,

§ 106:5  para que eu veja a prosperidade dos teus escolhidos, para que me alegre com a alegria da tua nação, e me glorie juntamente com a tua herança.

§ 106:6  Ɲ Nós pecamos, como nossos pais; cometemos a iniqüidade, andamos perversamente.

§ 106:7  Ɲ Nossos pais não atentaram para as tuas maravilhas no Egito, não se lembraram da multidão das tuas benignidades; antes foram rebeldes contra o Altíssimo junto ao Mar Vermelho.

§ 106:8  Ɲ Não obstante, ele os salvou por amor do seu nome, para fazer conhecido o seu poder.

§ 106:9  Pois repreendeu o Mar Vermelho e este se secou; e os fez caminhar pelos abismos como pelo deserto.

§ 106:10  Salvou-os da mão do adversário, livrou-os do poder do inimigo.

§ 106:11  As águas, porém, cobriram os seus adversários; nem um só deles ficou.

§ 106:12  Então creram nas palavras dele e cantaram-lhe louvor.

§ 106:13  Ƈ Cedo, porém, se esqueceram das suas obras; não esperaram pelo seu conselho;

§ 106:14  mas deixaram-se levar pela cobiça no deserto, e tentaram a Deus no ermo.

§ 106:15  E ele lhes deu o que pediram, mas fê-los definhar de doença.

§ 106:16  Ŧ Tiveram inveja de Moisés no acampamento, e de Arão, o santo do Senhor.

§ 106:17  Abriu-se a terra, e engoliu a Datã, e cobriu a companhia de Abirão;

§ 106:18  ɑ ateou-se um fogo no meio da congregação; e chama abrasou os ímpios.

§ 106:19  Ƒ Fizeram um bezerro em Horebe, e adoraram uma imagem de fundição.

§ 106:20  Assim trocaram a sua glória pela figura de um boi que come erva.

§ 106:21  Esqueceram-se de Deus seu Salvador, que fizera grandes coisas no Egito,

§ 106:22  maravilhas na terra de Cão, coisas tremendas junto ao Mar Vermelho.

§ 106:23  Pelo que os teria destruído, como dissera, se Moisés, seu escolhido, não se tivesse interposto diante dele, para desviar a sua indignação, a fim de que não os destruísse.

§ 106:24  Ŧ Também desprezaram a terra aprazível; não confiaram na sua promessa;

§ 106:25  ɑ antes murmuraram em suas tendas e não deram ouvidos à voz do Senhor.

§ 106:26  Pelo que levantou a sua mão contra eles, afirmando que os faria cair no deserto;

§ 106:27  ɋ que dispersaria também a sua descendência entre as nações, e os espalharia pelas terras.

§ 106:28  Ŧ Também se apegaram a Baal-Peor, e comeram sacrifícios oferecidos aos mortos.

§ 106:29  Assim o provocaram à ira com as suas ações; e uma praga rebentou entre eles.

§ 106:30  Então se levantou Finéias, que executou o juízo; e cessou aquela praga.

§ 106:31  E isto lhe foi imputado como justiça, de geração em geração, para sempre.

§ 106:32  Indignaram-no também junto às águas de Meribá, de sorte que sucedeu mal a Moisés por causa deles;

§ 106:33  porque amarguraram o seu espírito; e ele falou imprudentemente com seus lábios.

§ 106:34  Ɲ Não destruíram os povos, como o Senhor lhes ordenara;


O SALMO 106



SERMÃO AO POVO 💬

§ 1
1 Recomenda este salmo as comiserações de Deus em nosso favor. Nós as experimentamos e pelo fato de as havermos experimentado nos são mais suaves. Seria de admirar que alguém as achasse suaves, se não aprendeu por ter vivido o que ouve deste salmo. Foi exarado não apenas para um só ou dois, mas para todo o povo de Deus e foi-lhe proposto como um espelho onde se pudesse mirar. É desnecessário explicar agora o título, pois consta de “aleluia”, de dois “aleluias”.

É um costume consagrado que o cantemos em determinadas ocasiões, segundo antiga tradição da Igreja. Cantamo-lo em dias fixos, conforme o mistério celebrado. Cantamos o aleluia em certos dias, de fato, mas nele pensamos todos os dias. Pois, se esta palavra significa louvor a Deus, embora não vocal, mas certamente no coração:

Seu louvor estará sempre em minha boca(Sl 33,2).

O fato de que este título não contém apenas um “Aleluia”, mas dois, não é peculiar a este salmo, mas outro mais acima também os contém. E na medida que se pode deduzir do texto, um é cantado acerca do povo de Israel; e outro, a respeito de toda a Igreja de Deus, espalhada pela terra inteira. Talvez não seja sem razão que sejam dois “aleluias”; também clamamos:

Abba, Pai”.

Embora “Abba” seja idêntico a “Pai”, não foi em vão que o Apóstolo disse:

Pelo qual clamamos:

Abba! Pai!(Rm 8,15).

Talvez porque um dos muros na direção da pedra angular, clama:

Abba”, e o outro muro, do outro lado, clama:

Pai”, naquela pedra angular, que é nossa paz, e fez dos dois um só povo (cf Ef 2,14-20).

Vejamos, portanto, aqui a que somos admoestados, por meio de que devemos nos congratular, por que gemer, como pedir auxílio; como somos abandonados, e como socorridos; o que somos por nós mesmos, e o que somos pela misericórdia de Deus; como é esmagada nossa soberba, a fim de que seja glorificada a graça de Deus. Cada qual aplique a si mesmo, se possível, o que vou dizer. Dirijo-me a homens que andam nos caminhos de Deus e já se acham estabelecidos num estado espiritual adiantado. Daí, se alguns talvez não me entendam bem, verifiquem onde se acham e, progredindo, apressem-se a conseguir entender. Penso que Deus não deixará de apoiar nossos esforços, de tal modo que nossa palavra atinja a todos, experimentados ou não. Os mais capazes aprovem e os menos conhecedores ambicionem conhecer, e seja a todos agradável minha exposição. Em primeiro lugar, será agradável a Deus se for verídica; mas será verídica, se não provir de mim mesmo, e sim dele. Assim começa o salmo.



§ 2
Confessai ao Senhor, porque ele é suave, porque a sua misericórdia é pelos séculos”.

Confessai que ele é suave; se o saboreastes, confessai. Não pode confessar quem não quis experimentar; como pode dizer que é agradá- vel quem não o sabe? Vós, porém, se experimentastes que o Senhor é suave (cf 1Pd 2,3; Sl 33,9), “confessai ao Senhor, porque ele é suave”.

Se o saboreastes com avidez, irrompei em confissão. Pois, “a sua misericórdia é pelos séculos”, isto é, eterna. Aqui foi vertido:

pelos séculos”, porque em alguns lugares da Escritura “pelos séculos” é tradução do grego: eis aiona e interpreta-se: eternamente. A misericórdia de Deus não é temporária, mas eter-na. É sobre-humana a misericórdia de Deus que faz com que os homens vivam eternamente na companhia dos anjos.



§ 3
2.3 “Digam-no os que foram pelo Senhor resgatados”.

De fato, foi resgatado o povo de Israel da terra do Egito, do jugo da escravidão, dos trabalhos infrutíferos, da fabricação de tijolos; vejamos, porém, se os que aqui falam são os que foram libertados pelo Senhor da escravidão do Egito. Não é bem assim. Mas quem são eles? “Os que ele resgatou das mãos dos inimigos”.

Ainda é possível dizer que os resgatados das mãos dos inimigos são eles, a saber, das mãos dos egípcios. Sejam declarados quais são propriamente os que este salmo canta.

E os reuniu dentre várias regiões”.

Podem ser ainda as regiões do Egito, pois muitas são as regiões de uma só província. Diga melhor o salmo:

Do oriente e do ocidente, do norte e do mar”.

Já compreendemos que estes resgatados são de todo o orbe da terra. Aqui, o povo de Deus, libertado do grande e amplo Egito, é de certo modo conduzido através do mar Vermelho, para no batismo exterminar os inimigos. Neste sacramento figurado pelo mar Vermelho, quer dizer, no batismo de Cristo, consagrado por seu sangue, são apagados os pecados, esses egípcios perseguidores. Tu escapas e não resta inimigo algum para te oprimir. Este povo, portanto, repita essas palavras. E agora, irmãos, ouçamos (uma vez que é guiado este povo de Deus) o que se realiza nessa reunião de todas as gentes, redimidas por Cristo. As realidades aqui cantadas não atingem simultaneamente a todos e sim a cada um dos fiéis em particular; no povo de Israel era diferente. Pois, o povo inteiro, toda a raça descendente de Abraão segundo a carne, toda a multidão da casa de Israel, uma vez retirada do Egito, uma vez conduzida através do mar Vermelho, uma vez levada até a terra da promissão, era simultaneamente atingida por esses eventos:

Estas coisas lhe aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos(1 Cr 10,11).

Quanto a nós porém, não fomos congregados todos simultaneamente, mas progressivamente um por um dos fiéis foi agregado àquela única cidade, ao único povo de Deus. Mas o que foi escrito atinge a cada um de nós, mesmo em particular, e realiza-se em todo o povo. De fato, o povo é formado de indivíduos, mas cada um não constitui um povo; com efeito, um só homem consta de povos? Mas o povo consta de particulares indivíduos. Enquanto estou a falar, se reconheces algo em ti, se experimentaste algo, teu pensamento não se limite a ti, pensando que tudo isso acontece somente a ti mesmo; mas crê que sucede a todos, ou a quase todos que vêm pertencer a este povo, e são redimidos, pelo precioso sangue, das mãos, dos inimigos.



§ 4
O salmista quis repetir assiduamente o versículo que acabamos de cantar:

Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias e por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens”.

O salmista, conforme pude notar, e vós igualmente podeis advertir, repete estes versículos quatro vezes. Este número, na medida que pudemos examinar com o auxílio do Senhor, representa-nos quatro tipos de tentações, das quais nos liberta aquele diante do qual confessamos suas misericórdias. Suponhamos um homem que nada busca e vive segundo a sedutora segurança da vida anterior, pensando que nada existe depois de terminada a presente vida; ele é negligente, preguiçoso e tem o coração imerso nos prazeres mundanos, e adormecido por deleites mortíferos. Não é preciso que o desperte a mão de Deus para que se levante a procurar a graça de Deus, torne-se solicito e acordado? Todavia, ele ignora quem é que o desperta. Com efeito, começa a pertencer a Deus ao reconhecer a verdade da fé. Mas antes de conhecer, lastima seu erro. Descobre que está em erro, quer conhecer a verdade, bate à porta a seu alcance, tenta o que pode, vaga por onde pode, e até mesmo sente a fome da verdade. Por conseguinte, a primeira tentação é a do erro e da fome. Quando fatigado por causa desta tentação clamar por Deus, é conduzido ao caminho da fé, e começa a andar por ele em direção à cidade de seu repouso. É conduzido, portanto, a Cristo que disse:

Eu sou o caminho(Jo 14,6).



§ 5
Já se achando ali, já conhecendo o que deve observar, por vezes atribuindo muito a si mesmo, e de certa maneira presumindo de suas forças, começa a querer combater contra os pecados, mas é vencido devido à soberba. Descobre que está amarrado pelas dificuldades dos maus desejos, e não pode seguir o caminho por causa de seus grilhões. Sente-se preso pela dificuldade dos vícios. Parece estar diante de um muro de impossibilidades, de portas fechadas e não encontra como escapar para viver corretamente. Já sabe como deve viver; pois anteriormente estava no erro, e sofria a fome da verdade; já recebeu o alimento da verdade e foi colocado no reto caminho. Ele ouve: Vive bem, conforme sabes. Pois anteriormente desconhecias como devias viver. Agora recebeste o ensinamento e sabes. Esforça-se, mas não pode. Sente-se amarrado, e clama pelo Senhor. A segunda tentação, portanto, está na dificuldade de agir bem, enquanto a primeira era a do erro e da fome. Clama também nesta pelo Senhor. O Senhor livra-o das necessidades, rompe os vínculos das dificuldades, estabelece-o num modo de agir eqüitativo. Começa a ser-lhe fácil o que fora difícil, a abster-se dos pecados, a não cometer adultério, nem furto, nem homicídio, nem sacrilégio, nem a ambicionar o alheio. Torna-se faculdade o que antes era dificuldade. O Senhor pôde conceder facilmente tudo isso. Mas se o obtivesse sem dificuldade, não reconheceria o doador de tal bem. Se pois inicialmente, pudesse logo que o quisesse, e não sentisse a oposição dos maus desejos, nem a alma se chocasse com o peso de seus vínculos, atribuiria às próprias forças o que percebia estar em seu poder, e não glorificaria as misericórdias do Senhor.



§ 6
Depois destas duas tentações, a primeira do erro e da penúria da verdade, a segunda da dificuldade de agir bem, uma terceira tentação ataca o homem; falo a quem já atravessou as outras duas. Pois, as duas, confesso, são muito conhecidas. Quem não sabe que passou da ignorância à verdade, do erro ao caminho, da fome da sabedoria à palavra da fé? Em seguida, muitos lutam com as di-ficuldades de seus vícios, e ainda amarrados a seus hábitos, gemem como se estivessem no cárcere, presos a grilhões. Reconhecem também esta tentação, embora já digam, se é que dizem:

Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24).

Vê que vínculos aper-tadíssimos:

Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne, de sorte que não fazeis o que quereis(Gl 5,17).

Portanto, já está auxiliado pelo espírito, de tal modo que não é adúltero como quis; como quis, não é ladrão; e evita as demais ações más que os homens querem vencer, mas muitas vezes dobram-se e são superados, para que clamem por Deus, que os livre de suas necessidades, e assim libertados confessem ao Senhor as suas misericórdias. Quem já for assim, e vencer aquelas dificuldades, já viver de forma honesta entre os homens, sem qualquer mancha em seus costumes, é atacado pela terceira tentação de certo tédio das delongas da vida presente de tal modo que por vezes não tenha gosto nem de ler, nem de rezar. A terceira tentação é oposta à primeira. Antes corria perigo pela fome, depois pelo fastio. De onde provém isto senão de certa doença da alma? O adultério já não te atrai, mas também não te deleita a palavra de Deus. Então, após o perigo da ignorância e da concupiscência, das quais te alegras de ter escapado, cuida que não te mate o tédio e o fastio. Não é leve esta ten-tação. Reconhece que ela te ataca e clama pelo Senhor, a fim de que te liberte também nisso de tuas necessidades. E ao seres libertado dessa tentação, confessa as suas misericórdias.



§ 7
Libertado, porém, do erro, libertado da dificuldade de agir bem, libertado do tédio e fastio de ouvir a palavra de Deus, talvez te tornes digno de que te seja confiado o governo do povo; serás estabelecido timoneiro da nave, deves reger a Igreja. Aqui está a quarta tentação. A Igreja é batida pelas tempestades do mar; perturba-se o timoneiro. Enfim, aquelas três tentações podem atingir qualquer fiel do povo de Deus; a quarta nos é peculiar. Quanto maior a honra, tanto mais periclitamos. É de temer que o perigo do erro afaste algum de vós da verdade; é de temer não seja alguém vencido por sua ambição e prefira segui-la a clamar pelo Senhor na hora da dificuldade; é de recear que alguém seja levado a não saborear mais a palavra de Deus e morra de fastio; a tentação, porém, do governo, a tentação perigosa na direção da Igreja toca principalmente a nós mesmos. Mas como ficareis alheios a ela, se toda a nave corre perigo? Toquei no assunto a fim de que acerca desta quarta tentação, como se fosse exclusivamente nossa (e é preciso que não desistais de rezar, porque sereis os primeiros a naufragar), não tenhais menor solicitude e não rezeis menos por nós. Então, irmãos, pelo fato de não estardes sentados junto ao leme, não navegais na mesma nave?



§ 8
Após estas quatro tentações, quatro clamores, quatro libertações, quatro confissões das misericórdias do Senhor, de modo geral neste salmo conseqüentemente se recomenda a Igreja; assim, evidentemente reconhecereis de qual Igreja o salmo tratava no começo. É recomendada, contudo, de tal forma que a graça de Deus seja em tudo anunciada, porque “Deus resiste aos soberbos, mas dá graças aos humildes(Tg 4,6).

O Senhor veio para que os que não enxergam vejam, e os que vêem tornem-se cegos(Jo 9,39).

E:

Seja entulhado todo vale, todo monte e toda colina sejam nivelados(Is 40,4).

Relembrado isto, o salmo fala algo que se aplica também aos hereges, que atacam a Igreja como numa guerra civil; depois termina o salmo, que expliquei, mais resumidamente talvez do que supúnheis. Pois, até aqui considero ter explicado todo o salmo, que é um tanto prolixo, de tal forma que não deveis esperar de mim o trabalho de comentador, mas antes de leitor, se guardardes o que disse. Julgo, pois, que o tendes diante dos olhos; mas para relembrá-lo melhor, vamos repeti-lo brevemente. A primeira tentação é a do erro e da fome da palavra; a segunda, a da dificuldade de vencer as concupiscências; a terceira, a do tédio e fastio; a quarta, a de tempestades e perigos no governo das igrejas; e em to-das elas clamores, libertações e confissões das misericórdias de Deus. Finalmente faz-se menção da própria Igreja, salva pela graça de nosso Deus, e não por mérito seu; e menciona-se a tribulação proveniente dos inimigos, devido a sua soberba; extintos esses, a Igreja se levanta; por causa das insídias dos hereges, certa diminuição, e da parte dos familiares algum detrimento; nestas circunstâncias, os benefícios divinos conferidos à Igreja; e a conclusão do salmo. Vamos agora ler mais do que comentar.



§ 9
2.9 “Digam-no os que foram resgatados pelo Senhor, os que ele resgatou das mãos dos inimigos. E os reuniu dentre várias regiões, do oriente e do ocidente, do norte e do mar”.

Digam-no, portanto, os cristãos, convocados de todo o orbe.

Erraram no deserto sem água, não encontraram caminho de cidade onde habitar”.

Ouvimos alusão a um engano miserável; e qual a penúria? “Esfaimados e sedentos, sua alma desfaleceu”.

Mas por que desfaleceu? Que bem lhe faltou? Pois, Deus não é cruel; mas recomenda a si mesmo, o que nos convém, a fim de que peçamos quando desfalecemos, e amamos ao nos socorrer. Por isto, após este erro, fome e sede, “angustiados, clamaram ao Senhor e ele os livrou de suas aflições”.

E que lhes prestou quando erravam? “Conduziu-os pelo caminho reto”.

Eles não encontravam o caminho de uma cidade para habitarem, tinham fome, ardiam de sede e desfaleciam, mas o Senhor “conduziu-os pelo caminho reto, para chegarem a uma cidade onde morar”.

Ainda não declarou o salmo como ele socorreu-os em sua fome e sede, mas esperai também isso.

Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias e por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens”.

Dizei, vós, homens experimentados aos inexperientes, uma vez que já vos achais no caminho, já orientados para encontrar a cidade, já libertos da fome e da sede:

Porque dessendentou a alma sequiosa e cumulou de bens a alma faminta”.



§ 10
10.17 Por conseguinte, vive bem; já estás no caminho, já ouviste o que deves fazer, o que esperar. Que mais? Esforças-te e não consegues superar? “Sentados nas trevas e nas sombras da morte, jaziam cativos na miséria e em correntes”.

Donde provém isto, senão porque atribuías a ti mesmo tudo, não reconhecias a graça de Deus, não aceitavas o desígnio de Deus a teu respeito? Vê como prossegue o salmo:

Por se haverem rebelado contra as palavras de Deus”, por soberba, desconhecendo a justiça do Senhor e procurando estabelecer a sua própria (Rm 10,3).

E desprezado os desígnios do Altíssimo. Seu coração se abateu com os trabalhos”.

E agora luta contra a concu-piscência. Deus retira seu auxílio: podes esforçar-te, mas não vencer. E ao seres pressionado pelo mau hábito, teu coração se abaterá com os trabalhos. De coração humilhado aprendas a clamar:

Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte”? (Rm 7,24).

Seu coração se abateu com os trabalhos. Perderam as forças e ninguém veio ajudá-los”.

Que resta a explicar, a não ser o motivo por que assim sucedeu? “Se tivesse sido dada uma lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente, a justiça viria da Lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem(Gl 3,21.22).

Ora, a lei interveio para que avultassem as faltas(Rm 5,20).

Recebeste a palavra, recebeste o preceito, e não deixas de fazer o mal que praticavas. Recebido o preceito, aumentas a gravidade do pecado pela prevaricação. Ó soberbo, se não te conhecias a ti mesmo, aprende a conhecer-te depois de humilhado. Clamarás e serás libertado da necessidade. Libertado, confessarás as misericórdias do Senhor.

Angustiados, clamaram ao Senhor e ele os livrou de suas aflições”.

Foram libertados da segunda tentação, resta a do tédio e do fastio. Mas antes vede o que o Senhor concedeu a esses que foram libertados.

Tirou-os das trevas e da sombra da morte e despedaçou-lhes os grilhões. Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias e por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens”.

Qual a razão? Que dificuldades venceu? “Porque arrombou portas de bronze e quebrou trancas de ferro. Retirou-os do caminho de suas iniqüidades. Foram humilhados por causa de seus delitos”.

Porque atribuíam o feito a si mesmos, não a Deus; foram humilhados por terem estabelecido a própria justiça, desconhecendo a justiça de Deus. Perceberam que nada podiam sem o auxílio de Deus aqueles que presumiam unicamente de suas forças.



§ 11
18.22 Mas que espécie de tentação ainda falta? “A alma deles rejeitou todo alimento”.

Já sofrem de fastio, desfalecem de fastio, estão em perigo por causa do fastio. A menos que penses que a fome podia matá-los, mas não o fastio. Vê como continua o salmo, depois do versículo:

A alma deles rejeitou todo alimento”, para não pensares que estavam seguros devido à saciedade; verás antes que estavam para morrer de fastio:

E eles chegaram às portas da morte”.

Que falta, então? Se a palavra de Deus te deleita, não o atribuas a ti mesmo, nem por isso te inches de arrogância e ávido do alimento, orgulhosamente ataques os que estão em perigo de vida por fastio. Entende que isto te foi concedido e não provém de ti mesmo. Pois, o que possuis que não tenhas recebido? (1 Cor 4,7).

Por conseguinte, compreendendo isto, e periclitando por causa deste vício, desta doença, faze como segue:

Angustiados, clamaram ao Senhor e ele os livrou de suas aflições”.

Visto ser doença não se deleitar na palavra:

Enviou sua palavra e os curou”.

Nota o mal que é o fastio. Vê de onde li-berta aquele a quem clama o enfastiado.

Enviou sua palavra e os curou e os preservou”.

De quê? Não do erro, não da fome, não da dificuldade de vencer os pecados, mas da “corrupção”.

É certa corrupção da mente ter fastio do que é doce. Portanto, acerca deste benefício, como dos demais acima mencinados:

Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias, por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens. E ofereçam sacrifícios de louvor”.

O Senhor já é suave, e por isso é louvado.

E proclamem com alegria as suas obras”; não é com tédio, não com tristeza, não com ansiedade, não com fastio, mas “com alegria”.



§ 12
23.31 Falta a quarta tentação, na qual todos nós pericli-tamos. Pois, todos nós estamos num navio; os marinheiros trabalham e os outros são levados; simultaneamente, contudo, todos tanto correm perigo nas tempestades, como se salvam no porto. Por isso, prossegue o salmo no fim disso tudo:

Os que sulcam o mar em navios para trafegar nas grandes águas”, isto é, entre muitos povos. Com freqüência as águas representam os povos, conforme atesta o Apocalipse, onde João interroga o que significavam aquelas águas, e obteve a resposta:

São povos(Ap 17,15).

Por conseguinte, os que sulcam muitas águas para trafegar, “contemplaram as obras do Senhor e as suas maravilhas nas profundezas”.

Que há de mais profundo do que o coração do homem? Dali, freqüentemente irrompem ventos, tempestades de sedições e dissensões, perturbando a nave. E o que acontece nestas circunstâncias? Querendo Deus que clamem por ele, os marinheiros e os viajantes, “ele falou e manteve-se um vento tempestuoso”.

Que quer dizer:

manteve-se?” Permaneceu, perdurou. Agita, longamente sacode a nave, enfurece-se e não passa. Pois, “ele disse e manteve-se um vento tempestuoso”.

E que provocou este vento tempestuoso? “Encresparam-se as ondas. Subiam aos céus”, com ousadia; “e desciam aos abismos”, com temor.

Subiam aos céus, desciam aos abismos”: fora combates, dentro temores.

A alma deles se consumia nos perigos. Perturbaram-se e cambalearam como um ébrio”.

Os timoneiros que amam fielmente sua nave, compreendem o que digo:

Perturbaram-se e cambalearam como um ébrio”.

Certamente quando falam, quando lêem, quando expõem, parecem sábios. Ai, durante a tempestade! “E toda a sua sabedoria se esvaiu”.

Por vezes falham todos os planos humanos. Para todos os lados que se volte alguém, há bramido das ondas, a tempestade é furiosa, os braços desfalecem. O comandante não vê absolutamente para onde lançar a proa, que lado oferecer às ondas, aonde deixar que a nave seja impelida, que rochedos evitar para não naufragar. E que resta, senão o seguinte? “Angustiados, clamaram ao Senhor e ele os livrou de suas aflições. Ordenou à procela, que se transformou em leve brisa”.

Não durou a tempestade, mas transformou-se em “leve brisa. E os vagalhões emudeceram”.

Ouvi sobre este assunto a voz de um piloto que correu perigo, foi abatido, e depois libertado:

Não queremos, irmãos, que o ignoreis: a tribulação que padecemos na Ásia, acabrunhou-nos ao extremo, além das nossas forças, a ponto de(vejo toda a sua sabedoria se esvair)termos tédio até de viver”.

E então? O Senhor a tal ponto abandonaria os desanimados? Ou não seria que eles desfaleceram para que Deus encontrasse neles sua glória? Finalmente, como prossegue? “Sim, recebêramos em nós mesmos a nossa sentença de morte, para que a nossa confiança já não se pudesse fundar em nós mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos(2 Cor 1,8.9).

E ordenou à procela que se transformou em leve brisa”.

Eles já haviam recebido em si a sentença de morte, pois toda a sua sabedoria se esvaíra.

E os vagalhões emudeceram. E alegraram-se por vê-los amainados. Conduziu-os ao porto desejado. Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias”.

Em toda parte absolutamente, em toda parte “glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias”, não por nossos méritos, não por nossas forças, não por nossa sabedoria. Seja amado em qualquer libertação nossa aquele que invocamos em toda tribulação.

Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias, por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens”.



§ 13
32.38 E vede por que motivo o salmo assim se exprime, porque assim fala, porque enumero tudo isso, onde estas coisas se realizam.

Exaltem-no na assembléia do povo e louvem-no na cátedra dos anciãos. Exaltem-no”, isto é, “louvem-no”, e “louvem-no”, isto é, “exaltem-no”.

Exal-tem, louvem, os povos e os anciãos, os comerciantes e os pilotos. Pois, o que ele fez nesta assembléia? Que estabeleceu nela? Donde a tirou? Que lhe prestou? Como resistiu aos soberbos, e deu a graça aos humildes (cf Tg 4,6).

Aos soberbos, isto é, ao primitivo povo dos judeus, arrogante e orgulhoso de ser da raça de Abraão, e de que à sua gente tenham sido confiadas as palavras de Deus (cf Rm 3,2).

Estas não lhe valiam para seu bem-estar, mas para exaltação do coração, para um tumor mais do que para sua estatura. Que fez, então, Deus, ao resistir aos soberbos e ao dar aos humildes a graça, amputando os ramos naturais devido ao orgulho e enxertando a oliveira silvestre por causa da humildade? (cf Rm 11,17-24).

Que fez Deus? Ouvi duas coisas: primeiro, como Deus resiste aos soberbos, e em seguida como dá a graça aos humildes.

Converteu rios em deserto”.

Ali corriam as águas, corriam as profecias. Se procuras agora um profeta entre os judeus, não encontras. Pois, “converteu rios em deserto, e mananciais em terra árida. Converteu rios em deserto”.

Digam:

Já não há profeta, nem mais, entre nós, quem seja conhecido(Sl 73,9).

Converteu rios em deserto, e mananciais em terra árida, solo fértil em salsugem”.

Procuras ali a fé em Cristo e não encontras; procuras um profeta e não encontras; procuras um sacerdote e não encontras; procuras um sacrifício e não encontras; procuras um templo e não encontras. Por quê? Porque ele “converteu rios em deserto e mananciais em terra árida, solo fértil em salsugem”.

Por que razão? “Por causa da malícia de seus habitantes”.

Eis como resiste aos soberbos. Ouve como dá a graça aos humildes.

Converteu o deserto em lagos e a terra árida em fontes de águas. Ai estabeleceu os famintos”.

Com efeito, foi dito a Cristo:

Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec(Sl 109,4).

Procuras, então, o sacrifício entre os judeus; não achas sacrifício segundo a ordem de Aarão, porque o Senhor converteu rios em deserto; procuras segundo a ordem de Melquisedec e não o encontras no meio deles, mas este é celebrado na terra inteira na Igreja.

Desde o nascente ao poente, louvai o nome do Senhor(Sl 112,4).

E Deus fala àqueles cujos rios ele converteu em deserto:

Não tenho prazer algum em vós, disse o Senhor, e não me agrada a oferenda de vossas mãos. Sim, do levantar ao pôr-do-sol, será oferecido ao meu nome um sacrifício puro(Ml 1,10.11).

Eram imundos os sacrifícios, quando havia o deserto, quando os povos eram incultos, eram salsugem. Ali agora encontram-se fontes, ali há rios, ali existem lagos e fontes de águas. Portanto, o Senhor resistiu aos soberbos e deu aos humildes a graça.

Aí estabeleceu os famintos, porque os pobres hão de comer e saciar-se(Sl 21,27).

E fundaram uma cidade habitável”.

Por enquanto, uma habitação em esperança, porque “quem me escuta viverá com esperança(Pr 1,33, sg LXX).

E fundaram uma cidade habitável. Semearam campos e plantaram vinhas, colheram a produção de trigo”.

Com uma colheita dessas, alegra-se aquele operário que disse:

Não que eu busque presentes; o que busco é o fruto que se credite em vossa conta(Fl 4,17).

Abençou-os e se multiplicaram grandemente. Não diminuiram seus jumentos”.

Isto é firme.

Pois, não obstante, o sólido fundamento colocado por Deus permanece. O Senhor conhece os que lhe pertencem(2 Tm 2,19).

Jumentos e animais representam os que vivem com simplicidade, mas utilmente, na Igreja; não são muito instruídos, mas cheios de fé. Portanto, tanto os espirituais como os carnais, “Deus os abençoou e se multiplicaram grandemente. Não diminuíram seus jumentos”.



§ 14
39.42 “Depois seu número se reduziu. Foram maltratados”.

De onde veio isso? Do sentido contrário? Não; absolutamente. De dentro. Para serem reduzidos, “eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos(1Jo 2,19).

Ora, parece falar dos mesmos que mencionara antes, mas tenha-se inteligente discernimento. Refere-se a alguns, aparentemente os mesmos, por causa dos sacramentos comuns. De fato, pertencem ao povo de Deus, se não pela virtude, certamente pela aparência de piedade. Acerca deles, ouvimos a sentença do Apóstolo:

Nos últimos dias sobrevirão momentos difíceis. Os homens serão egoístas(2 Tm 3,1.2).

O primeiro mal é o seguinte:

egoístas”, comprazem-se em si mesmos. Oxalá tivessem desgosto por si e agradassem a Deus; oxalá clamassem em suas dificuldades e fossem libertados de suas aflições. Mas, como presumiam demais de si mesmos, “seu número se reduziu”.

É manifesto, irmãos, que se reduzem em número, que se apartam da unidade. Na unidade são muitos, enquanto dela não se separam; ao começarem a deixar a multidão da unidade, seu número se reduz na heresia e no cisma.

Seu número se reduziu. Foram maltratados, oprimidos por tribulações e dores”.

O Senhor “lançou o desprezo sobre os príncipes”, que foram reprovados pela Igreja de Deus. Tanto mais por terem querido ser príncipes. Foram menosprezados, tornaram-se insossos, sendo lançados fora e calcados pelos homens (cf Mt 5,13).

Lançou o desprezo sobre os príncipes. Seduziu-os por lugares ínvios e não por um caminho”.

Os outros, citados acima, estavam no caminho, eram dirigidos para a cidade, enfim levados, não seduzidos; estes, ao contrário, foram seduzidos por lugares ínvios. Que quer dizer:

Seduziu-os? Deus os entregou, segundo o desejo de seus corações(Rm 1,24).

Este o significado da expressão:

seduziu-os”, entregou-os a si mesmos. Mas, se procurares o sentido próprio, eles mesmos se seduzem.

Se alguém pensa ser alguma coisa, nada sendo, engana a si mesmo(Gl 6,3).

Que quer dizer:

seduziu-os? “ Abandonou- os.

Por lugares ínvios e não por um caminho”.

Como estarão no caminho aqueles que pertencem a um partido e abandonam o todo? Como estarão no caminho? Qual, então, o caminho, ou como se reconhece o caminho? Diz o salmo:

Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça luzir sobre nós o brilho de sua face para que conheçamos na terra o teu caminho”.

Em que terra? “Em todos os povos a tua salvação(Sl 66,2.3).

Efetivamente, eles se reduziram, tornaram-se poucos, porque saíram daqui. Deixaram todos a multidão da unidade, conforme mais acima mencionei:

Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco(1Jo 2,19).

Mas se acaso forem dos nossos, por oculta presciência de Deus, necessariamente voltarão. Quantos dos nossos parecem estar dentro e quantos ainda parecem estar fora? “O Senhor conhece os que lhe pertencem(2 Tm 2,19).

E aqueles que não são dos nossos e estão dentro, quando encontrarem ocasião propícia, saem; e dos nossos que estão fora, em ocasião oportuna, voltam. Por conseguinte, aceitai o fato de que Deus conhece, e de acordo com isso, “seduziu-os por lugares ínvios e não por um caminho”.

E que fez deles? Aquilo que eu começara a dizer e que deveis ouvir atentamente. Deus poderia suportá-los sempre dentro, mas não teríamos proveito com isso; ao se separarem e nos molestarem com questões malignas, são-nos propostos o esforço da pesquisa e o exemplo que nos atemoriza. Treme cada um, vendo como o outro sai, e como se lhe fosse dito por causa desta saída:

Assim, pois, aquele que julga estar de pé, tome cuidado para não cair(1 Cor 10,12).

São, portanto, de proveito porque saem; pois, se ficassem dentro, sendo tão maus, para nada serviriam. Que afirma deles um salmo? “A manada de touros”, isto é, dos obstinados e soberbos; “a manada de touros com o rebanho dos povos(Sl 67,31).

Rebanho” são as almas fracas, que facilmente se deixam levar pelos touros sedutores. Mas por que isso? “Para que sejam excluídos os que foram experimentados como a prata”.

Que significa:

Para que sejam excluídos?” Para que apareçam, para que se destaquem aqueles que foram provados pela palavra de Deus. Pois, ao sermos obrigados a responder aos hereges, utilmente se edificam os católicos. Paulo exprime claramente esta sentença:

É preciso que haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados(1 Cor 11,19).

É preciso que haja touros sedutores, “a fim de que se tornem manifestos os que são comprovados como a prata, isto é, sejam excluídos”.

Que quer dizer:

comprovados com a prata? Palavras do Senhor, palavras puras. Prata pelo fogo acrisolada de terra, sete vezes depurada(Sl 11,19).

Todos os que são provados, como esta prata, isto é, pela palavra de Deus, não podem manifestar prata, a não ser molestados pelas questões dos hereges. E aqui, prestai atenção; não foi omitido: Foi lançado “o desprezo sobre os príncipes”, sobre aqueles touros. Por que foram desprezados? Quando anunciavam coisa diferente. Como foram desprezados? Foram anatematizados.

Pois, se alguém vos anunciar um evangelho diferente do que recebestes, seja anátema”.

Que há de mais desprezível do que o sal insípido, que é lançado fora e calcado aos pés? E vede se não se trata de príncipes; ouvi falar o próprio Paulo:

Entretanto, se alguém — ainda que nós mesmos ou um anjo do céu — vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema(Gl 1,8-9).

São príncipes, são instruídos, são grandes, são pedras preciosas. Que acrescentarás ainda? Acaso são anjos? “Entretanto, se alguém — um anjo do céu — vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema”, pois o próprio diabo, um anjo do céu, caiu.

Lançou o desprezo sobre os príncipes. Retirou o pobre da penúria”.

Que quer dizer, irmãos: os príncipes foram desprezados e o pobre foi auxiliado? Foram rejeitados os soberbos e socorridos os humildes. Assim agiu Deus, e desta forma “retirou o pobre da penúria”.

É um mendigo, aquele que nada atribui a si mesmo, esperando tudo da misericórdia de Deus. Grita diariamente diante da porta do Senhor, batendo para que se lhe abra, nu e tremendo de frio para receber uma veste, com os olhos pregados no chão, e batendo no peito. Deus ajuda muito a este pobre, este mendigo, este humilde, também separando-o dos hereges, porque estes se tornaram poucos, foram maltratados, seduzidos por lugares ínvios e não por um caminho. Enfim, depois que eles foram reduzidos, seduzidos, poucos, maltratados, que acontece ao pobre que foi socorrido? “Arrebanhou as famílias qual ovelhas”.

Parecia ser um só pobre, um só mendigo, a respeito do qual disse o salmo:

Retirou o pobre da penúria”, mas este pobre representa muitas famílias, este pobre figura muitos povos; muitas Igrejas formam uma só Igreja, um só povo, uma só família, uma só ovelha.

Arrebanhou as famílias qual ovelhas”.

Grande mistério, grandes sacramentos, quão profundos, plenos de mistérios! É tão doce descobri-los quanto mais tempo escondidos estavam. Por conseguinte, “verão os retos e alegrar-se-ão. E toda iniqüidade fechará a boca”.

A iniqüidade, a gritar contra a unidade, forçando-a a manifestar a verdade, convicta “fechará a boca”.



§ 15
43 “Quem é sábio para guardar estas coisas e compreender as misericórdias do Senhor?” Vede como termina o salmo:

Quem é sábio para guardar estas coisas?” E sendo sábio, o que guardará? Isto é, se é pobre, guarda; se não é rico, isto é, não é soberbo, não está inchado de or-gulho, guarda estas coisas. Qual o motivo de guardá-las? Porque “compreende as misericórdias do Senhor”, não por seus méritos, não por suas forças, não por seu poder, mas pelas “misericórdias do Senhor”, que conduziu e alimentou o errante e necessitado no caminho; que soltou e libertou aquele que lutava contra a dificuldade dos pecados, preso aos vínculos dos maus hábitos; que refez aquele que tinha fastio da palavra de Deus e quase morria de tédio, enviando o remédio de sua palavra; que reconduziu o que periclitava nos riscos de naufrágio e de procelas, aplacando o mar e levando aquele ao porto; que, finalmente, o estabeleceu no meio do povo, em que ele dá a graça aos humildes (e não entre aquele onde resistem aos soberbos), tornando-o seu, a fim de se multiplicar permanecendo dentro, e não ser reduzido indo para fora. Os retos vêem estas coisas e alegram-se. Portanto, “toda iniqüidade fechará a boca e quem é sábio para guardar essas coisas?” Como guardará? Pela humildade, entendendo as misericórdias do Senhor, pois em toda parte se diz:

Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias, por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens”.