ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 105 | ||
§ 105:1 | Ɗ Dai graças ao Senhor; invocai o seu nome; fazei conhecidos os seus feitos entre os povos. | |
§ 105:2 | Ƈ Cantai-lhe, cantai-lhe louvores; falai de todas as suas maravilhas. | |
§ 105:3 | ʛ Gloriai-vos no seu santo nome; regozije-se o coração daqueles que buscam ao Senhor. | |
§ 105:4 | Ꞗ Buscai ao Senhor e a sua força; buscai a sua face continuamente. | |
§ 105:5 | Ł Lembrai-vos das maravilhas que ele tem feito, dos seus prodígios e dos juízos da sua boca, | |
§ 105:6 | ⱱ vós, descendência de Abraão, seu servo, vós, filhos de Jacó, seus escolhidos. | |
§ 105:7 | ⱻ Ele é o Senhor nosso Deus; os seus juízos estão em toda a terra. | |
§ 105:8 | Ł Lembra-se perpetuamente do seu pacto, da palavra que ordenou para mil gerações; | |
§ 105:9 | ɖ do pacto que fez com Abraão, e do seu juramento a Isaque; | |
§ 105:10 | ⱺ o qual ele confirmou a Jacó por estatuto, e a Israel por pacto eterno, | |
§ 105:11 | ɖ dizendo: A ti darei a terra de Canaã, como porção da vossa herança. | |
§ 105:12 | Ꝙ Quando eles eram ainda poucos em número, de pouca importância, e forasteiros nela, | |
§ 105:13 | ɑ andando de nação em nação, dum reino para outro povo, | |
§ 105:14 | ɲ não permitiu que ninguém os oprimisse, e por amor deles repreendeu reis, dizendo: | |
§ 105:15 | Ɲ Não toqueis nos meus ungidos, e não maltrateis os meus profetas. | |
§ 105:16 | Ƈ Chamou a fome sobre a terra; retirou-lhes todo o sustento do pão. | |
§ 105:17 | ⱻ Enviou adiante deles um varão; José foi vendido como escravo; | |
§ 105:18 | ᵮ feriram-lhe os pés com grilhões; puseram-no a ferro, | |
§ 105:19 | ɑ até o tempo em que a sua palavra se cumpriu; a palavra do Senhor o provou. | |
§ 105:20 | Ꝋ O rei mandou, e fez soltá-lo; o governador dos povos o libertou. | |
§ 105:21 | Ƒ Fê-lo senhor da sua casa, e governador de toda a sua fazenda, | |
§ 105:22 | ᵽ para, a seu gosto, dar ordens aos príncipes, e ensinar aos anciãos a sabedoria. | |
§ 105:23 | ⱻ Então Israel entrou no Egito, e Jacó peregrinou na terra de Cão. | |
§ 105:24 | ⱻ E o Senhor multiplicou sobremodo o seu povo, e o fez mais poderoso do que os seus inimigos. | |
§ 105:25 | ɱ Mudou o coração destes para que odiassem o seu povo, e tratassem astutamente aos seus servos. | |
§ 105:26 | ⱻ Enviou Moisés, seu servo, e Arão, a quem escolhera, | |
§ 105:27 | ⱺ os quais executaram entre eles os seus sinais e prodígios na terra de Cão. | |
§ 105:28 | ɱ Mandou à escuridão que a escurecesse; e foram rebeldes à sua palavra. | |
§ 105:29 | Ƈ Converteu-lhes as águas em sangue, e fez morrer os seus peixes. | |
§ 105:30 | Ɑ A terra deles produziu rãs em abundância, até nas câmaras dos seus reis. | |
§ 105:31 | ⱻ Ele falou, e vieram enxames de moscas em todo o seu têrmo. | |
§ 105:32 | Ɗ Deu-lhes saraiva por chuva, e fogo abrasador na sua terra. | |
§ 105:33 | Ƒ Feriu-lhes também as vinhas e os figueirais, e quebrou as árvores da sua terra. | |
§ 105:34 | ⱻ Ele falou, e vieram gafanhotos, e pulgões em quantidade inumerável, | |
O SALMO 105 | ||
§ 1 | 1 O salmo centésimo quinto também traz a nota prévia: “Aleluia”, por duas vezes. Alguns, porém, afirmam que um aleluia pertence ao final do salmo anterior, e o outro ao princípio deste. E asseguram-no porque todos os salmos aleluiáticos têm no final um aleluia; nem todos, contudo, no início. Daí provém que todo salmo que não conclui com um aleluia, eles julgam que não deve tê-lo no começo. Quanto ao aleluia que parece ser do começo deste salmo, deve pertencer ao termo do antecedente. Nós, porém, até que por provas seguras formos persuadidos de que isto é verdade, seguimos o costume de muitos que atribuem o aleluia ao salmo onde o encontram, em seu início. Efetivamente, pouquíssimos são os códices (entre os códices gregos que pude examinar, nenhum encontrei) que tenham aleluia no fim do salmo cento e cinqüenta; depois deste salmo não há outro no cânon das Escritu-ras. Nem isto poderia apoiar o costume, mesmo que todos os códices o trouxessem. Pois, é possível que por alguma razão relativa ao louvor de Deus o livro inteiro dos salmos, que consta de cinco livros (pois, diz-se que onde se acha inscrito: “Fiat, fiat”, assim seja, trata-se do final de um livro), depois de tudo o que foi cantado, encerre-se com um último aleluia. Nem acho necessário, tendo em vista o fim do salmo centésimo quinquagésimo, que todos os salmos aleluiáticos tenham no final um aleluia. Não sei por que motivo no começo do salmo se duplica o aleluia, como também não sei porque o Senhor uma vez diz um “amém”, e em outras passagens profere dois; da mesma forma, não sei por que às vezes temos um aleluia, outras vezes dois; principalmente porque ambos os aleluias vêm depois do número do salmo, como neste salmo centésimo quinto. Se um deles pertencesse ao salmo anterior devia ser colocado antes do número; e depois do número do salmo se escreveria o outro aleluia, pertencente a este mesmo salmo. Mas pode ser que nisto tenha prevalecido um costume inadequado; e pode aparecer algo, que ainda ignoramos, que nos ensine melhor a verdade do que o preconceito de um costume. Agora, entretanto, até que o apren-damos melhor, todas as vezes que depois do número do salmo, encontramos o aleluia, seja uma ou duas vezes, segundo o costume muito difundido da Igreja, atribuiremos ao salmo deste número. Confessamos que ainda não conseguimos penetrar, como queríamos, no sentido obscuro de todos os títulos dos salmos, nem na ordem dos mesmos, apesar de considerarmos ser isto importante. | |
§ 2 | Vejo, todavia, que estes dois salmos, o centésimo quarto e o centésimo quinto são de tal forma unidos que um deles, o precedente, recomenda os eleitos de Deus em seu povo, sem acusá-los de coisa alguma, e penso que se trata daqueles que agradaram a Deus (cf 1Cor 10,5); neste salmo, porém, que vem logo em seguida, trata daqueles que murmuraram, embora pertecessem ao mesmo povo; a misericórdia de Deus, no entanto, não faltou nem a estes últimos. Falam aqueles que, convertidos, pedem perdão. O salmista alude aos exemplos daqueles nos quais se manifestou abundantemente a misericórdia de Deus, apesar de serem pecadores. Com efeito, este salmo começa como o salmo cento e quatro: “Confessai ao Senhor”. Mas, este último continua: “e invocai o seu nome” (Sl 104,1), enquanto o cento e cinco prossegue: “Porque ele é bom, porque eterna é a sua misericórdia”. Por isso, pode- se entender aqui que se refere à confissão dos pecados; pois, após alguns versículos, continua o salmo: “Pecamos, como os nossos pais, agimos injustamente, cometemos a iniqüidade”. Quanto à locução: “Porque ele é bom, porque eterna é a sua misericórdia”, de fato, trata-se do louvor de Deus e da confissão em seu louvor. Embora, ao confessar alguém seus pecados, deva confessar louvando a Deus, pois somente é piedosa a confissão quando o pecador não desespera, mas suplica a misericórdia de Deus. Inclui, portanto, o louvor de Deus, seja por palavras, declarando-o bom e misericordioso, seja pelos afetos, acreditando nisso. Efetivamente daquele publicano somente estas palavras foram citadas: “Senhor, tem piedade de mim, pecador!” (Lc 18,13). Apesar de não ter dito: Porque és bom e misericordioso, ou coisa semelhante, não teria proferido aquelas palavras, se não cresse nisso. Rezou esperançoso; não seria possível fazê-lo sem a fé. Com efeito, é possível haver louvor de Deus verdadeiro e piedoso, independente da confissão. Não existe, contudo, confissão dos pecados piedosa e útil, sem louvor de Deus, de coração, ou também de boca ou nas palavras. Quanto ao que contêm alguns códices: “Porque ele é bom”, outros trazem: “Porque ele é suave”. Uma só palavra grega: xenotós recebeu diversa interpretação. Igualmente: “Porque sua misericórdia dura séculos”, traduz o grego que pode também ser vertido por: “em eterno”. Com efeito, se aqui se trata da misericórdia, pela qual ninguém é feliz longe de Deus, é melhor traduzir: “eterna é a sua misericórdia”. Se, ao invés, refere-se à misericórdia prestada aos infelizes, que os consola no infortúnio, ou dele os liberta, é melhor verter: “dura séculos”, isto é, até o fim dos séculos, enquanto os infelizes que necessitam de misericórdia não faltam. A não ser que alguém ouse afirmar que mesmo os que serão condenados com o diabo e seus anjos não serão alvo de alguma misericórdia da parte de Deus; não quero dizer que sejam libertados da condenação, e sim que esta será de algum modo mitigada, e assim pode-se dizer que será eterna a misericórdia de Deus em sua eterna infelicidade. Mas lemos que alguns terão uma condenação mais tolerável do que outros. No entanto, quem ousaria assegurar que seja mitigada a pena de alguém, ou que haja alguma pausa em certos intervalos, se de fato aquele rico não mereceu receber nem uma gota d’água? (cf Lc 16,24-26). Mas, num assunto de tal importância seria preciso mais tempo para expô-lo cuidadosamente; no momento, quanto a esse salmo, baste o que foi dito até aqui. | |
§ 3 | 2.3 “Quem contará os feitos poderosos do Senhor?” O salmista, repleto da consideração das obras divinas que exigem a misericórida de Deus, pergunta: “Quem contará os feitos poderosos do Senhor e fará ouvir todos os seus louvores?” Subentende-se o que foi dito acima, de sorte que a sentença completa seria: “Quem fará ouvir todos os seus louvores?” isto é, quem é idôneo para fazer ouvir todos os seus louvores? “Fazer ouvir”, isto é, fazer com que se ouçam; mostra que de tal modo devem-se narrar os feitos do Senhor e seus louvores que sejam anunciados aos ouvintes. Mas quem pode anunciar todos eles? Ou talvez como o salmista prossegue: “Felizes os que observam o juízo e praticam a justiça em todo tempo”, denominando louvores de Deus os constituídos por suas obras, em seus preceitos? Diz o Apóstolo: “É Deus quem opera em vós” (Fl 2,13). E foi dito à descendência de Abraão: “Cantai-lhe e entoai-lhe salmos”. Entendêmo-lo como se tivesse exortado: Falai o que é bom e praticai-o, em louvor a Deus. Os dois verbos, isto é, cantar e entoar salmos adaptam-se aos dois versículos seguintes, de tal forma que: “Narrai todas as suas maravilhas” corresponde a: “Cantai-lhe”; quanto à expressão: “gloriai-vos de seu nome santo” relaciona-se com: “entoai-lhe salmos” (Sl 104,2.3). O próprio Senhor também se dirige, de fato, a esta descendência: “Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16). Daí procede que o salmista considerando os preceitos de Deus e que as obras provenientes destes mesmos preceitos revertem em louvor daquele que opera nos seus, disse: “Quem contará os feitos poderosos do Senhor?” porque ele os opera inefavelmente. “Quem fará ouvir todos os seus louvores?” isto é, quem ao ouvir, fará tudo em louvor de Deus, a saber, praticará obras segundo seus preceitos? Ao se realizar isso, apesar de não se realizar tudo o que é ouvido, seja louvado aquele que “opera em vós o querer e o ope-rar, segundo a sua vontade” (Fl 2,13). Assim, quando podia dizer: Todos os seus mandamentos, ou, todas as obras ordenadas por seus preceitos, preferiu dizer: “seus louvores”, porque, conforme foi falado, quando elas são feitas, ele deve ser louvado. Mas, quem é capaz de fazer ouvir todos esses louvores? Isto é, quem é idôneo para praticá-las todas, ao ouvi-las? | |
§ 4 | “Felizes os que observam o juízo e praticam a justiça em todo tempo”, desde que começam e vivem no tempo, pois, aquele que perseverar até o fim, esse será salvo (cf Mt 10,22). Pode, porém, parecer uma repetição da mesma sentença, visto que praticar a justiça é o mesmo que observar o juízo, de tal forma que no primeiro versículo se subentenda: “todo tempo”, como se subentende no segundo: “Felizes”. Colocando-se no devido lugar o que se suben-tende, ter-se-ia: “Felizes os que observam o juízo” em todo tempo, felizes os que “praticam a justiça em todo tempo”. Mas se houvesse alguma diferença entre juízo e justiça, não se teria dito noutro salmo: “Até que a justiça se converta em juízo” (Sl 93,15). A Escritura gosta, efetivamente, de colocar os dois juntos, como na seguinte passagem: “A justiça e o juízo sustentam o seu trono” (Sl 96,2) e esta outra: “Fará surgir como a luz a tua justiça e o teu direito como o sol do meio dia” (Sl 36,6). Parece também repetição da mesma sentença. Pode ser que devido à proximida-de de sentido seja possível usar um termo pelo outro, juízo em vez de justiça, ou justiça em vez de juízo; contudo, pro-priamente não duvido que exista alguma diferença, de tal modo que se diga observar o juízo quem julga corretamente, e praticar a justiça quem age retamente. Penso não ser absurdo entender de acordo com a palavra: “Até que a justiça se converta em juízo”, que aqui se designam por felizes os que observam o juízo com a fidelidade, e pra-ticam a justiça nas obras. Pois, virá um tempo em que o juízo agora observado com fidelidade também se exerça nas obras, quando a justiça se tiver convertido em juízo, isto é, ao receberem os justos o poder de julgar com retidão aque-les pelos quais agora são julgados injustamente. Daí dizer o corpo de Cristo em outro lugar: “No tempo determinado, julgarei segundo a justiça” (Sl 74,3). Palavra por palavra devia-se traduzir: Julgarei as eqüidades. Não declarou o salmista: No tempo determinado, praticarei a justiça, por-que esta deve ser praticada todo tempo, conforme se diz também aqui: “Que praticam a justiça em todo tempo”. | |
§ 5 | 4.5 Em seguida, uma vez que é Deus quem justifica, isto é, transforma em justos os pecadores curando as suas iniqüidades, vem a oração: “Lembra-te de nós, Senhor, com benevolência pelo teu povo”, que sejamos do número daqueles que te agradaram; porque nem todos agradaram a Deus. “Visita-nos com a tua salvação”. Pois, ele próprio é o Salvador, que perdoa o pecado e cura as almas, a fim de poderem observar o juízo e praticar a justiça. Estes, entendendo que são felizes os que assim falam, conseqüentemente isto pedem ao orarem. De tal salvação diz outro salmo: “Para que conheçamos na terra o teu caminho”. E se perguntarmos em que terra; prossegue: “Em todos os povos”; e de novo se interrogarmos qual o caminho, continua: “A tua salvação” (Sl 66,3). Conforme proferiu o velho Simeão: “Porque meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,30). O Cristo afirmou de si próprio: “Eu sou o caminho” (Jo 14,6). Visita-nos, pois, com a tua salvação, isto é, com o teu Cristo. “A fim de ver a bondade de teus escolhidos e alegrar-se com a alegria de teu povo”, isto é, visita-nos com a tua salvação, a fim de que vejamos a bondade de teus escolhidos e nos regozijemos com a alegria de teu povo. Enquanto aqui se encontra: “a bondade”, outros códices trazem: a suavidade, à semelhança da expressão: “Porque ele é bom” que outros traduzem: “Porque ele é suave”. Em grego usa-se a mesma palavra que se lê em outro ponto: “O Senhor dará a suavidade” (Sl 84,13) que outros verteram por bondade, e outros ainda por benignidade. Mas que significa: “Visita-nos a fim de que vejamos a bondade de teus escolhidos”, isto é, a bondade que concedes a teus eleitos? A não ser que permaneçamos cegos, como aqueles aos quais foi dito: “Mas” dizeis: Nós “vemos”! Vosso pecado permanece”? (Jo 9,41). Ora, o “Senhor torna os sábios cegos” (Sl 145,8), não por seus méritos, mas por “bondade de seus escolhidos”, isto é, que ele demonstra ou dá a seus escolhidos, assim como se disse: “A salvação de minha face”, não porque derive de mim mesmo, mas de “meu Deus” (Sl 42,5). Do mesmo modo, rezamos: “pão nosso cotidiano”, e no entanto acrescentamos: “dá-nos hoje” (Mt 6,11). “Visita-nos”, portanto, “com a tua salvação, a fim de que vejamos (ad videndeum) a bondade de teus escolhidos e nos regozijemos (ad laetan-dum) com a alegria de teu povo”. Por um só povo de Deus devemos entender toda a descendência de Abraão, os filhos da promessa, não os carnais. Estes, portanto, que falam aqui, desejam ter a alegria própria deste povo. E qual a alegria deste povo, senão seu Deus? A Deus eles assim se dirigem: “Tu és a minha alegria, preserva-me” (Sl 31,7) e: “Está assinalada em nós, Senhor, a luz de tua face. Deste alegria a meu coração” (Sl 4,7). É o supremo, verdadeiro imutável e beatificante bem, o próprio Deus. “Para que sejas louvado com tua herança”. Admiro-me de que este versículo tenha sido assim traduzido em muitos códices, porque nestes três versos há em grego uma só maneira de se exprimir, de sorte que se for certo o que se lê: “Para que sejas louvado com tua herança”, será correto também dizer: “Para que vejas a bondade de teus eleitos e te alegres com a alegria de teu povo”. O trecho todo seria: “Visita-nos com a tua salvação, para que vejas a bondade de teus escolhidos e te alegres com a alegria de teu povo, e sejas louvado com tua herança”. De acordo, porém, com a tradução que adotamos: “visita-nos, a fim de que vejamos a bondade de teus escolhidos e nos regozijemos com a alegria de teu povo”; e conseqüentemente: “e te louvemos com tua herança”. A esta herança foi dito: “Gloriai-vos de seu nome santo” (Sl 104,3). Com efeito, uma vez que esta locução parece ambígua, se o verdadeiro sentido foi o preferido por alguns tradutores: “Para que sejas louvado”, também os dois versículos precedentes devem ser entendidos assim, porque conforme disse, uma só é a maneira de se expressar no grego destes três versículos, de tal sorte que o todo seria: “Visita-nos com a tua salvação, para veres a bondade de teus escolhidos”, isto é, visita-nos para nos colocares ali e ali nos vejas: “para te alegrares com a alegria de teu povo”, a saber, que se diga que tu te alegras, enquanto são eles que se alegram por tua causa; “para que sejas louvado com tua herança”, isto é, sejas louvado com ela, porque ela não é louvada a não ser por tua causa. Quer se entenda daquele modo ou deste o que foi dito: “para se ver, alegrar-se, louvar”, o voto que se formula é de que sejamos visitados com a salvação de Deus, isto é, seu Cristo, a fim de não sermos excluídos de seu povo e do meio daqueles que agradaram a Deus. | |
§ 6 | 6.7 Ouçamos agora como o salmista confessa: “Pecamos, com nossos pais, agimos injustamente, cometemos a iniqüidade”. Por que: “com nossos pais?” Seria conforme expõe a epístola aos Hebreus? Como Levi pagou o dízimo com Abraão, porque estava em seus rins, quando ele entregou os dízimos ao sacerdote Melquisedec, também estes pecaram com seus pais, em cujos rins se achavam quando eles estiveram no Egito? (cf Hb 7,1-10). De fato, os que viviam na época em que este salmo foi composto, e principalmente seus descendentes (porque o salmo podia falar ou profetizar dos que vivam então ou dos pósteros), estavam muito distantes da época daqueles que pecaram no Egito, por não entenderem as maravilhas de Deus. Por is-so, continua o salmo expondo como pecaram, com seus pais: “Nossos pais no Egito não entenderam as tuas maravilhas” etc., e relembrando muitos dos pecados deles. Ou seria preferível entender: “Pecamos com nossos pais”, no sentido de: Pecamos como nossos pais, imitando seus pecados? Se é assim, seria preciso basear-nos em algum exemplo de tal locução. Procurei, mas não encontrei que se diga ter alguém pecado com outro, ou ter feito algo com ele, porque imitou depois de muito tempo uma ação semelhante. | |
§ 7 | Que significa então: “Nossos pais não entenderam as tuas maravilhas”, senão não terem eles conhecido o que querias lhes prestar através daquelas maravilhas? O que, de fato, senão a vida eterna, intemporal, bem imutável, esperado com paciência? Eles, com efeito, murmuraram impacientemente, e irritaram o Senhor, procurando tornar felizes por meio de bens presentes, falazes e fugazes. “Não se lembraram da multidão de tuas misericórdias”. O salmista censura o intelecto e a memória. Efetivamente, precisavam do intelecto para pensarem como Deus os chamava através dos bens temporais a outros bens eternos; da memória, porém, a fim de que ao menos não se esque-cessem das maravilhas operadas no tempo, e com fidelidade presumissem que pelo mesmo poder que haviam experimentado, Deus os livraria da perseguição dos inimigos. Haviam olvidado os benefícios que lhes foram outorgados no Egito, tendo sido esmagados seus inimigos por meio de tantos prodígios. “Mas te irritaram, ao subirem, atravessando o mar, o mar Vermelho”; o códice que exami-nei trazia essas expressões; as duas últimas palavras: “mar Vermelho” estavam marcadas com um asterisco, as-sinalando que essas palavras se acham no texto hebraico, mas não na versão dos Setenta. Vários códices que pude examinar, gregos e latinos, têm: “Mas te irritaram” ou, mais literalmente vertido do grego: “Mas te provocaram, ao subirem, atravessando o mar Vermelho”. O leitor da história da saída do Egito e da travessia do mar Vermelho, sente pesar diante da infidelidade dos hebreus, de ta-manha trepidação e desespero, após tantos e tão grandes milagres recentemente operados no Egito, de não terem se lembrado da multidão das misericóridas de Deus, conforme diz o salmo. Subiram, no entanto; diz-se isto por causa da posição daqueles países, de tal modo que se desce ao Egito, vindo da terra de Canaã, e a ela se sobe, par-tindo do Egito. É notório como a Escritura inculpa a carência de se entender o que deve ser entendido, e o esquecimento daquilo que devia ser lembrado. Efetivamente, os homens não querem reconhecer sua culpa, a fim de suplicarem menos, serem menos humildes perante Deus, confessando o que são em sua presença, e tendo impetrado seu auxílio possam tornar-se o que não são. Seria preferível acusar os pecados de ignorância para serem apagados, a escusá-los conservando-os; é melhor invocar a Deus e ser purificado do que irritá-lo, mantendo-se neles. | |
§ 8 | 8 O salmo acrescenta, contudo, que Deus não procedeu conforme a infidelidade deles. “Mas ele os salvou por amor de seu nome, para revelar o seu poder”, e não por causa de méritos deles. | |
§ 9 | 9 “Ameaçou o mar Vermelho e ele secou”. Não lemos que tenha ameaçado o mar, com uma voz vinda do céu; mas o que realizou o poder divino foi denominado pelo salmista ameaças. A não ser que alguém afirme que ameaçou o mar ocultamente, de tal forma que as águas ouviram, mas não os homens. Muito oculta e misteriosa é a força que Deus emprega, de tal modo que mesmo as coisas insensíveis imediatamente obedeçam a sua vontade. “E conduziu-os por entre os abismos, como por um deserto”. Chama de abismos a uma enorme quantidade de água. Alguns, no intuito de interpretarem este versículo, traduziram: “E conduziu-os por entre muitas águas”. Que significa: “por entre abismos, como por um deserto?” Seria que ficou seco como um deserto o lugar onde havia muitas águas? | |
§ 10 | 10 “Salvou-os das mãos dos que os odiavam (odien-tium)”. Alguns, para evitarem expressão menos latina, tra-duziram por uma circunlocução: “E salvou-os das mãos daqueles que os odiavam (qui oderunt). E redimiu-os do poder do inimigo”. Que preço foi pago para essa redenção? Seria uma profecia, figura do batismo, onde somos remidos do poder do diabo por um grande preço, o sangue de Cristo? Por isso, o batismo não foi figurado por um mar qualquer, mas pelo mar Vermelho. Pois, o sangue é rubro. | |
§ 11 | 11 “As águas sepultaram os seus perseguidores; nem um só escapou”. Não se trata de todos os egípcios e sim daqueles que perseguiam os que haviam partido, desejosos de os prender ou matar. | |
§ 12 | 12 “Acreditaram então em suas palavras (in verbis eius)”. Parece locução menos latina, porque ele não disse: verbis eius, ou: in verba eius, e sim: “in verbis eius”. Entre-tanto, é um modo de falar muito usado nas Escrituras. “E cantaram os seus louvores. (Laudaverunt laudem)”. Esta locução é da espécie das nossas: Serviu tal servidão, viveu tal vida. Refere-se àquela bem conhecida frase: de louvor a Deus: “Cantemos ao Senhor, porque se vestiu de glória; ele lançou ao mar o cavalo e o cavaleiro” (Ex 15,1). | |
§ 13 | “Rapidamente eles se esqueceram de suas obras”. Outros códices trazem, de modo mais inteligível: “Apressaram-se, esqueceram-se de suas obras. Não aguardaram a realização de seus desígnios”. Deviam ter pensado que tamanhas obras de Deus em seu favor não podiam ser inúteis, mas apelavam para uma felicidade sem fim, que devia ser aguardada com paciência. Mas eles se apressaram a tornar-se felizes por meio de bens temporais, que não conferem a verdadeira felicidade, porque não extinguem uma cupidez insaciável: “Pois aquele que beber desta água terá sede novamente” (Jo 4,13). | |
§ 14 | 14 “Entregaram-se às suas concupiscências no deserto e tentaram a Deus num lugar sem água. No deserto” foi repetido: “num lugar sem água”. Quanto a: “entregaram-se às suas concuspicências” equivale a: “tentaram a Deus”. Tal locução: concupierunt concupiscentiam assemelha-se à anterior: laudaverunt laudem. | |
§ 15 | 15 “E deu-lhes o que pediam”, segundo sua petição. “E saciou as suas almas”. Nem por isso fê-los felizes, porque não se tratava da saciedade da qual se disse: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). Por conseguinte, neste lugar o salmista não se refere à alma enquanto racional, mas enquanto anima o corpo. Ao sustento desse pertencem o alimento e a bebida, conforme a palavra que se encontra no evangelho: “Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa”. De acordo com isso, diz Isaías: “E perguntam: Por que temos jejuado e tu não o vês? Te-mos mortificado as nossas almas e tu não tomas conhecimento disso”? (Is 58,3). | |
§ 16 | 16 “E irritaram Moisés no acampamento, e Aarão, o consagrado do Senhor”. Os versículos seguintes indicam bastante o que o salmista chama de irritação, ou, como os outros traduziram mais literalmente: provocação. | |
§ 17 | 17 “Abriu-se a terra e tragou Datan e sorveu a turma de Abiron. Tragou” equivale a “sorveu”. Um só foi o soberbo e sacrílego cisma de ambos, Datan e Abiron. | |
§ 18 | 18 “O fogo se ateou a sua assembléia e a chama consumiu os pecadores”. Este nome não é dado pelas Escrituras àqueles que embora vivam de modo justo e laudável, não se encontram isentos de pecado. Pois há grande diferença entre os que zombam e os zombeteiros, entre os que murmuram e os murmuradores, entre os que escrevem e os escritores etc. Assim, a Escritura costuma chamar de pecadores os que são muito iníquos e estão onerados de grandes pecados. | |
§ 19 | 19.20 “Fabricaram um bezerro em Horeb e adoraram o que esculpiram. E trocaram a sua glória pela imagem de um novilho que come feno”. O salmo não traz: in simi-litudinem (em acusativo), mas in similitudine (ablativo), como naquela frase: “Acreditaram então em suas pa-lavras (in verbis eius)”. Com certa elegância, o salmista não disse: Trocaram a glória de Deus (o que eles efetivamente fizeram), segundo o modo de se exprimir que o Apóstolo também emprega: “Trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível” (Rm 1,23); mas diz: “sua glória”. Deus, com efeito, seria a glória deles, se realizassem seus desígnios e não se precipitassem, esse Deus, ao qual diz outro salmo: “Minha glória, e ergues a minha cabeça” (Sl 3,4). Esta “sua glória”, isto é, Deus, eles a “trocaram pela imagem de um novilho que come feno”, de sorte que ele os devorasse, porque devora todos os que têm gosto carnal. De fato, toda carne é feno (cf Is 40,6). | |
§ 20 | 21.22 “Esqueceram-se de Deus que os salvara”. Como os salvara? “Fizera prodígios no Egito, maravilhas na terra de Cam, coisas terríveis no mar Vermelho”. Maravilhas identificam-se com coisas terríveis. De fato, a admiração inclui certo receio. Aqui podem ser denominados terríveis os males que infligiram aos adversários, mostrando-lhes o que tinham a temer. | |
§ 21 | 23 “E já dissera que os exterminaria”. Pelo fato de terem-se esquecido de quem os salvara, operando maravilhas e de terem fabricado e adorado um ídolo, tornando-se culpados de uma impiedade tão criminosa e incrível, mereciam perecer. “E já dissera que os exterminaria, se Moisés, seu eleito, não se interpusesse diante dele na brecha”. O salmista não afirma que ele se interpôs “na brecha”, como se quisesse quebrar a ira de Deus; mas “na brecha”, isto é, querendo ser atingido pela praga que havia de feri-los. Ele se interpôs em favor deles, dizendo: “Agora, pois, se perdoasses o seu pecado… Se não, risca-me do livro que escreveste” (Ex 32,31.32). Aí se demonstra quanto vale em favor dos outros a intercessão dos santos junto de Deus. Ora, Moisés, seguro acerca da justiça de Deus, que não poderia aniquilá-lo, impetrou a misericórdia, a fim de que Deus não exterminasse aqueles que podia com justiça castigar. Assim, ele se interpôs “na brecha diante dele, para afastar a sua ira e impedir que os destruísse”. | |
§ 22 | 24 “Tiveram por nada uma terra desejável”. Mas, por acaso a tinham visto? Como, então, tiveram por nada o que não tinham visto, senão da maneira mencionada na frase seguinte: “Não confiaram em sua palavra?” Com efeito, se aquela terra não figurasse algo de grande, quando se dizia que era uma terra onde corria leite e mel (cf Ex 3,8), sinal visível que conduzisse à graça invisível do reino dos céus aqueles que entendessem suas maravilhas, de modo algum seriam inculpados os que tiveram por nada aquela terra. Também nós devemos ter por nada aquele reino temporal, a fim de amarmos verdadeiramente a terra desejável, a Jesuralém livre, nossa mãe, que está nos céus. Mas aqui a infidelidade com razão é condenada, visto que tendo por nada aquela terra desejável, não haviam acreditado nas palavras de Deus, que através de coisas pequenas conduz a grandes, e apressados a alcançarem a felicidade por meio de bens temporais, que eles apreciavam carnalmente, “não aguardaram”, conforme foi dito acima, “a realização de seus desígnios” (Sl 105,13). | |
§ 23 | 25 “Murmuraram em suas tendas; não ouviram a voz do Senhor”, impedidos com grande força por suas murmurações. | |
§ 24 | 26.27 “E levantou a mão contra eles para prostrá-los no deserto, para abater sua raça entre as nações e dispersá-los pelas várias regiões”. | |
§ 25 | 28.29 Neste ponto, antes de dizer que alguém intercedeu diante de tamanha indignação de Deus e que o aplacou de certo modo, prossegue: “Iniciaram-se no culto de Beelfegor”, isto é, de um ídolo pagão a que se consagraram. “E comeram vítimas oferecidas a deuses mortos. E o provocaram com suas invenções e a ruína contra eles se multiplicou”. Evidentemente adiou o castigo de levantar a mão contra eles para prostrá-los no deserto, para abater a sua raça entre as nações e dispersá-los pelas várias regiões, a fim de que entregues a seus malvados sentimentos, admitissem também estas ações, e por causa des-te crime hediondo fossem punidos por manifesta justiça, conforme a palavra do Apóstolo: “E como não julgaram bom ter o conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para fazerem o que não presta” (Rm 1,28). | |
§ 26 | 30 Enfim, foi tão grande o crime deles de se consagrarem ao ídolo e de comerem sacrifícios a deuses mortos (isto é, os gentios sacrificavam aos defuntos, tomando-os por deuses) que Deus não quis se aplacar a não ser como foi aplacado pelo sacerdote Finéias, que matou o homem e a mulher surpreendidos numa união adúltera. Se ele tivesse agido por ódio contra eles, e não por amor, quando o zelo da casa de Deus o consumia, não lhe seria imputado à justiça (cf Nm 25,8). Pois, agindo desta maneira, feriu aquele povo destinado a maior ruína como se fosse um só homem, a fim de salvar da morte a sua alma. Cristo Senhor, depois de revelado o Novo Testamento, preferiu uma disciplina mais suave; mas a ameaça da geena é muito mais grave, e não a encontramos naquelas ameaças feitas de acordo com os desígnios de Deus para aqueles tempos. “A ruína”, portanto, “contra eles se multiplicou”, ao serem gravemente dizimados por causa de seus grandes pecados. “Apresentou-se Finésia e aplacou-o e o flagelo cessou”. O salmista em resumo disse tudo, porque não ensina aqui aos que ignoram o fato, mas relembra-os aos que o conhecem. O flagelo aqui mencionado é a mesma coisa que acima foi denominada brecha, porque no texto grego a palavra é a mesma. | |
§ 27 | 31 “Zelo que lhe foi imputado à justiça, de geração em geração para sempre”. Deus imputou à justiça o ato de seu sacerdote, não apenas naquela geração, mas “para sempre”; ele perscruta o coração e sabe ponderar com que amor ao povo ele agiu. | |
§ 28 | 32.33 “Depois irritaram-no nas águas da contradição e Moisés sofreu por causa deles, porque exacerbaram seu espírito. E ele vacilou em suas palavras”. Que significa: “vacilou?” Duvidou que Deus pudesse fazer brotar água da pedra, aquele Deus que já operara tantas maravilhas. Hesitante feriu a pedra com a vara, e este milagre foi diferente dos demais, quando ele não duvidara. Por essa razão ofendeu a Deus, e mereceu a sentença de que morreria sem entrar na terra da promissão. Pois, perturbado com a murmuração do povo infiel, não manteve a confiança que devia ter. No entanto, Deus, dá um bom testemunho acerca de seu eleito, mesmo após sua morte, a fim de entendermos que aquela hesitação de sua fé foi apagada apenas com o castigo de não lhe ser permitido entrar na terra aonde ele próprio conduzia o povo (cf Dt 32,49-52). De forma alguma creiamos que tenha sido afastado do reino da graça de Deus, significado pela terra da promissão, onde se dizia que manava leite e mel. Este é, pois, o testamento eterno que fez com Abraão, nosso pai, não segundo a carne, e sim segundo a fé. | |
§ 29 | 34.36 Aqueles, porém, de cujas iniqüidades fala o presente salmo, tendo entrado naquela terra da promissão temporal, “não exterminaram os povos que o Senhor lhes indicara. Mas mesclaram-se com eles, e aprenderam seus costumes. Prestaram culto a seus ídolos, que foram para eles ocasião de escândalo”. Tornou-se para eles ocasião de tropeço não terem exterminado aqueles povos, mas terem-se misturado com eles. | |
§ 30 | 37.39 “Imolaram aos demônios seus filhos e suas filhas. Derramaram sangue inocente, o sangue de seus filhos e filhas, que eles sacrificaram aos seus ídolos de Canaã”. Aquela história não conta que tenham imolado seus filhos e suas filhas aos demônios e ídolos; mas nem este salmo pode mentir, nem os profetas, que o afirmaram em muitas passagens de suas incriminações. Não negam as letras dos gentios que eles tinham tal costume. | |
§ 31 | Mas, como continua o salmo? Et interfecta est terra in sanguinibus. “E a terra foi morta com sangue”. Pensaríamos num erro do copista, e em vez de interfecta diríamos infecta, infeccionada, se não contássemos com o benefício de Deus que quis fosse suas Escrituras vertidas para muitas línguas. Examinando os códices gregos, veremos que está escrito: Interfecta est terra in sanguinibus. Que quer dizer, então: “A terra foi morta”, se não o referirmos aos homens que habitavam naquela terra, usando uma expressão figurada, por meio da qual se assinala o contéudo através daquilo que o contém? Assim falamos em casa péssima, designando a que é habitada por malvados e boa aquela onde habitam homens bons. Pois, os israelitas matavam suas almas imolando seus filhos e derramando o sangue dos pequeninos, em conformidade com os crimes dos estrangeiros. Daí a palavra: “Derramaram o sangue inocente”. Portanto, “a terra foi morta com sangue e contaminou-se com as obras deles”. Eles é que morreram espiritualmente e contaminaram-se com as suas obras. “Prostituíram-se com suas invenções”. O salmista denomina: “invenções”, traduzindo do grego: epitedeúmara. Encontra-se a palavra nos códices gregos neste lugar e mais acima, no versículo: “Provocaram-no com suas invenções”. Ali e aqui, o salmista chama de invenções os crimes que eles imitaram. Não consideremos como invenções certas descobertas deles, sem exemplos precedentes a serem imitados. Daí vem que muitos tradutores nossos não falam em invenções, mas em esforços; outros dizem afeições, ou inclinações; outros preferiram prazeres; e os mesmos que verteram por invenções, em outras passagens traduziram por esforços. Quis re-lembrar essas coisas para não levantar uma questão sobre o nome de invenções, aplicado a coisas que eles não excogitaram por si mesmos, mas que imitaram de outros. | |
§ 32 | 40.43 “O Senhor se encheu de furor contra seu povo”. Alguns de nossos tradutores não quiseram empregar a palavra ira para verter o termo grego tumós; mas alguns traduziram por mente; outros por indignação, outros por ânimo. Seja qual for o termo, em Deus não existe perturbação; mas de acordo com a tradução habitual tomou aqui o sentido de poder vindicativo. | |
§ 33 | “E abominou a sua herança. Entregou-os nas mãos das nações e dominaram-nos aqueles que os odiavam. Oprimiram-nos os inimigos e os humilharam sob suas mãos”. Se eles são denominados herança de Deus, é evidente que o Senhor os abominou para seu ensinamento e não para sua perdição; e entregou-os às mãos dos inimigos. E continua: “Libertou-os muitas vezes”. | |
§ 34 | “Eles, porém, o exacerbaram com seus planos”. Trata-se do que foi dito acima: “Não aguardaram a realização de seus desígnios”. Os planos do homem, porém, são perniciosos ao próprio homem, porque ele procura atender seus interesses, não os de Deus (cf Fl 2,21). Quando Deus se dignar oferecer-nos o gozo desta herança, que é ele mesmo, não sofreremos limitações na sociedade dos santos, amando o que é nosso como sendo bem particular. Efetivamente, aquela gloriosíssima cidade de Deus, tendo recebido a herança prometida lá onde não haverá morte nem nascimento, não possuirá cidadãos que gozem isoladamente de seus bens, porque Deus será tudo em todos (cf 1Cor 15,28). Todo aquele que nesta peregrinação terrestre desejar fiel e ardentemente esta sociedade dos santos, acostuma-se a preferir os bens comuns aos particulares, sem procurar atender os seus próprios interesses e sim os de Jesus Cristo; não é sábio aos próprios olhos, nem segue seus planos, exacerbando a Deus em seus desígnios; mas esperando o que não vê, não se apressa a se tornar feliz com os bens visíveis. Aguardando, po-rém, pacientemente os bens eternos invisíveis, siga os desígnios contidos nas promessas daquele cujo auxílio é pedido nas tentações. Assim será humilde em suas confissões, e não se assemelhará àqueles a respeito dos quais se diz: “E foram humilhados pelas suas iniqüidades. | |
§ 35 | 44.45 Deus, contudo, cheio de misericórdia, não os menosprezou. “Mas viu-os quando aflitos e escutou a oração deles. Lembrou-se de sua aliança e arrependeu-se segundo a sua grande misericórdia”. Diz-se que ele “arrependeu-se”, porque aparentemente mudou o desígnio de perdê-los. De fato, em Deus tudo está determinado e fixo. Nada faz por um plano repentino, que não tenha sido previsto desde toda a eternidade. Mas, ele governa admiravelmente os movimentos temporais da criação. Ele mesmo não se move no tempo, como se fosse possível dizer que faz por uma decisão repentina o que dispôs fazer na imutabilidade de seu misterioso plano, por meio de causas ordenadas. Esta imutabilidade, conhecida no tempo devido, realiza as coisas presentes e já realizou as futuras. Quem é capaz de entender estas coisas? Ouçamos, por isso a Escritura, que exprime em forma humilde as realidades mais elevadas, ao oferecer aos pequeninos o alimento e ao propor aos maiores, para exercitarem-se, o que deve ser investigado. “Mas viu-os quando aflitos e escutou a oração deles. Lembrou-se de sua aliança”, a saber, da aliança eterna “que fez com Abraão” (Sl 104,9), não da aliança antiga que foi abolida, mas da nova que se escondia na antiga. “E arrependeu- se segundo a sua grande misericórdia”. Fez o que dispusera; mas sabia de antemão que haveria de concedê-lo aos aflitos que o suplicassem. A própria oração deles, quando ainda não era feita, mas o seria, sem dúvida alguma não era oculta a Deus. | |
§ 36 | 46 “Usou de misericórida para com eles”, a fim de que não fossem vasos de ira, mas de misericórdia (cf Rm 9,22.23). Acho que misericórdia está no plural, misericórdias para com eles, porque cada um recebe de Deus o seu dom particular: um, deste modo; outro, daquele modo (1 Cor 7,7). “Usou”, portanto, “de misericórdias para com eles, diante de todos que os haviam escravizado”. Agora, pois, quem quer que sejas que lês isto, reconhece a graça de Deus, que nos redimiu para a vida eterna, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, lendo as cartas dos apóstolos, ou perscrutando os escritos dos profetas. Verás o Antigo Testamento revelado pelo Novo Testamento e o Novo velado no Antigo. Relembra quem é que o apóstolo Paulo denomina príncipe das potestades do ar, “que agora opera nos filhos da desobediência” (Ef 2,2), e o que declara a respeito de alguns: “que se libertem do laço do diabo, que os tinha cativos de sua vontade” (2 Tm 2,26). Recorda as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, quando expulsando o diabo dos corações dos fiéis, disse: “Agora o príncipe deste mundo será lançado fora” (Jo 12,31), e as do mesmo Apóstolo: “Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transportou para o reino de seu filho amado” (Cl 1,13). Raciocinando sobre estas coisas e outras semelhantes, a alma considera também os livros do Antigo Testamento, e vê como se canta no salmo intitulado: “Quando se edi-ficava a casa, depois do cativeiro”; ali se diz: “Cantai ao Senhor um cântico novo”. E não julgues que é atinente apenas ao povo judaico o convite: “Cantai ao Senhor, terra inteira. Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome, anun-ciai”, ou melhor, anunciai bem, ou antes, para traduzir a mesma palavra usada no grego: “evangelizai de dia em dia a sua salvação”. Assim, foi denominado evangelho o livro em que é anunciado de dia em dia Cristo Senhor, luz da luz, Filho do Pai. Este é também a “sua salvação”, porque a salvação de Deus é Cristo, como já demonstramos mais acima1. “Anunciai entre as nações a sua glória, a todos os povos as suas maravilhas. Porque o Senhor é grande e muito digno de louvor, é temível sobre todos os deuses. Porque os deuses das nações são demônios” (Sl 95,1-5). Estes inimigos, portanto, com seu rei, o diabo, mantinham cativo o povo de Deus. Deste cativeiro somos remidos e então o príncipe deste mundo é lançado fora; a casa é edificada depois do cativeiro. A pedra angular desta casa é Cristo, que de ambos os povos fez um só em si, para a criação de um novo homem. Ele fez a paz, que vindo de dia em dia anunciou a boa nova àqueles que estavam perto e àqueles que estavam longe, e de ambos fez um só povo. Conduziu as ovelhas que não são deste aprisco, para que haja um só pastor (cf Ef 2,13-22; cf Jo 10,16). Assim Deus “usou de misericórdias” para com seus predestinados; porque “não depende daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus que faz misericórdia” (Rm 9,16), “diante de todos aqueles que os haviam escravizado”. Por conseguinte, os inimigos, o diabo e seus anjos haviam escravizado os predestinados ao reino e à glória de Deus. Nosso redentor lançou fora aqueles que costumavam dominar internamente os infiéis, e atacar externamente os fiéis. Mas se atacam, não expulsam aqueles que alcançam uma torre forte na presença do inimigo (cf Sl 60,4). Para poderem, no entanto, atacar, percebem que existem em nós ainda fraquezas, por causa das quais suplicamos: “Perdoa-nos as nossas dívidas; e rezamos: “Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal” (Mt 6,12.13). Expelidos estes inimigos, Cristo Senhor curou o corpo, do qual ele é Cabeça e ele próprio Salvador (cf Ef 5,23), e neste mesmo corpo ao terceiro dia foi consumado. Pois, assim se exprimiu ele: “Eis que eu expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã e no terceiro dia terminarei” (Lc 13,32), isto é, serei consumado, até que alcancemos todos nós o estado de homem perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo (cf Ef 4,13). | |
§ 37 | 48 Portanto, expulsos os demônios, que nos mantinham cativos, o Senhor terminou a cura. Por isso, tendo dito o salmista: “Usou de misericórdias para com eles, diante de todos aqueles que os haviam escravizado”, expulsos os demônios que os escravizaram, faz uma oração a fim de que o Senhor complete a cura. “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e reúne-nos para celebrarmos teu nome santo e nos gloriarmos em teu louvor”. Em seguida, acrescenta o próprio louvor: “Bendito o Senhor Deus de Israel, nos séculos dos séculos”, entenda-se, de eternidade a eternidade, pois sem fim será louvado por aqueles dos quais se diz: “Felizes os que habitam em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos” (Sl 83,5). Esta é a terceira consumação do corpo de Cristo: após a expulsão dos demônios, a cura perfeita, atinge a imortalidade deste mesmo corpo, o reino eterno dos que louvam perfeitamente, porque perfeitamente amam; amam perfeitamente, porque contemplam face a face. Então se realizará o que foi pedido no início do salmo: “Lembra-te de nós, Senhor, com benevolência pelo teu povo. Visita-nos com a tua salvação, a fim de que vejamos a bondade de teus escolhidos e nos regozijemos com a alegria de teu povo e sejas louvado com tua herança”. Não congrega no povo somente as ovelhas que haviam perecido da casa de Israel, mas também aqueles que não são deste redil, de tal forma que seja, como foi dito, um só rebanho e um só pastor (cf Mt 15,24). Os judeus, contudo, pensando que esta profecia é relativa a seu reino visível, porque desconhecem a esperança dos bens invisíveis, hão de cair nos laços mencionados pelo Senhor: “Vim em nome de meu Pai, mas não me acolheis; se alguém viesse em seu próprio nome, vós o receberíeis” (Jo 4,43). A respeito disso, pronuncia-se Paulo: “Porque deve aparecer o homem ímpio, o filho da perdição, o adversário, a levantar-se contra tudo que se chama Deus, ou recebe um culto, chegando a sentar-se no templo de Deus, e querendo passar por Deus”. E pouco mais adiante: “Então, aparecerá o ímpio, aquele que o Senhor Jesus destruirá com o sopro de sua boca, e suprimirá pela manifestação de sua vinda. Ora, a vinda do ímpio será assinalada pela atividade de Satanás, com toda a sorte de portentos, milagres, prodígios mentirosos, e por todas as seduções da injustiça, para aqueles que se perdem, porque não escolheram o amor da verdade, a fim de serem salvos. É por isso que Deus lhes manda o poder da sedução, para acreditarem na mentira e serem condenados, todos os que não creram na verdade, mas antes consentiram na injustiça” (2 Ts 2,3-12). Por meio deste refratário, por meio deste que se eleva contra tudo o que se chama Deus, ou recebe um culto, parece-me que o povo israelita carnal pensaria realizar-se esta profecia: “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e reúne-nos dentre as nações”; sob sua conduta, diante de seus inimigos visíveis, que os haviam visivelmente escravizado, alcançariam uma glória visível. Desta forma acreditariam na mentira, por não terem acolhido a verdade com amor, desejando não os bens carnais, mas os espirituais. Assim, pois, foram enganados pelo diabo, de sorte que mataram a Cristo, quando disseram: “Se o deixarmos assim, todos crerão nele e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação. Então, um deles, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: Vós nada entendeis. Não compreendeis que é de vosso interesse que um só homem morra pelo povo e não pereça a nação toda? Não dizia isto por si mesmo, conforme o entendeu o evangelista, mas sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus iria morrer pela nação — e não só pela nação, mas também para congregar na unidade, isto é, pelas ovelhas que haviam perecido da casa de Israel, os filhos de Deus dis-persos” (Jo 11,48-52). Tinha, pois, outras ovelhas que não eram daquele redil. O diabo e seus anjos haviam escravizado todas as ovelhas, tanto dos israelitas, como das nações. Expulso, portanto, o diabo que as dominava, diante dos espíritos malignos que as escravizavam, a fim de se salvarem e serem perfeitos eternamente, sua voz se levanta na profecia: “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e reúne-nos dentre as nações”. Não como os judeus pensam que o anticristo fará, mas como será realizado por Cristo Senhor nosso, que virá em nome de seu Pai, “de dia em dia, sua salvação” (Sl 95,2). Dele foi dito aqui: “Visita-nos com a tua salvação”. “E todo o povo dirá”, este povo dos predestinados, tanto da circuncisão como dos gentios, nação santa, povo da adoção: “Assim seja, assim seja”. 1 Cf nº 5 | |