SALMO 𝟭𝟬𝟜

Ó Senhor, quão multiformes são as tuas obras!

Todas elas as fizeste com sabedoria; a terra está cheia das tuas riquezas.

Eis também o vasto e espaçoso mar, no qual se movem seres inumeráveis, animais pequenos e grandes.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 104


§ 104:1  Bendize, ó minha alma, ao Senhor! Senhor, Deus meu, tu és magnificentíssimo! Estás vestido de honra e de majestade,

§ 104:2  ʈ tu que te cobres de luz como de um manto, que estendes os céus como uma cortina.

§ 104:3  És tu que pões nas águas os vigamentos da tua morada, que fazes das nuvens o teu carro, que andas sobre as asas do vento;

§ 104:4  ɋ que fazes dos ventos teus mensageiros, dum fogo abrasador os teus ministros.

§ 104:5  Ł Lançaste os fundamentos da terra, para que ela não fosse abalada em tempo algum.

§ 104:6  Ŧ Tu a cobriste do abismo, como dum vestido; as águas estavam sobre as montanhas.

§ 104:7  A tua repreensão fugiram; à voz do teu trovão puseram-se em fuga.

§ 104:8  Elevaram-se as montanhas, desceram os vales, até o lugar que lhes determinaste.

§ 104:9  Ł Limite lhes traçaste, que não haviam de ultrapassar, para que não tornassem a cobrir a terra.

§ 104:10  És tu que nos vales fazes rebentar nascentes, que correm entre as colinas.

§ 104:11  Ɗ Dão de beber a todos os animais do campo; ali os asnos monteses matam a sua sede.

§ 104:12  Junto delas habitam as aves dos céus; dentre a ramagem fazem ouvir o seu canto.

§ 104:13  Ɗ Da tua alta morada regas os montes; a terra se farta do fruto das tuas obras.

§ 104:14  Ƒ Fazes crescer erva para os animais, e a verdura para uso do homem, de sorte que da terra tire o alimento,

§ 104:15  o vinho que alegra o seu coração, o azeite que faz reluzir o seu rosto, e o pão que lhe fortalece o coração.

§ 104:16  Saciam-se as árvores do Senhor, os cedros do Líbano que ele plantou,

§ 104:17  ɲ nos quais as aves se aninham, e a cegonha, cuja casa está nos ciprestes.

§ 104:18  Os altos montes são um refúgio para as cabras montesas, e as rochas para os querogrilos.

§ 104:19  Ɗ Designou a lua para marcar as estações; o sol sabe a hora do seu ocaso.

§ 104:20  Ƒ Fazes as trevas, e vem a noite, na qual saem todos os animais da selva.

§ 104:21  Os leões novos os animais bramam pela presa, e de Deus buscam o seu sustento.

§ 104:22  Quando nasce o sol, logo se recolhem e se deitam nos seus covis.

§ 104:23  Então sai o homem para a sua lida e para o seu trabalho, até a tarde.

§ 104:24  Ơ Ó Senhor, quão multiformes são as tuas obras! Todas elas as fizeste com sabedoria; a terra está cheia das tuas riquezas.

§ 104:25  Eis também o vasto e espaçoso mar, no qual se movem seres inumeráveis, animais pequenos e grandes.

§ 104:26  Ali andam os navios, e o leviatã que formaste para nele folgar.

§ 104:27  Ŧ Todos esperam de ti que lhes dês o sustento a seu tempo.

§ 104:28  Ŧ Tu lho dás, e eles o recolhem; abres a tua mão, e eles se fartam de bens.

§ 104:29  Escondes o teu rosto, e ficam perturbados; se lhes tiras a respiração, morrem, e voltam para o seu pó.

§ 104:30  Envias o teu fôlego, e são criados; e assim renovas a face da terra.

§ 104:31  Permaneça para sempre a glória do Senhor; regozije-se o Senhor nas suas obras;

§ 104:32  Ele olha para a terra, e ela treme; ele toca nas montanhas, e elas fumegam.

§ 104:33  Ƈ Cantarei ao Senhor enquanto eu viver; cantarei louvores ao meu Deus enquanto eu existir.

§ 104:34  Seja-lhe agradável a minha meditação; eu me regozijarei no Senhor.

§ 104:35  Sejam extirpados da terra os pecadores, e não subsistam mais os ímpios. Bendize, ó minha alma, ao Senhor. Louvai ao Senhor.


O SALMO 104



§ 1
1 O salmo centésimo quarto é o primeiro que traz anotado no início o Aleluia. O significado desta palavra, ou antes destas duas palavras é o seguinte: Louvai a Deus. Daí provém que ele comece:

confessai ao Senhor e invocai o seu nome”.

Esta confissão deve ser entendida como sendo de louvor, conforme também a expressão:

Eu te confesso, ó Pai, Senhor do céu e da terra(Mt 11,25).

Quando se começa com o louvor, costuma-se continuar com a invocação, em que o orante manifesta seus desejos. Daí vem que a própria oração dominical contém no início um brevíssimo louvor, isto é:

Pai nosso, que estais no céu(Mt 6,9).

Então, em seguida vêm as petições. Por isso, também noutra passagem de um salmo se diz:

Nós confessaremos a ti, ó Deus, a ti nós confessaremos e invocaremos o teu nome(Sl 74,2).

De modo mais claro, em outro salmo:

com louvores, invocarei o Senhor e serei salvo de meus inimigos(Sl 17,4).

E neste salmo:

Confessai ao Senhor e invocai o seu nome”.

O sentido é idêntico ao da palavra: Louvai ao Senhor, e invocai o seu nome. O Senhor, de fato, atende a quem o invoca, vendo-o a louvá-lo. Vê a louvá-lo aquele cujo amor o Senhor comprova. E em que o Senhor quis que mostrasse o bom servo seu amor por ele, senão na palavra que disse a Pedro:

Apascenta minhas ovelhas”? (Jo 21,17).

Por isso, continua o salmo:

Anunciai entre as nações as suas obras”, ou melhor, para traduzir literalmente a palavra grega, conforme trazem outros códices latinos:

Evangelizai entre as nações as suas obras”.

A quem se dirigem estas palavras, senão profeticamente aos evangelistas?



§ 2
2.3 “Cantai-lhe e entoai-lhe salmos”.

Louvai com palavras e obras. Com a boca, efetivamente, se canta; com o saltério, porém, isto é, com as mãos, se salmodia.

Narrai todas as suas maravilhas. Gloriai-vos de seu nome santo”.

Estes dois versículos podem certamente ser considerados como repetição dos dois versículos anteriores. De sorte que:

Narrai todas as suas maravilhas” se refira a “Cantai-lhe”; quanto ao que segue: Gloriai-vos de seu nome santo seja relativo a:

Entoai-lhe salmos”.

Um, portanto, relativamente à palavra boa, que se lhe canta, e com a qual se narram todas as suas maravilhas; quanto ao outro, trata da obra boa, de lhe entoar salmos, e isso de tal forma que ninguém procure louvor por causa de suas boas obras, como se fossem feitas por virtude sua. Por isso, tendo dito:

Gloriai-vos”, o que, na verdade, os que agem bem podem fazer com razão, acrescentou:

de seu nome santo”, de tal maneira que aquele que se gloria, se glorie no Senhor (cf 1Cor 1,31).

Aqueles que querem salmodiar ao Senhor e não para si mesmos, acautelem-se de praticar sua justiça diante dos homens para serem vistos por eles. Se o fizerem, não receberão a recompensa do Pai que está nos céus; mas brilhem as suas obras diante dos homens, não para serem vistos por eles, mas para que, vendo as suas boas obras, eles glorifiquem seu Pai, que está nos céus (cf Mt 6,1; 5,16).

É isto que significa: Gloriai-vos de seu nome santo. Por esta razão, se lê em outro salmo:

Minha alma se gloriará no Senhor. Ouçam os mansos e se alegrem(Sl 33,2.3).

Assim, aqui de certo modo se prossegue:

Alegre-se o coração dos que buscam o Senhor”.

Desta forma, os mansos se alegram, porque não invejam com zelo amargo aqueles que agem bem.



§ 3
4 “Procurai o Senhor e confortai-vos (conformamini)”.

Assim foi vertido mais exatamente do grego, embora a palavra não seja bem latina; por isso alguns códices têm: confirmamini e outros: corroboramini. Na verdade, se diz:

Minha firmeza(Sl 17,2) e:

Guardarei em ti a minha força(Sl 58,10).

Procurando-o e aproximando-nos dele, sejamos iluminados e confortados. Por cegueira, não deixemos de ver o que devemos fazer, ou não pratiquemos mesmo o que vemos, por fraqueza. Quanto ao que nos convém ver:

Acercai-vos dele e sereis iluminados(Sl 33,5); o mesmo, quanto às obras:

Procurai o Senhor e confortai-vos. Buscai sempre a sua face”.

Que é a face de Deus senão a sua presença? Como se fala de face do vento e face do fogo; pois, está escrito:

como a palha diante do sopro (a facie) do vento(Sl 82,14) e:

como ao contato com o fogo (a facie) com o fogo se derrete a cera(Sl 67,3).

A Escritura encerra muitas expressões similares. Nada mais quer significar do que a presença quando se refere à face. Mas, que quer dizer:

Buscai sempre a sua face?” Sei que para mim felicidade é aproximar-me de Deus (cf Sl 72,28), mas se sempre se procura, quando se encontra? Ou terá dito “sempre” a respeito desta vida que aqui se leva (durante a qual sabemos o que devemos fazer), que mesmo depois de ter encontrado a Deus devemos procurá-lo? A fé, com efeito, já o encontrou, mas a esperança ainda o busca. A caridade, porém, o encontra pela fé e procura possuí-lo na plena realidade, quando ele será encontrado de tal forma que nos bastará e não teremos mais o que buscar além. Pois, se a fé não o encontrasse nesta vida, não se diria:

Procurai o Senhor; e tendo-o encontrado, abandone o ímpio o seu caminho, e o homem mau os seus pensamentos(Is 55,6.7).

Se tendo sido encontrado pela fé, não devesse ainda ser procurado, não se diria:

E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos(Rm 8,25), nem João:

Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é”; ainda teremos de procurar, e procurar sem fim, porque ele deve ser amado infinitamente. Costumamos dizer na presença de alguém: Não te procuro, quer dizer, não te amo. Pelo fato de se amar, procura-se mesmo quem está presente, pois se trata de um amor perpétuo que exclui uma ausência. Por esta razão, quem ama a alguém, mesmo vendo-o, quer, sem se cansar, que ele esteja presente, isto é, deseja que esteja sempre presente. É isto que quer dizer:

Buscai sempre a sua face”, a fim de que o encontro não traga um termo a esta busca, que representa o amor, mas com o aumento do amor cresça também a procura daquele que foi encontrado.



§ 4
5 De agora em diante este salmista ardente no louvor modera-se e desce a palavras mais acessíveis, nutre o amor fraco, que ainda se alimenta de leite, com as maravilhas de Deus operadas no tempo.

Recordai as maravilhas que ele realizou, seus prodígios e seus juízos proferidos por sua boca”.

Esse texto parece semelhante àquela passagem em que Deus, tendo dito a Moisés que perguntava quem ele era:

Eu sou aquele que é”, e:

assim dirás aos filhos de Israel: Eu sou me enviou até vós(poucas são as mentes que captam o sentido desta frase em minúscula partícula), em seguida, lembrando o seu nome, moderou misericordiosamente a sua sublimidade, em consideração à fraqueza dos homens, nesses termos:

Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Este é o meu nome para sempre(Ex 3,14.13).

Quis com isso dar a entender que vivem eternamente junto dele aqueles de quem ele declara ser Deus, e afirmou-o de um modo que até os pequenos podiam compreendê-lo; quanto à declaração:

Eu sou aquele que é”, entendessem segundo sua capacidade os que possuindo a grande força da caridade soubessem procurar sempre a sua face. Se, portanto, é elevado demais para vós ver ou procurar saber quem é ele, “recordai-vos das maravilhas que ele realizou, seus prodígios e os juízos proferidos por sua boca”.



§ 5
6.7 E a quem se dirigem essas palavras? “À raça de Abraão, seus servos, filhos de Jacó seus escolhidos”.

Vós, raça de Abraão, vós, filhos de Jacó, “recordai-vos das maravilhas por ele realizadas, seus prodígios e os juízos proferidos por sua boca”.

O salmista, no intuito de que não se pensasse que isso se aplica somente ao povo israelita segundo a carne, e que não seriam antes raça de Abraão os filhos da promessa e não os filhos carnais, conforme fala o Apóstolo aos gentios:

Sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa(Gl 3,29), prossegue:

Ele é o Senhor, nosso Deus, seus juízos se exercem em toda a terra”.

O mesmo diz Isaías à Jerusalém livre, nossa mãe:

Teu Deus é teu redentor. Ele se chama o Deus de toda a terra(Is 54,5).

Acaso é Deus apenas dos judeus? De forma nenhuma.

Ele é o Senhor, nosso Deus, os seus juízos se exercem em toda a terra”, porque sua Igreja se acha na terra inteira, onde são anunciados os seus juízos. Porque, então, afirma outro salmo:

Revela sua palavra a Jacó, sua justiça e seus juízos a Israel; com nenhum outro povo agiu assim, a nenhum manifestou os seus juízos(Sl 147, 19.20).

Por conseguinte, quis dar a entender que um só povo pertence à descendência de Abraão. Este povo, de fato, foi formado de todas as nações, e assim pode-se dizer que nele se acham todos os povos, de sorte a formar um povo destinado à adoção. Fora deste povo, a nenhum outro revelou seus juízos; pois, aos que neles não acreditaram, embora lhes tenham sido anunciados, não foram revelados; porque se não crêem, não entendem.



§ 6
8.11 “Ele se lembrou pelos séculos de sua aliança”.

Outros códices trazem:

eternamente”.

Isto provém da ambigüidade da palavra grega. Mas, trata-se dos presentes séculos, não da eternidade. Como é que, ao expor de que aliança se lembrou, o salmista acrescentou:

Da palavra ordenada a mil gerações?” Poderia referir-se a determinado termo; mas em seguida diz:

Do pacto que concluiu com Abraão e do juramento que fez a Isaac; e que confirmou em preceito a Jacó e a Israel em aliança eterna”.

Aqui não deixa lugar a ambigüidade. O texto grego diz: aionion que os nossos em parte alguma verteram por outro termo senão: eterno. Apenas um ou outro, traduziu aionion por eternale. A não ser, talvez que aiona em geral possa significar: século, e então prefiram traduzir aionion não por eterno, mas por secular; mas não me lembro que alguém tenha ousado fazê-lo. Se, porém, neste lugar se deva entender o Antigo Testamento, por causa da terra de Canaã, pois assim é o contexto:

E que confirmou em preceito a Jacó e a Israel em aliança eterna, dizendo: Dar-te-ei a terra de Canaã, como a porção de vossa herança”, como entender a palavra “eterna”, se aquela herança terrena não pode ser eterna? E, com efeito este Testamento não se chama Antigo, porque é abolido pelo Novo? “E mil gerações”, de fato, não parecem represen-tar algo de eterno; porque têm fim, ainda que para as realidades temporais pareçam grande número. Uma geração, que os gregos denominam geneán limita-se a poucos anos, no mínimo quinze anos, idade em que o homem começa a ter capacidade de gerar. Que são essas mil gerações, se contadas não só do tempo de Abraão, quando lhe foi feita essa promessa, até a época do Novo Testamento, mas mesmo se computadas de Adão até o fim dos séculos? Quem ousará dizer que este mundo durará quinze mil anos?



§ 7
Por conseguinte, não me parece tratar-se aqui do Antigo Testamento, que o profeta diz será substituído pelo Novo:

eis que dias virão — oráculo do Senhor — em que selarei com a casa de Jacó uma aliança nova. Não como a aliança que selei com seus pais, no dia em que os tomei pela mão para fazê-los sair da terra do Egito(Jr 31,31.32), mas uma aliança na fé, louvada pelo Apóstolo, ao nos propor à imitação a figura de Abraão, e convencer aos que se gloriavam das obras da lei de que Abraão acreditou mesmo antes da circuncisão e isso lhe foi dito em conta de justiça (Gl 3,5.6).

Enfim, tendo dito:

ele se lembrou pelos séculos de sua aliança”, devemos entender: eternamente se lembrou da aliança da justificação e da herança eterna, prometida por Deus à fé:

Da palavra ordenada a mil gerações”.

Que significa: ordenada? A locução:

Dar-te-ei a terra de Canaã” não constitui uma ordem, mas é uma promessa. Uma ordem deve ser executada, uma promessa deve ser recebida. Um mandato é a fé: que o justo viva da fé (cf Rm 1,17).

A esta fé é prometida a herança eterna.

Mil gerações”, pois, por causa da perfeição do número. Significa totalidade, isto é, enquanto uma geração suceder a outra, existe o mandato de viver da fé. É isto que observa o povo de Deus, enquanto os filhos da promessa vêm por nascimento, e partem morrendo, até que terminem todas as gerações. Tal é o sentido do número milenário, o cubo do número dez, porque dez vezes dez, vezes dez produz mil.

Do pacto que concluiu com Abraão e do juramento que fez a Isaac. E que confirmou em preceito a Jacó”, ao próprio Jacó. Estes três são os patriarcas, dos quais Deus especialmente se diz seu Deus, e que o Senhor nomeia no Novo Testamento, ao dizer:

Virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no reino dos céus, com Abraão, Isaac e Jacó(Mt 8,11).

Tal é a herança eterna. Pois, também aqui, ao dizer:

E que confirmou em preceito a Jacó”, manifesta que se trata do preceito da fé; pois se fosse promessa, não o chamaria de preceito. O trabalho relaciona-se com o preceito, e a recompensa com a promessa. Disse o Senhor:

A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou(Jo 6,29).

Conseqüentemente, a palavra que ele ordenou, “lembrado eternamente de sua aliança”, isto é, a palavra da fé que anunciamos (cf Rm 10,8), “ele a confirmou em preceito a Jacó e a Israel em aliança eterna”, a saber, devi-do à palavra e ao preceito cumprido haveria de dar recompensa eterna, “dizendo: Dar-te-ei a terra de Canaã, como a porção de vossa herança”.

Como esta recompensa é eterna, se não representar algo eterno? Ela é denominada terra da promissão, terra onde corre leite e mel (cf Ex 3,8.17).

Tudo isso figura a graça, que nos faz provar como o Senhor é suave (cf Sl 33,8), e que não pertence a todos os homens; porque a fé não é de todos (cf 11 Ts 3,2).

Por isso acrescentou:

A porção de vossa herança”.

Daí provém que em outro salmo percebe-se que fala Abraão uma vez, isto é, Cristo, nesses termos:

Caíram meus cordéis em parte esplêndida. A minha herança, portanto, é excelente(Sl 15,6).

O motivo por que o salmista fala em terra de Canaã, revela-o a interpretação do nome; Canaã, na verdade, se traduz por: humilde. Se o referirmos à sentença de Noé, que declarou seria Canaã servo de seus irmãos (cf Gn 9,25), daí vem igualmente o temor servil.

Ora, o escravo não permanece sempre na casa, mas o filho aí permanece para sempre(Jo 8,35).

Excluído, portanto, o cananeu, a terra da promissão é dada à descendência de Abraão. O perfeito amor lança fora o temor, de sorte que o filho permaneça na casa para sempre (cf 1Jo 4,18).

Daí se dizer:

A Israel em aliança eterna”.



§ 8
12 Em seguida, afirma-se uma verdade muito conhecida da história dos livros sagrados.

Quando eram em número reduzido, pouquíssimos e forasteiros naquela região”, isto é, na terra de Canaã. Quando lá habitavam os patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, antes de recebê-la em herança, seus descendentes eram pouquíssimos e forasteiros naquela região. Alguns códices trazem: paucissimos et incolas e não: paucissimi et incolae. É evidente que os que assim traduziram, seguiram literalmente a construção grega, que não pode ser simplesmente trasladada para o latim, pois seria um absurdo intolerável. Se nos esforçarmos por traduzir toda a frase literalmente, diremos: In eo esse illos numero brevi, paucissimos et incolas in ea. A locução em grego: In eo esse illos, num latim correto seria: Cum essent. A palavra seguinte não pode estar no acusativo, mas deve estar no nominativo. Pois, quem diria: Cum essent paucissimos? Exato seria: Cum essent paucissimi.



§ 9
13.15 Por conseguinte, “quando eram em número reduzido” ou:

poucos numericamente, pouquíssimos e forasteiros naquela região, migraram de nação em nação e de um reino a outro povo”.

É uma repetição do que dissera:

de nação em nação. A ninguém permitiu que os oprimisse”, não deixou. Em grego está dito: nocere illos, num latim correto: nocere illis.

Castigou a reis por causa deles”.

Disse:

Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas”.

O salmista apresenta as palavras de Deus a corrigir e argüir os reis, a fim de que não maltratassem os santos pais, quando eram em número reduzido, pouquíssimos e forasteiros na terra de Canaã. Apesar de não se lerem estas palavras nos livros históricos, contudo deprende-se que ou foram proferidas ocultamente, quando Deus fala aos corações dos homens por visões escondidas e verdadeiras, ou por intermédio de um anjo. Com efeito, o rei de Gerara e o rei do Egito foram advertidos por Deus para que não prejudicassem a Abraão (Gn 12,17-20; 20,3), outro rei, que não maltratasse Isaac (Gn 26,8-11), e outros, que não fizessem mal a Jacó (Gn caps. 31-33) quando ainda eram pouquíssimos e forasteiros, antes que Jacó se transferisse com seus filhos para o Egito, estabelecendo aí morada. Relembram-nos as palavras:

Migraram de nação em nação e de um reino a outro povo”.

Mas, visto que se poderia perguntar como teriam podido, sendo em número reduzido, pouquíssimos e forasteiros em terra estranha subsistir, antes que se transladassem para o Egito e ali se multiplicassem o salmista prosseguiu:

A ninguém permitiu que os oprimisse. Castigou reis por causa deles. Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas”.



§ 10
Sem dúvida, pode alguém interrogar-se como foram chamados ungidos, antes que houvesse unção. Devido a uma unção, este nome de ungido foi imposto aos reis, dos quais Saul foi o primeiro. Sucedeu-lhe Davi. De então em diante os demais reis de Judá e os de Israel, segundo este costume sagrado, eram ungidos. Tal unção figurava o único e verdadeiro Cristo, ao qual foi dito:

Por isso, ó Deus, te ungiu o teu Deus com o óleo da alegria, de preferência a teus companheiros(Sl 44,8).

Donde se origina, pois, que aqueles já então eram denominados ungidos? Lemos a respeito de Abraão que eles foram profetas; de fato, o que é claramente dito acerca de um, deve-se entender dos outros. Ou seriam ungidos porque, de maneira latente, já eram cristãos? Pois, embora a carne de Cristo originou-se deles, no entanto Cristo existia antes deles, conforme a resposta que ele deu aos judeus:

Antes que Abraão nascesse, eu sou”.

Como, porém, eles o ignoravam, ou nele não acreditavam, se eram chamados profetas porque, apesar da forma oculta, prenunciavam o Senhor? Por isso, ele diz claramente:

Abraão desejou ver o meu dia. Ele o viu e encheu-se de alegria(Jo 8,58.56).

Ninguém, sem a fé em Cristo Jesus, seja antes de sua encarnação, seja depois, reconciliou-se com Deus; o Apóstolo delimitou-o com toda verdade:

Há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus(1 Tm 2,5).



§ 11
16.17 Logo começa a narrar como se realizou a migração de nação em nação e de um reino a outro povo.

Ele chamou a fome sobre a terra e os privou de todo sustento de pão. Adiante deles enviou um varão, José que foi vendido por escravo”.

Por causa dele, migraram de nação em nação e de um reino a outro povo. Mas, não convém passar descuidadamente pelas locuções das Sagradas Escrituras. Dizem elas:

Ele chamou a fome sobre a terra”.

Parece que a fome é uma pessoa, ou um corpo animado, ou algum espírito que pode obedecer a quem o chama. No entanto, a fome é um mal contraído por inanição, e para aqueles que dela padecem é uma espécie de doença. A doença cessa, muitas vezes, com um medicamento; assim a fome se cura com o alimento. Então por que dizer: Chamou a fome? Por acaso este mal de que sofrem os homens tem como chefe um anjo mau (pois outro salmo diz que por uma intervenção de anjos maus Deus afligiu os homens (Sl 77,49), e este é um juízo exato) , e talvez:

Chamou a fome” quer dizer, chamou o anjo preposto à fome, mencionado sob o nome daquilo a que preside? Segundo este modo de opinar, os antigo romanos criaram alguns deuses com nomes semelhantes, como a deusa Febre e a deusa Lividez. Ou então o que é mais verossímil:

chamou a fome”, quer dizer, ordenou que a fome existisse. Denominar aqui seria chamar, chamar seria dizer, dizer seria mandar? Pois, chamou a fome, ele que “chama à existência as coisas que não existem(Rm 4,17), como se existissem. O Apóstolo não afirma: Chama as “coisas que não existem para existirem: mas, como se existissem”.

Para Deus já é realidade aquilo que, segundo seus desígnios, há de vir futuramente. Disto fala outra passagem:

Fez as coisas que hão de vir(Is 45,11, sg LXX).

Neste salmo, diz-se que a fome foi chamada quando foi feita, isto é, que aparecesse aquela que já existia, por oculta disposição de Deus. Enfim, logo expôs de que maneira Deus chamou a fome, dizendo:

E os privou de todo sustento de pão”.

É uma expressão pouco usual:

privou” em vez de consumiu.



§ 12
Adiante deles enviou um varão”.

Quem? José. Como enviou? “Que fora vendido como escravo”.

Com efeito, o ato dos irmãos foi pecado; foi Deus, contudo, que enviou José para o Egito. Consideremos uma questão importante e muito necessária: como Deus emprega bem as obras más dos homens, assim como estes, ao contrário, empregam mal as obras boas de Deus.



§ 13
18.19 Em seguida, a narração prossegue, relembrando o que José suportou em sua humilhação, e como foi exaltado.

Humilharam-no com os pés entre os grilhões, o ferro traspassou-lhe a alma, até que se cumprisse seu oráculo”.

Não lemos que José tenha sido preso com grilhões; mas de forma alguma devemos duvidar disto. Alguns pormenores da história puderam ser omitidos: no entanto, o Espírito Santo não os ignorava e é ele quem fala nos salmos. Quanto ao ferro que se diz ter-lhe traspassado a alma, tomamos no sentido de uma tribulação dura e necessária. Não fala o salmo do corpo, mas da “alma”.

Existe no evangelho uma locução semelhante, quando Simeão diz a Maria:

Eis que este menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição, — e a ti, uma espada traspassará tua alma! — para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações(Lc 2,34.35).

Efetivamente, a paixão do Senhor, que serviu de queda para muitos, e durante a qual se revelaram os pensamentos íntimos de muitos corações, porque exprimiram o que pensavam acerca do Senhor, também sem dúvida contristou a mãe, gravemente atingida pela perda do filho. Quanto à tribulação de José, durou “até que se cumprisse o seu oráculo”, sua interpretação verdadeira dos sonhos: por causa disso ele foi recomendado ao rei, a fim de que ele predissesse os eventos futuros, baseado nos sonhos do rei (cf Gn 41).

Mas, como o salmista disse:

até que se cumprisse o seu oráculo”, para evitar que interpretássemos “o seu”, atribuindo a um homem tamanha ação, logo prosseguiu:

E a palavra de Deus o inflamou”; ou conforme se encontra em alguns códices, traduzido mais literalmente do grego:

E a palavra de Deus o abrasou”, de tal modo que ele fosse enumerado entre aqueles aos quais foi dito:

Gloriai-vos de seu nome Santo. E a palavra de Deus o abrasou”.

Com razão, quando o Espírito Santo foi enviado pelo Senhor, apareceram-lhes umas como línguas de fogo, que se distribuíram (At 2,3).

E diz o Apóstolo:

Fervorosos de espírito(Rm 12,11).

Afastam-se deste fogo aqueles dos quais se diz:

O amor de muitos esfriará(Mt 24,12).



§ 14
20.22 Em seguida vem:

O rei mandou soltá-lo. O so-berano dos povos o libertou”.“Rei” é o mesmo “soberano dos povos”, que “soltou” o prisioneiro, “libertou” o preso.

Nomeou-o senhor de sua casa e governador de todos os seus domínios para instruir os magnatas segundo a sua vontade e ensinar a prudência aos anciãos”.

O texto grego traz:

E ensinar a sabedoria aos anciãos”.

Precisamente se poderia traduzir:

Instruir os magnatas segundo a sua vontade, e tranformar em sabios os anciãos”.

Pois, o grego traz a palavra presbitérous que costumamos verter por anciãos e não gérontas, isto é, velhos; sophísai que não se pode traduzir por uma só palavra latina, deriva de sabedoria, que em grego é sophia e não de prudência, phónesis. Mas, também não lemos isto quando José foi exaltado, como também não encontramos grilhões em sua humilhação. Mas como é possível que um tão grande varão, adorador do único e verdadeiro Deus, estivesse empenhado somente em alimentar os corpos e em governar as coisas temporais, sem se preocupar com o que os tornaria melhores, a saber, o cuidado com as suas almas? Mas estas coisas foram registradas naquela história, as quais segundo a intenção do autor, que tinha em si o Espírito Santo, eram suficientes para representar as coisas futuras, através de sua narativa.



§ 15
23 “Então Israel entrou no Egito e Jacó foi peregrino na terra de Cam”.

Israel identifica-se com Jacó e Egito com a terra de Cam. Daí se evidenciou que da descendência de Cam, filho de Noé, cujo primogênito foi Canaã, se originou o povo egípcio. Por conseguinte, deve-se corrigir a palavra Canaã neste lugar, conforme se encontra em alguns códices. É melhor traduzir:

foi peregrino” do que “habitou”, segundo alguns códices. Enfim, seria o mesmo que dizer peregrino, pois não significa outra coisa. De fato, no grego esta passagem usa a mesma palavra que acima, no trecho:

Pouquíssimos e forasteiros naquela região”.

Forasteiro ou peregrino não é nativo, mas estrangeiro. Eis como “migravam de nação em nação e de um reino a outro povo”.

Fora apresentado resumidamente e brevemente foi explicado. Mas com razão se pode perguntar de que reino passaram a outro povo. Pois, ainda não reinavam na terra de Canaã, porque ainda não fora constituído ali o reino de Israel. Como, portanto, se pode entender, senão talvez por antecipação, porque ali haveria um reino de sua raça?



§ 16
24 Logo são descritos os acontecimentos no Egito.

O Senhor fez crescer muito o seu povo e o fez mais forte que seus inimigos”.

Também isto foi apresentado em resumo primeiro e depois se narra como aconteceu. O povo de Deus ainda não era mais forte do que os egípcios, seus inimigos, quando eles matavam os recém-nascidos, nem quando eram oprimidos na fabricação de tijolos; mas foram mais fortes quando se tornaram temíveis e respeitáveis devido à mão poderosa de seu Deus e Senhor a operar sinais e prodígios, até que fosse vencida a dureza do faraó e o perseguidor com seu exército se afogassem no mar Vermelho.



§ 17
A breve declaração:

E o fez mais forte que seus inimigos” nos induz a interrogarmos como isso se deu; o sal-mista começa a dizer, até defini-lo por uma narração.

Mudou-lhes o coração para detestarem o seu povo e empregarem dolo contra os seus servos”.

Por acaso devemos entender, ou acreditar que Deus transforme o coração do homem para cometer pecados? Ou não será pecado, ou será pecado leve odiar o povo de Deus e empregar fraude contra seus servos? Quem diria isto? Então seria Deus autor destes pecados gravíssimos, ele que não se pode crer ser autor de nenhum pecado mesmo levíssimo? Quem é sábio e entende essas coisas? (cf Sl 106,43).

Ora, a bondade de Deus é tão admirável que emprega bem até os maus, sejam anjos, sejam homens. Apesar de serem eles por seu próprio vício malvados, Deus tira o bem de suas más ações. Eles, de fato, não eram bons antes de detestarem seu povo; mas eram tão malignos e ímpios que facilmente invejavam a felicidade dos forasteiros. O fato de Deus ter feito crescer o seu povo levou os maus à inveja de seu benefício. Com efeito, a inveja é ódio da felicidade alheia. Mudou-lhes o coração de tal forma que por inveja detestassem seu povo e empregassem dolo contra seus servos. Não o fez tornando maus seus corações, e sim beneficiando a seu povo; fez com que eles espontaneamente odiassem em seu malvado coração. Pois, Deus não perverteu um coração reto, mas mudou o coração perverso a odiar espontaneamente o povo, tirando porém um bem do mal. Não os fez maus, mas concedeu tais bens a seu povo que eles com facilidade podiam invejar. Os versículos seguintes nos ensinam como o ódio dos egípcios foi utilizado por Deus para exercitar o seu povo e para a glória do nome de Deus, que nos é proveitosa. Tudo isso é relembrado para o louvor de Deus, ao se cantar: Aleluia.



§ 18
20 “Mas Deus lhes enviou Moisés, seu servo, e Aarão, seu escolhido, ele próprio”.

Bastaria:

seu escolhido”.

Não é preciso investigar porque foi acrescentado:

ele próprio”.

É um modo de falar peculiar às Escrituras, conforme a expressão:

Onde habitarão nela(Nm 13,20; Lv 18,3, sg LXX).

As páginas divinas estão cheias destas locuções.



§ 19
27 “Transmitiu-lhes palavras, sinais e prodígios na terra de Cam”.

Não devemos entender:

palavras, sinais e prodígios”, como se fossem palavras pelas quais se faziam sinais e prodígios, proferidas em vista de um milagre. Mui-tas coisas aconteceram sem palavras, por meio da vara, da mão estendida, ou das cinzas jogadas para o ar. Mas como os mesmos fatos não eram desprovidos de sentido, como não o são as palavras que proferimos, fala-se de palavras, não constituídas de vozes e sons, mas de sinais e prodígios.

Transmitiu-lhes”, quer dizer, operou por meio deles.



§ 20
28 “Mandou trevas e tudo escureceu”.

Está escrito também isso entre as pragas que feriram o Egito. Os versículos seguintes, variam nos diversos códices. Com efeito, uns trazem:

Mas eles resistiram às suas palavras”, outros, porém:

Mas eles não resistiram às suas palavras”; a primeira forma, nós a encontramos em maior número; o acréscimo da partícula negativa pudemos encontrar apenas em dois códices. Mas, talvez a correção seja mais numerosa por apresentar sentido mais fácil; que há de mais fácil de entender do que o que foi dito:

Mas eles resistiram às suas palavras?” Sim, às suas contumazes contradições? Esforçamo-nos por expôr também segundo uma sentença correta a segunda forma, e ocorreu-nos o seguinte:

Mas não resistiram às suas palavras”, quer dizer, trata-se de Moisés e Aarão, porque eles suportaram com a maior paciência mesmo os mais duros, até que se cumprisse por ordem tudo o que Deus dispusera fazer-lhes.



§ 21
29.30 “Converteu-lhes as águas em sangue, matando-lhes todos os peixes. Infestou-lhes a terra de rãs, que pulularam até nos aposentos reais”.

Seria como se dissesse: Converteu-lhes a terra em rãs. Foi tamanha a quantidade de rãs, que isto se diria convenientemente por hiperbolén (hipérbole).



§ 22
31 “À uma palavra dele vieram moscas e mosquitos em todo o seu território”.

Se perguntarmos quando Deus falou, estava em sua palavra antes de se realizarem, pois ali estavam sem tempo os acontecimentos que adviriam no tempo. Embora se fizessem através de anjos, e de seus servos Moisés e Aarão, mesmo então, de certa maneira, ele proferiu que se fizesse quando se devia fazer.



§ 23
32 “Em vez de chuva enviou-lhes granizo”.

Assemelha-se à locução acima:

Infestou-lhes de rãs a terra”, com a diferença de que não toda a terra se converteu em rãs, enquanto toda a chuva pôde se converter em granizo.

Fogo abrasador sobre a sua terra”.

Subentende-se:

enviou”.



§ 24
33 “Devastou-lhes vinhas e figueiras e quebrou o arvoredo de seus campos”.

Aconteceu tudo isso pela força do granizo e dos raios; por isso, disse o salmista:

fogo abrasador”.



§ 25
34 “Ordenou e vieram o gafanhoto e lagartas incon-táveis”.

Uma só é a praga do gafanhoto e de lagartas; porque uns são os pais, outras as filhas.



§ 26
35 “Que devoraram toda a erva do país e comeram todos os frutos de sua terra”.

Também a erva é fruto, conforme a maneira habitual de falar das Escrituras, que chama de erva até as colheitas de frutos. Usou as duas palavras, talvez porque quis que combinassem com o número que dissera, isto é, dois: gafanhotos e lagartas. Tudo isso pertence à variedade de estilo, para se evitar o fastio, e não à diversidade de sentenças.



§ 27
36 “Feriu de morte todos os primogênitos do país, as primícias de todo o seu trabalho”.

Esta foi a última praga, se excetuarmos a morte no mar Vermelho. Penso que se fala em primícias de todo o seu trabalho por causa dos primogênitos dos animais. Sendo dez as pragas, nem todas foram relembradas, nem se lêem na mesma ordem em que se realizaram. Um escrito elogioso não se sujeita à lei das narrações ou da história. O autor e escritor deste texto elogioso é o Espírito Santo mediante o profeta. Este, com a mesma autoridade, de fato, daquele que escreveu a história, comemora algum fato que nela não se lê, ou omite algum que lá se encontra.



§ 28
37 Aos louvores de Deus se acrescenta o feito de que tirou do Egito os israelitas enriquecidos de ouro e prata. De fato, eles ainda eram dos que não podiam menosprezar a recompensa, temporal é verdade, mas devida e justa de seus trabalhos. Nem porque eles enganaram os egípcios, dos quais pediram de empréstimo ouro e prata, se deve pensar que Deus ordenasse os dolos daqueles que têm o coração ao alto, ou, se eles o fizessem, que Deus os aprovasse. Antes por aquelas palavras de Deus, que via seus corações e examinava seus desejos, foi-lhes permi-tido agir assim, mas não lhes foi ordenado. Entretanto, foram impelidos por um ânimo carnal os que assim agiram para com aqueles que o mereciam e embora tenha sido por dolo, tiraram de homens iníquos o que lhes era devido. Deus empregou divinamente a iniqüidade dos egípcios e a fraqueza dos israelitas a fim de obter o que deviam aqueles fatos figurar e prenunciar.

E fez sair o povo com ouro e prata”.

Este modo de se expressar é próprio da Escritura. Disse:

com ouro e prata”, em vez de: carregado de ouro e prata.

E em suas tribos não havia enfermos”, mas de corpo, não de alma. Constituía isto um grande benefício de Deus: que não houvesse doente algum enquanto eles se vissem na necessidade de migrar.



§ 29
38 “O Egito se alegrou com a sua partida, por causa do temor que lhes incutiam”.

Refere-se ao temor que os hebreus incutiam aos egípcios. Não o “temor” dos hebreus, mas o que eles incutiam. Dirá alguém: Como então os egípcios não queriam deixá-los partir? Como os demitiram pensando que eles voltariam? Como lhes emprestaram o ouro e a prata que eles pediram, pensando que haveriam de voltar e devolver o emprestado, se “o Egito se alegrou com a sua partida?” Mas, compreende-se que depois da última praga da morte dos primogênitos dos egípcios, e de tamanha mortandade do exército perseguidor no mar Vermelho, os egípcios tenham tido medo de que os hebreus voltassem e esmagassem com a maior facilidade os restos de seu povo. Então se cumpriu o que foi dito mais acima:

O Senhor fez crescer muito o seu povo”; e logo prosseguiu:

E o fez mais forte que seus inimigos”.

O salmista, no intuito de explicar a sentença proferida num só versículo e como isto se realizou, acrescentou o restante da narração que exalta esta mortandade, até este trecho:

O Egito se alegrou com a sua partida, por causa do temor que lhes incutiam”.

Parece assinalar o que propusera: Que Deus fez seu povo mais forte que seus inimigos.



§ 30
39 Em seguida narra quais os benefícios divinos em sua caminhada pelo deserto.

Distendeu uma nuvem para protegê-los, e deu-lhes um fogo para iluminá-los durante a noite”.

Esses eventos são tão manifestos quanto conhecidos.



§ 31
40 “A seu pedido, mandou-lhes cordonizes”.

Não haviam desejado codornizes, mas carne. Uma vez, contudo, que condorniz é carne, e neste salmo não se fala da murmuração daqueles nos quais Deus não depositou a complacência, e sim da fé dos eleitos, que constituem a verdadeira descendência de Abraão, deve-se interpretar que estes pediram fosse abafada a murmuração dos queixosos.

E os fartou com o pão do céu”.

O salmista não nomeia o maná, mas isto é claro para quem lê as Escrituras.



§ 32
41 “Fendeu o rochedo e joraram águas, que correram qual rio pelo deserto”.

Ao se ler alusão a tal acontecimento, logo se entende.



§ 33
42.44 Depois Deus recomenda o mérito da fé de Abraão, através de todos esses benefícios seus. Continua o salmo:

Porque se lembrou de sua palavra santa, empenhada a Abraão seu servo. E conduziu seu povo com exultação e seus eleitos entre gritos de alegria”.

Tendo dito:

seu povo”, repetiu:

seus eleitos”; e:

com exultação”, retoma:

entre gritos de alegria. E lhes deu a região dos gentios e desfrutaram das riquezas dos povos. Região dos gentios” identifica-se com “riquezas dos povos”; e:

deu-lhes” foi repetido sob esta forma:

desfrutaram”.



§ 34
45 O salmista para evitar que perguntássemos a quem tudo isso foi dado, e que pensássemos nisto consistir o bem supremo, porque Deus concedeu a seu povo esta felicidade temporal, imediatamente a refere a outro fim, onde importa procurar o bem supremo:

Para guardarem as suas justificações e buscarem a sua lei”.

Trata-se aqui dos servos de Deus e filhos escolhidos da promessa, verdadeira e genuína descendência de Abraão, que imita a fé de Abraão. Por isso, receberam estes bens terrenos da parte de Deus, de sorte que não se dissipassem no luxo, nem se entorpecessem em enganosa segurança; mas considerassem que tudo isso foi preparado pela divina misericórdia de sorte que em vez de obtê-los ocupando-se em penosos trabalhos, tivessem lazer para adquirirem os bens eternos, isto é:

Para guardarem as suas justificações e buscarem a sua lei”.

Enfim, quis que se entendesse como descendência de Abraão aqueles que o fossem verdadeiramente; estes não faltaram efetivamente no povo hebreu. O apóstolo Paulo o demonstra suficientemente, ao dizer:

Apesar disso, não todos agradaram a Deus(1 Cor 10,5); e se, pois, “não todos”, de fato, alguns ali “agradaram a Deus”.

Uma vez que este salmo recomenda a esses tais, nada relata das iniqüidades, provocações e murmurações daqueles que não agradaram a Deus. Mas, visto que não foi somente a justiça, mas ainda a misericórdia de Deus onipotente e clemente que apareceu até mesmo aos iníquos, o salmo seguinte trata deles, louvando a Deus. No entanto, existiram num só povo uns e outros, os iníquos não mancharam pelo contágio de suas iniqüidades os primeiros. Pois, o “Senhor conhece os que lhe pertencem”; e se neste mundo não é possível separarem-se dos injustos, “aparte-se da injustiça todo aquele que pronuncia o nome do Senhor(2 Tm 2,19).



§ 35
Visando, portanto, a expor qual o espírito oculto de certo modo no que se pode chamar o corpo deste salmo, isto é, o sentido interior latente nas palavras exteriores, parece-me que ele exorta à descendência de Abraão, a saber, todos os pertencentes dentre os filhos da promessa à herança eterna, que prefiram a Deus por sua própria herança, e cultuem-no gratuitamente, isto é, por si mesmo e não tendo em mira algum lucro fora dele. E façam-no louvando, invocando, anunciando, não para a própria glória, mas para a glória de Deus, fazendo o bem pela fé, alegres na esperança, ardorosos na caridade (cf Rm 12, 11.12).

É tudo isso que ressoa nesses versículos:

Confessai ao Senhor e invocai o seu nome. Evangelizai entre as na-ções as suas obras. Cantai-lhe e entoai-lhe salmos. Narrai todas as suas maravilhas. Gloriai-vos de seu nome santo. Alegre-se o coração dos que buscam o Senhor. Procurai o Senhor e confortai-vos. Buscai sempre a sua face”.



§ 36
Em seguida, são propostos os exemplos dos patriarcas, sua fé e as promessas de Deus, para alimentar os corações dos pequeninos e fortificá-los na fé. Imitando os exemplos deles com esperança, sejamos seus descendentes. Não são estes somente os hebreus, mas quantos na terra inteira recebem esta graça. Tal é o conteúdo dos versículos seguintes:

Recordai-vos das maravilhas que realizou, seus prodígios e os juízos proferidos por sua boca. Raça de Abraão, seus servos, filhos de Jacó, seus escolhidos. Ele é o Senhor, nosso Deus, os seus juízos se exercem em toda a terra. Ele se lembrou eternamente de sua aliança, da palavra ordenada a mil gerações. Do pacto que concluiu com Abraão e do juramento que fez a Isaac e que confirmou em preceito a Jacó e a Israel em aliança eterna, dizendo: Dar-te-ei a terra de Canaã, como a porção de vossa herança”.

Expliquei todos esses versículos, mostrando como interpretá-los, segundo minhas capacidades.



§ 37
Neste ponto, pode ocorrer a alguém que não tenha bastante fé: se, pois, deve-se adorar gratuitamente a Deus e procurar a ele mesmo que é a herança do testamento eterno, não há de descurar ele da vida mortal dos que o buscam, de suas necessidades temporais ou da própria multiplicidade de suas misericórdias? Então, ouvi atentamente o que ele outorgou a nossos pais, àqueles cujo exemplo de fé ele nos apresenta, ou àqueles de sua raça que imitaram sua fé.

Quando eram em número reduzido, pouquíssimos e forasteiros naquela região”, na terra de Canaã.

E migraram de nação em nação e de um reino a outro povo. A ninguém permitiu que os oprimisse. Castigou reis por causa deles. Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas”.



§ 38
Se, porém, perguntardes como “migraram de nação em nação e de um reino a outro povo”, ouvi:

Ele chamou a fome sobre a terra e os privou de todo sustento de pão. Adiante deles enviou um varão, José, que fora vendido por escravo. Humilharam-no com os pés entre os grilhões, o ferro traspassou-lhe a alma. Até que se cumprisse o seu oráculo. E a palavra do Senhor o inflamou. O rei mandou soltá-lo; o soberano dos povos o libertou. Nomeou-o senhor de sua casa e governador de todos os seus domínios, para instruir os magnatas segundo a sua vontade e ensinar a prudência aos anciãos. Então Israel entrou no Egito, e Jacó foi peregrino na terra de Cam”.

Eis como “migraram de nação em nação e de um reino a outro povo”.



§ 39
O Senhor fez crescer muito o seu povo e o fez mais forte que seus inimigos”.

Se, pois, quereis saber como o Senhor o fez mais forte que seus inimigos, ouvi:

Mudou-lhes o coração para detestarem o seu povo e empregarem dolo contra os seus servos. Mas Deus lhes enviou Moisés, seu servo e Aarão, seu escolhido, ele próprio. Transmitiu-lhes palavras, sinais e prodígios na terra de Cam. Mandou trevas e tudo escureceu, mas eles resistiram às suas palavras. Converteu-lhes as águas em sangue, matando-lhes todos os peixes. Infestou-lhes de rãs a terra, que pulularam até nos aposentos reais. A uma palavra dele, vieram moscas e mosquitos em todo o seu território. Em vez de chuva, enviou-lhes granizo, fogo abrasador sobre a sua terra. Devastou-lhes vinhas e figueiras e quebrou o arvoredo de seus campos. Ordenou e vieram gafanhotos e lagartas incontáveis que devoraram toda a erva do país e comeram todos os frutos de sua terra. Feriu de morte todos os primogênitos do país, as primícias de todo o seu trabalho. E fez sair o povo com ouro e prata e em suas tribos não havia enfermo. E o Egito se alegrou com a sua partida, por causa do temor que lhes incutia”.



§ 40
Eis como o Senhor fez o seu povo mais forte que seus inimigos. Tendo Deus infligido por sua justiça esses males aos inimigos de seu povo, recebei agora o ensinamento de que sua misericórdia também lhe concedeu benefícios temporais:

Distendeu uma nuvem para protegê-los e deu-lhes um fogo para iluminá-los durante a noite. A seu pedido, mandou-lhes codornizes e os fartou com o pão do céu. Fendeu o rochedo e jorraram águas, que correram qual rio pelo deserto. Porque se lembrou de sua palavra santa, empenhada a Abraão seu servo. E conduziu seu povo com exultação e seus eleitos entre gritos de alegria. Deu-lhes a região dos gentios e desfrutaram das riquezas dos povos”.

Mas, não o adorem por causa disto; refiram-no aos bens eternos e se convertam, isto é, “para guardarem as suas justificações e buscarem a sua lei”.

Quaisquer que sejam os bens conferidos por Deus, devem ser relacionados a um culto gratuito. O inimigo, provocando a este combate, ousou dizer a Deus:

É em vão que Jó teme a Deus”? (Jó 1,9).

Com efeito, se José foi vendido como escravo, foi humilhado e depois exaltado e com isso obteve bens temporais para o povo de Deus, tornando-o mais forte do que seus inimigos, quanto mais Jesus vendido e humilhado por seus irmãos segundo a carne e exaltado no céu, fez reverter tudo isso em bens eternos para o povo de Deus, que triunfou do diabo e de seus anjos? Ouve, portanto, descendência de Abraão, que não se gloria da sua origem carnal, mas imita a sua fé; ouvi, servos de Deus, escolhidos de Deus, que tendes a promessa da vida presente e futura. Se as tentações neste mundo são duras, pensai em José no cárcere e em Jesus na cruz. Se gozais de prosperidade temporal, não sirvais a Deus por causa disso, mas utilizai-a, servindo a Deus. Não julgueis que ele é cultuado pelos que o veneram por causa dos bens necessários à vida presente, porque ele os dá também aos que o blasfemam; mas procurai primeiro o reino de Deus e sua justiça e todas essas coisas vos serão acrescentadas (cf Mt 6,33).