ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 103 | ||
§ 103:1 | Ꞗ Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga o seu santo nome. | |
§ 103:2 | Ꞗ Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum dos seus benefícios. | |
§ 103:3 | Ḕ É ele quem perdoa todas as tuas iniqüidades, quem sara todas as tuas enfermidades, | |
§ 103:4 | ɋ quem redime a tua vida da cova, quem te coroa de benignidade e de misericórdia, | |
§ 103:5 | ɋ quem te supre de todo o bem, de sorte que a tua mocidade se renova como a da águia. | |
§ 103:6 | Ꝋ O Senhor executa atos de justiça, e juízo a favor de todos os oprimidos. | |
§ 103:7 | Ƒ Fez notórios os seus caminhos a Moisés, e os seus feitos aos filhos de Israel. | |
§ 103:8 | Ƈ Compassivo e misericordioso é o Senhor; tardio em irar-se e grande em benignidade. | |
§ 103:9 | Ɲ Não repreenderá perpetuamente, nem para sempre conservará a sua ira. | |
§ 103:10 | Ɲ Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui segundo as nossas iniqüidades. | |
§ 103:11 | Ꝓ Pois quanto o céu está elevado acima da terra, assim é grande a sua benignidade para com os que o temem. | |
§ 103:12 | Ꝙ Quanto o oriente está longe do ocidente, tanto tem ele afastado de nós as nossas transgressões. | |
§ 103:13 | Ƈ Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece daqueles que o temem. | |
§ 103:14 | Ꝓ Pois ele conhece a nossa estrutura; lembra-se de que somos pó. | |
§ 103:15 | Ꝙ Quanto ao homem, os seus dias são como a erva; como a flor do campo, assim ele floresce. | |
§ 103:16 | Ꝓ Pois, passando por ela o vento, logo se vai, e o seu lugar não a conhece mais. | |
§ 103:17 | ɱ Mas é de eternidade a eternidade a benignidade do Senhor sobre aqueles que o temem, e a sua justiça sobre os filhos dos filhos, | |
§ 103:18 | ʂ sobre aqueles que guardam o seu pacto, e sobre os que se lembram dos seus preceitos para os cumprirem. | |
§ 103:19 | Ꝋ O Senhor estabeleceu o seu trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo. | |
§ 103:20 | Ꞗ Bendizei ao Senhor, vós anjos seus, poderosos em força, que cumpris as suas ordens, obedecendo à voz da sua palavra! | |
§ 103:21 | Ꞗ Bendizei ao Senhor, vós todos os seus exércitos, vós ministros seus, que executais a sua vontade! | |
§ 103:22 | Ꞗ Bendizei ao Senhor, vós todas as suas obras, em todos os lugares do seu domínio! Bendizei, ó minha alma ao Senhor! | |
O SALMO 103 | ||
I SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Anteontem, se vos lembrais, fostes servidos com fartura; mas como vos despedistes de nós desejando mais ainda, depois de um longo sermão, pensamos que não devíamos hoje negar a V. Santidade o que é justo darmos. O de hoje para a dívida, o outro foi lucro. O salmo que foi lido, é entretecido quase totalmente de figuras e mistérios, e exige não somente de nós, mas também de vós, gran-de atenção, embora tudo o que foi dito possa ser tomado religiosamente à letra. Enumeram-se, se não todas, muitas das obras de Deus, notórias a todos os que sabem ver atrás das criaturas as invisíveis, com o intelecto. De fato, vemos a amplidão do universo, céu, terra e tudo o que eles contêm; e da beleza e grandeza do mundo passamos à gran-deza e beleza inestimáveis do criador, que embora não ve-jamos, no entanto amamos. Efetivamente, Deus que ainda não pode ser contemplado pela pureza de nosso coração, põe perante nossos olhos suas obras, a fim de que vendo o que podemos ver, amemos aquele que não podemos contemplar, e assim, devido a seu próprio amor, um dia possamos obter a sua visão. Entretanto, devemos procurar também o sentido espiritual em todas as palavras. Nessa busca vossos anelos nos auxiliarão, em nome de Cristo. São eles mãos invisíveis que batem à porta invisível, a fim de que invisivelmente ela se abra, invisivelmente entreis e invisivelmente sejais curados. | |
§ 2 | 1 Em consequência, digamos todos: “Bendize, minha alma, ao Senhor”. Todos nós falamos a nossa alma, porque a alma de todos nós, por uma só fé torna-se uma só alma. E todos nós, que cremos em Cristo, devido à unidade de seu corpo somos um só homem. Bendiga, nossa alma, ao Senhor, por tantos benefícios seus, por tantos e tão grandes dons de suas graças. Atentos, encontramos estes dons neste salmo, se dissiparmos as névoas dos pensamentos carnais, com a mente ereta quanto pudermos, com o olhar direto à medida do possível, quanto possível com a pureza dos olhos de nosso coração, quanto não nos impedir a vida presente, quanto não nos ocuparem os desejos dos bens presentes, quanto não nos cegar a ambição mundana. Eretos, portanto, havemos de ouvir quais as suas dádivas grandes, alegres e belas, desejáveis e cheias de regozijo e de gáudio. Aquele profeta que tivera a concepção deste salmo já o via espiritualmente e na alegria de sua visão irrompia nestas palavras: “Bendize, minha alma, ao Senhor”. | |
§ 3 | “Senhor meu Deus, tu te engrandeceste sumamente”. Vê que expressões magníficas. Com elas é glorificado o autor de todas as maravilhas. “De confissão e esplendor te revestiste”. Senhor meu Deus, que “te engrandeceste sumamente, como foi que te engrandeceste sumamente?” Acaso não és sempre grande? Não és sempre magnífico? Porventura não és perfeito e por isso cresces? Diminuis, desfaleces? Mas, como és o que és, e és verdadei-ramente, declaraste a Moisés, teu servo, o teu nome: “Eu sou aquele que é” (Ex 3,14). Efetivamente, tu és grande, e tua grandeza é eterna; não começou, nem termina. Não começou no início do tempo, nem decorre até o fim dos tempos, nem sofre diminuição no espaço intermediário; é uma grandeza imutável. Como, então, “tu te engrandeceste sumamente?” Outro salmo nô-lo adverte, com as palavras: “Ciência maravilhosa; não me é acessível” (Sl 138,6). Se está certo dizer: “Ciência maravilhosa: não me é acessível”, igualmente é certo: “Senhor meu Deus, tu te engrandeceste sumamente”, por meio de mim. Mas, isto também precisa ser examinado. Por mim és engrandecido, meu Deus? Então, por mim torna-se grande. Ensina-nos algo a oração salutar que rezamos todos os dias. “Santificado seja o teu nome” (Mt 6,9). Pedimos isto diariamente; cotidianamente pedimos que isto se faça. Se alguém nos interrogar: Por que pedis que seja santificado o nome de Deus? Em algum tempo deixa de ser santo, de tal forma que agora seja santificado? Entretanto, se não quiséssemos que isto se realize, não o pediríamos. Uma coisa é congratulação e outra oração. Congratulamo-nos por aquilo que é; rezamos para que se faça o que ainda não é. Então, por que: “Santificado seja o teu nome? Entenderemos depois: Senhor meu Deus, tu te engrandeceste sumamente. Santificado seja o teu nome”, isto é, teu nome seja santificado junto dos homens. Pois, o teu nome é sempre santo, mas para alguns impuros teu nome ainda não é santo. Com efeito, diz o Apóstolo: “Para os puros, todas as coisas são puras; mas para os impuros e descrentes, nada é puro”. Se para os impuros e descrentes nada é puro, procuro saber a causa. Diz ainda: “Tanto a mente quanto a consciência deles estão corrompidas” (Tt 1,15). Se para eles nada é puro, nem Deus; a não ser que penseis que Deus é puro para aqueles que cotidianamente blasfemam contra ele. Se é puro, que agrade; se agrada, seja louvado. Ao contrário, se é blasfemado é porque desagrada; e se desagrada, como pode ser puro para ti quem te desagrada? Por que, então, rezamos: “Santificado seja o teu nome?” Temos em mira que o nome de Deus seja santificado por aqueles homens que ainda não o possuem por serem incrédulos. Para eles ainda não é santo quem por si e em si, e em seus santos é santo. Suplicamos pelo gênero humano, rezamos por toda a terra, por todos os povos, que diariamente se sentam para disputar que Deus não é reto, que Deus não julga corretamente. Que eles por fim se corrijam e levem um coração reto àquela retidão. Aderindo a Deus, orientados para aquele que é reto, já não critiquem, mas quem é reto agrade aos retos, porque: “Como é bom o Deus de Israel”, sim, mas “para os retos de coração” (Sl 72,1). Por esta razão, ao verificar este homem que canta, este cantor que somos nós, isto é, o corpo de Cristo, os membros de Cristo, ao verificar quantos bens Deus outorgou ao gênero humano, se antes parecia-lhe que Deus nada era, ou era falso, ou ao menos não tão grande, contemplando-o em suas obras, disse: “Senhor meu Deus, tu te engrandeceste sumamente”, isto é, ainda não entendia, mas agora compreendo que és grande. Grande é sempre, embora ocultamente; mas para mim és grande quanto te revelaste. Eu te engrandeci, assim como: “Ciência maravilhosa; não me é acessível”, isto é, tornou-se maravilhosa, por mim. Eu a admiro depois que me converti; mas ela, mesmo que eu não me converta, mesmo que após a conversão dela me aparte, permanece íntegra. Mas eu que me tornei grande com ela, e de deficiente tornei-me íntegro nela, admiro o que desconhecia. Não digo que ela se fez grande desde que a conheci, mas que eu me engrandeci desde que aprendi. Escuta, pois. Se Deus, sempre grande parecia ter-se engrandecido sumamente, foi engrandecido sumamente em suas obras diante de nós. | |
§ 4 | “De confissão e de esplendor te revestiste”. Colocou a confissão antes do esplendor, esplendor na beleza. Procuras a beleza; é boa coisa que procuras. Mas por que procuras a beleza, ó alma? Para que teu esposo te ame; de fato, sendo feia não lhe agradas. Como é ele? “Muito belo, acima dos filhos dos homens”. Queres, sendo feia, que aquele que é belo te oscule; mas não consideras que estás repleta de iniqüidades. “Pairou a graça nos teus lábios”. Assim foi dito a respeito dele: “Muito belo, acima dos filhos dos homens. Pairou a graça nos teus lábios, por isso as adolescentes te amaram” (Sl 44,3). Existe, portanto, alguém formoso, muito belo, “acima dos filhos dos homens”. É a este que queres agradar, ó alma humana, uma só, em muitas? Ouçamos falar da Igreja. Eram nos primórdios os fiéis uma só alma e um só coração em Deus (cf At 4,32). Desta Igreja fala o salmo. Queres agradar a Deus? Não podes, enquanto fores disforme; que fará com que tornes bela? Primeiro, que te desagrade tua deformidade e então merecerás obter a beleza da parte daquele mesmo ao qual queres aprazer. Ele mesmo que te formou te reformará. Por isso, considera em primeiro lugar o que és, a fim de não procurares, enquanto és feia, os ósculos de quem é belo. E onde olhar para me ver? Ele te deu o espelho da Sagrada Escritura. Lê-se: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Nesta leitura foi te proposto um espelho. Vê se és o que ele te diz; se ainda não és, geme para te tornares tal. O espelho reflete a tua face. Como o espelho não te adula, nem tu mesmo o faças. Ele te mostra o brilho que tens; vê o que és e se te desagradar, procura mudar. Se enquanto és feia, desagradas a ti mesma, começas a agradar àquele que é belo. Por quê? Porque tua feiura não te apraz, começas a confessar, conforme se diz noutra passagem: “Começai cânticos, confessando ao Senhor” (Sl 146,7). Em primeiro lugar, acusa tua fealdade, pois a fealdade da alma provém dos pecados, das iniqüidades. Acusando tua fealdade começa a confessar, e pela confissão começas a te embelezar; quem te embeleza, a não ser o que é muito belo, acima de todos os filhos dos homens? | |
§ 5 | Ouso afirmar que o Senhor amou mesmo a que era feia para torná-la formosa. Como é que amou mesmo a feia? “Com efeito, Cristo morreu pelos ímpios” (Rm 5,6). Que vida não reserva para ti, depois de justificado, aquele que deu a vida mesmo pelo ímpio? Efetivamente aquele que é formoso, “muito belo, acima dos filhos dos homens”, porque o mais justo dos filhos dos homens, tendo vindo procurar aquela que era feia a fim de torná-la bela (afirmo-o, porque o encontro nas Escrituras), fez-se feio. Não é a mim que deveis ouvir, pois é possível que temerariamente tenha errado. Como dissera: Ele amou mesmo aquela que era feia, não o teria dito convenientemente aos que o amam, se não apresentasse testemunhas. Afirmei o que o Apóstolo asseverou. Queres ver que ele amou mesmo aquela que era feia? “Cristo morreu pelos ímpios”. Assim também agora, o que adiantei: fez-se feio para se aproximar daquela que era feia, fez-se disforme; como o provarei, quando o divino oráculo já predisse: “Muito belo, acima dos filhos dos homens?” Ora, tenho a prova na própria palavra de Deus: “Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar” (Is 53,2). “Muito belo, acima dos filhos dos homens. Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar”. Não disse: Não vimos e por isso não sabíamos se tinha beleza e esplendor; nós o “vimos e não tinha beleza nem esplendor”. Como, então, viu aquele que disse: “Muito belo, acima dos filhos dos homens?” E como viu o que afirmou: “Não tinha beleza nem esplendor?” Escuta como viu aquele que disse: “Muito belo, acima dos filhos dos homens. Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”. Com justeza, “acima dos filhos dos homens”, porque igual a Deus. Aí está, encontrei e sei onde o viu aquele que disse: “Muito belo, acima dos filhos dos homens”. De fato, ele nos responde: Perguntas onde vi? “Na condição divina”. E de onde o viste na condição divina? De que modo o viste na condição divina? “Sua realidade invisível tornou-se inteligível através das criaturas” (Rm 1,20). Bem, ótimo. Concordo, sei quem foi que viste, como viste, onde viste e de onde viste. A quem viste? Nosso esposo. Como o viste? “Muito belo, acima dos filhos dos homens”. Onde o viste? “Sendo ele de condição divina”. De onde o viste? “Tornou-se inteligível através das criaturas”. Examinemos agora o que afirma a respeito dele outro profeta, mas não como outro espírito; pois eles não discordam um do outro. O salmista nos apresentou o que era muito belo acima dos filhos dos homens; apresente-nos agora o profeta que declarou: “ Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar”. Um só, o apóstolo Paulo, une os dois profetas; um só capítulo de Paulo dá testemunho a ambos os profetas. Nele encontro aquele que é muito belo acima dos filhos dos homens: “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus”. Paulo disse o que viu também o outro, que ele não tinha beleza nem esplendor, porque “aniquilou-se a si mesmo, as-sumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos ho-mens, e sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2,6-8). Com razão, não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar. Conse-qüentemente, diante da cruz, os judeus meneavam a cabe-ça, dizendo: Este é o Filho de Deus? “Se é Filho de Deus, desça da cruz” (Mt 27,40). Mas, ele não tinha beleza nem esplendor. Mesmo assim, ó vós, aos quais desagrada não ter ele beleza nem esplendor! Ó vós, que meneais a cabeça diante da cruz, em vez de unir vossa cabeça àquela Cabeça que estava na cruz! É com justiça que a cabeça dos que o insultam, oscila até que ele se torne a Cabeça de seus injuriadores. Assim ele reassume a beleza e grande beleza. Deste modo é menos o que propões do que aquilo que ele fez. Tu dizes: “Se é Filho de Deus, desça da cruz”. Eis que ele não desceu da cruz, mas ressuscitou do sepulcro. | |
§ 6 | Por conseguinte, ó alma, não podes tornar-te bela, se não confessares tua fealdade àquele que é sempre formoso, e por tua causa se fez temporariamente sem beleza. Temporariamente não tinha beleza, estando na condição de escravo, de tal forma, porém, que jamais se tenha diminuído sua beleza, na condição divina. Tu, também, ó Igreja, tens beleza. De ti se declara no Cântico dos cânticos: “Ó mais bela das mulheres” (Ct 5,9). Diz-se de ti: “Quem é essa que sobe alvejada”? (Ct 8,5 sg LXX). Que significa “alvejada?” Iluminada: não alvejada, como se estivesse pintada, como se pintam as mulheres que querem parecer o que não são; não caiada como uma parede branca, que, conforme diz o Apóstolo, será destruída, pois é hipocrisia e simulação. Parede caiada, coberta de estuque por fora, e no interior, lama. Ela não é alvejada desta forma; mas alvejada, iluminada, porque por si mesma não é branca. Diz o Apóstolo: “Outrora era blasfemo” (1 Tm 1,13); e ainda: “Éramos por natureza, como os demais, filhos da ira” (Ef 2,3). Chegou depois a graça que ilumina e alveja. Primeiro foste negra, mas te tornaste branca através da graça de Deus. “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). Refere-se, portanto, a ti a palavra: “Quem é essa que sobe alvejada?” Já és admirável, e apenas com dificuldade é possível te contemplar. Admira-se quem diz: “Quem é essa que sobe alvejada”, tão bela, tão luminosa, sem ruga nem mancha? Não é a mesma que jazia no lodo das iniqüidades? Não é a que jazia no adultério com os ídolos? Não é a que era impura, por causa de toda espécie de ambições e desejos carnais? “Quem é esta, portanto, que sobe alvejada?” Atende a quem é que por causa dela tornou-se sem beleza e esplendor, e entenderás sua honra e glória. Se admirares a humildade do Senhor, já não admirarás a elevação da Igreja, por obra dele. Como é grande a felicidade da que foi alvejada e que, mesmo sendo negra, fez descer do céu aquele que é belo, a fim de morrer em favor dos ímpios? Por conseguinte, o Senhor nosso Deus se revestiu de beleza e esplendor, revestiu-se da Igreja, que é confissão e beleza. Primeiro confissão, depois beleza. Confissão dos pecados, beleza das boas ações: “De confissão e esplendor te revestiste”. | |
§ 7 | 2 “Envolvido de luz como de uma veste”. É a veste, da qual já disse: “Sem mancha, nem ruga” (Ef 5,27). É chamada também luz, conforme disse mais acima: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor”. Não por vós próprios; pois em vós mesmos sois trevas, mas no Senhor sois luz. Por isso, “envolvidos de luz como de uma veste, estende o céu como um pavilhão”. Como realizou isto de se revestir como de uma veste de luz, da Igreja, o salmista o enumera através de certas figuras sacramentais. Ouçamos como a Igreja se fez luz, como se tornou sem ruga nem mancha, como se tornou cândida, alvejada, fúlgida como veste de seu esposo, aderindo a ele, como se fez tudo isso. “Estende o céu como um pavilhão”. Com efeito, isto eu o vejo. Pois, quem estendeu este céu, que olhamos com nossos olhos carnais, a não ser Deus? “E estende como um pavilhão”, é para mostrar a facilidade com que o faz, se o tomarmos à letra. De fato, vê-se a amplidão do céu: se um homem estender uma pequena tenda, só o consegue com grande esforço, muito trabalho e dificuldade e longa operação. Então, a fim de que a fraqueza humana não imaginasse tal trabalho nas obras de Deus, o salmista refere-se a certa facilidade, de acordo com tua capacidade, a fim de que, de certo modo, comeces a crer que Deus opera facilmente e não penses que ele estendeu o céu, como tu fazes o telhado de tua casa. Mas, como é fácil estender uma pele foi tão fácil estender o céu imenso. Admirável facilidade; contudo, o Espírito te fala, segundo tua lentidão em entender. Digo, que o Espírito fala a teu espírito tardo. Pois, nem é como tu estendes uma pele que Deus estende o céu. Se estende do mesmo modo, eis que tens diante de ti uma pele enrugada, ou dobrada; dize-lhe que se estenda, estende a pele por tua palavra. Não posso, respondes. Por conseguinte, até mesmo para esticar a pele estás muito longe da facilidade que Deus tem. “Porque ele falou e foram feitas” (Sl 148,5). “Deus disse: Haja um firmamento no meio das águas e assim se fez” (Gn 1,6). Tomaste algo à letra provisoriamente, de acordo com tua opinião, para figurar a facilidade em criar. | |
§ 8 | Figuradamente, contudo, se quisermos descobrir algo de oculto e bater à porta fechada, encontramos que Deus estendeu o céu como um pavilhão e entendemos que céu é a Sagrada Escritura. Foi a primeira autoridade que Deus estabeleceu em sua Igreja; a começar desta seguem-se as demais. Pois, estabeleceu o céu, que estendeu como um pavilhão, e não é por nada que o compara com uma pele. Em primeiro lugar, estendeu a fama dos pregadores como uma pele. A pele significa a mortalidade. Por isso, aqueles dois seres humanos, nossos primeiros pais, autores do pecado do gênero humano, Adão e Eva (cf Gn 3), quando no paraíso, desprezando o preceito de Deus, e seguindo a sugestão e persuasão da serpente, transgrediram a ordem de Deus, tornaram-se mortais e foram expulsos do paraíso; e para assinalar a mortalidade, foram revestidos de túnicas de peles. Receberam túnicas feitas de pele. Só se retira a pele de animais mortos; portanto, sob o nome de peles foi figurada a mortalidade. Mas então, se a Sagrada Escritura representa isso sob o nome de pele, como é que Deus fez o céu de pele, e “o estendeu como um pavilhão?” Porque os que nos anunciaram a Escritura eram mortais. De fato, o Verbo de Deus é sempre o mesmo, sempre imutável e indefectível. Eis que, “No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Acaso era, e agora não é? É e sempre será. Se, portanto, o Verbo de Deus está com Deus, lê se podes. Mas que respondes? Que está no alto e por isso não podes ler? O Verbo de Deus está em toda a parte; ele atinge de uma extremidade à outra com força, e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra (Sb 8,1;7,24). “Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele” (Jo 1,10); e quando veio, já estava aqui. Pois, veio segundo a carne, mas nunca esteve ausente, segundo a divindade. Por que, então, não podias ler? “Visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus” (1 Cor 1,21), o mundo estabelecido na sabedoria de Deus. Todas as coisas se apoiavam nela, e se ela se subtrai reduzem-se a nada. Estando no mundo, não conhecias pela sabedoria a Deus; por isso era necessário o que segue: “Aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que crêem” (1 Cor 1,21). Se pela loucura da pregação os fiéis se haveriam de salvar, Deus escolheu alguns seres mortais, escolheu homens mortais e que haviam de morrer; empregou língua mortal, usou de sons mortais, empregou um plano para os mortais, empregou instrumentos mortais. Com isso, criou o céu para ti, a fim de conheceres o Verbo imortal através de uma realidade mortal, e tu também te tornasses, pela participação do mesmo Verbo, imortal. Moisés viveu e morreu. Deus lhe disse: “Sobe ao monte e morre” (cf Dt 32,49). Morreu também Jeremias, e tantos profetas morreram; e os ditos dos que morreram, uma vez que não eram deles, mas foram proferidos através deles, sendo de quem “estendeu os céus, como um pavilhão”, permanecem até nós, sua posteridade. Eis que, tendo saído desta vida, o Apóstolo que havia declarado ser para ele muito melhor partir e estar com Cristo (cf Fl 1,23), vive agora com Cristo, assim como todos aqueles profetas vivem com Cristo. Mas, por intermédio de quem nos foram dispensadas as leituras que possuímos? Por algo que havia de morrer: boca, língua, dentes, mãos. Todos eles o Apóstolo empregou para escrever o que lemos; são tarefas corporais, às ordens da alma, que fazia o que Deus mandava; por isso, o céu foi estendido como uma pele. Nós, estamos debaixo do céu, como sob a pele das Sagradas Escrituras e as lemos quando são estendidas. Na verdade, no fim, “os céus se enrolam como um livro” (Is 34,4). Não inutilmente, irmãos, se comparam ali à pele, aqui ao livro; são certas figuras. Quanto à Sagrada Escritura, é estendida como palavra de mortos; por isso, é estendida como pele; e muito mais se estende, porque eles morreram. Pois, após a morte, os profetas e os apóstolos se tornaram conhecidos; não eram tão notórios enquanto viviam. Somente a Judéia teve profetas em vida; depois de mortos, todos os povos. Enquanto viviam, a pele não estava ainda estendida, o céu ainda não estava estendido, para cobrir toda a terra. Por isso, “estende o céu como um pavilhão”. | |
§ 9 | 3 “Que protege com as águas a parte superior”. Lemos isto, e é bem inteligível à letra. Quando Deus ordenou que se fizesse um firmamento entre as águas, assim se fez, de tal modo que as águas inferiores chovessem sobre a terra, e haja águas superiores, longe de nossos olhares, no entanto relembradas pela fé. “Águas que estão acima dos céus, louvem o nome do Senhor; porque ele falou e foram feitas; ele ordenou, e foram criadas” (Sl 148,4.5). Por conseguinte, está explicado seu sentido à letra. Pois, ele “protege com as águas a parte superior”. Qual o sentido figurado? Figuradamente tomamos como pele a Sagrada Escritura, e a autoridade da palavra divina dispensada a nós através de seres mortais, cuja fama se propagou após sua morte. Neste sentido, como “protege com as águas a parte superior? “Parte superior de quê? Do céu. E que é o céu? A Sagrada Escritura. Quais são as partes superiores da Sagrada Escritura? Que encontramos na parte mais alta da Sagrada Escritura? Interroga Paulo, e ele responde: “Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos”. Qual o caminho denominado eminente entre todos? “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa, como um címbalo que tine” (1 Cor 12,31; 13,1). Se, portanto, na Sagrada Escritura nenhum caminho se pode encontrar superior à caridade, as partes superiores do céu como são protegidas pelas águas, se os preceitos principais da Escritura são os da caridade? Escuta como: “O amor de Deus”, diz o Apóstolo, “foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Ao falar em amor derramado, entende-se como águas a caridade do Espírito Santo. São as águas nomeadas em certa passagem da Escritura: “Não derrames pela rua o teu manancial. Sejam para ti somente, sem reparti-lo com estranhos” (Pr 5,16-17). Todos os estranhos ao caminho da verdade, sejam pagãos, sejam judeus, sejam hereges, ou qualquer mau cristão, podem ter muitos dons, mas não podem ter a caridade. Que dom é esse? Para não falarmos de outros dons exteriores, dons que possuem todos os homens, porque Deus faz o seu sol nascer sobre bons e maus (cf Mt 5,45); são dons de Deus, comuns não somente aos bons e maus, mas até às feras e animais domésticos. Constituem dons de Deus o próprio ser, viver, ver, sentir, ouvir e as funções dos outros sentidos; mas vede como são comuns com que espécie de seres e com quantos, mesmo com aqueles que não queres imitar. Até os piores homens têm engenho agudo, têm perícia e habilidade nas artes os mais torpes artistas teatrais, têm riquezas até os ladrões, têm mulher e filhos muito malvados. Todos esses são belos dons de Deus, ninguém o nega; mas verifica como são comuns a quaisquer espécies de homens. Considera os ofícios da própria Igreja. Qual a importância dos múnus sacramentais no batismo, na eucaristia e nos demais santos sacramentos? Estes múnus conseguiu-os até Simão, o mago (cf At 8,13). Que ofício é a profecia? Profetizou também Saul, rei péssimo, e profetizou até enquanto perseguia o santo Davi. Atenção! Não disse: quando havia perseguido. Talvez tivesse perseguido e se arrependido e então se tornou digno de profetizar. Não profetizou tendo perseguido, nem estando para perseguir, mas profetizou quando perseguia. Mandou seus servos para prender Davi; Davi, contudo, nesta ocasião estava no meio dos profetas, onde estava também o santo profeta Samuel; ficaram cheios do espírito de profecia os enviados e profetizaram. Provavelmente haviam vindo com ânimo bom, ou obrigados por ofício, ou não fariam o que fora ordenado. Saul enviou outros; assim se fez, e interpretemos de igual modo sua disposição de ânimo. Como eles tardassem, veio furioso o próprio Saul, aspirando por morticínio, sedento do sangue do santo inocente, para com o qual era ingrato; e ele também ficou cheio do espírito profético, e profetizou (cf 1Rs 19,18-24). Por isso, não se gabem os que talvez sem a caridade receberam este santo dom de Deus, o santo batismo: mas vejam que contas prestarão a Deus, por usarem as coisas santas de maneira não santa. Serão do número daqueles que dirão: “Não foi em teu nome que profetizamos?” Não terão a resposta: Mentis, mas ser-lhes-á dito: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt 7,22.23). “Porque ainda que eu tivesse o dom da profecia, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria (1 Cor 13,2). Saul profetizava, mas praticava a iniqüidade. Quem pratica a iniqüidade, senão quem não tem a caridade? Pois, a caridade é a plenitude da lei (cf Rm 13,10). Portanto, “protege com as águas a parte superior”. Que disse? Em todas as Escrituras a caridade constitui o caminho mais excelente, o lugar que ultrapassa a todos. Somente os bons a ela aspiram; os maus não participam dela conosco. Podem ter em comum o batismo, podem estar em comunhão conosco nos demais sacramentos, na oração, estar dentro das mesmas paredes, participar desta reunião; mas, da caridade não participam conosco. Ela é, efetivamente, a própria fonte dos bens, peculiar aos santos; dela se diz: “Sem reparti-la com estranhos”. Quem são os estranhos? Todos os que ouvem a palavra: “Nunca vos conheci”. Aqueles que propriamente pertencem ao reino dos céus mantêm-se no caminho que ultrapassa a todos, a caridade. Por conseguinte, o preceito da caridade está acima dos céus, acima de todos os livros. Os livros lhe são inferiores; para ela militam as línguas dos santos e os movimentos todos dos dispensadores dos bens de Deus, tanto os da alma como os do corpo. Trata-se, portanto, do mais excelente dos caminhos, e com razão Deus protege com águas a parte superior do céu, porque nada se encontra de mais importante do que a caridade nos livros divinos. | |
§ 10 | Mas escuta com mais clareza o que é a água. Pois, dissemos que o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado; dissemos também: “Não derrames pela rua o teu manancial” (Pr 5,16). Pode dizer-me alguém: Ali não se diz expressamente que devo entender como sendo a caridade. E se houver outro modo de entender? Lembra-te somente do que disse o Apóstolo: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações”. De que modo? “Pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Escuta agora o Senhor, mestre dos apóstolos: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba”. Diga-nos ainda: “Quem crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva”. Qual o sentido dessas palavras? Exponha o evangelista: “Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem; pois não havia ainda sido dado o Espírito, porque Jesus não fora ainda glorificado” (Jo 7,37-39). Conseqüentemente, irmãos, se o Espírito ainda não fora dado, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado, depois que ele foi glorificado e subiu ao céu, foi enviado o Espírito Santo e os apóstolos ficaram repletos de caridade, porque fora derramada em seus corações pelo Espírito Santo, que lhes fora dado. Assim aconteceu, porque as partes superiores do céu são protegidas pelas águas. Muito bem. O Senhor subiu aos céus, subiu acima dos céus para de lá enviar a caridade. Deus não protege os céus como se fosse ele mesmo sustentado por aquilo que ele protege. Ele ergue aquele que é protegido, não o onera. Por isso, protege o céu com as águas, para elevá-los mais pelo Espírito Santo. O que eleva está em cima; o que é elevado está abaixo. Suspende-o, e o céu está pendente. Se, pois, suspende o céu, este está pendente. O céu das Escrituras depende da caridade. De fato, são muito notórios os dois preceitos da caridade: “Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22,40). “Que protege com as águas a parte superior”. | |
§ 11 | “E emprega as nuvens para subir”. Podem-se tomar bem estas palavras à letra. O Senhor subiu visivelmente ao céu. Como emprega as nuvens para subir? “Dito isso, uma nuvem o ocultou” (At 1,9). A mesma coisa foi predita a respeito de nossa ressurreição: “Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim, estaremos para sempre com o Senhor” (1 Ts 4,15,17). Tens aí as nuvens para subir ao céu; mostrarei também como se empregam as nuvens para subir a este céu, isto é, o céu das Sagradas Escrituras. Como é isto, irmãos? Oxalá o Senhor meu Deus se digne contar-me entre aquelas nuvens. Ver-se-á que nuvem escura eu sou. Tomai como nuvens todos os pregadores da palavra da verdade. Todos aqueles que por fraqueza não podem subir a este céu, isto é, ao entendimento das Escrituras, subam por meio das nuvens. Talvez agora isso acontece também a vós; se fazemos algo, se nosso labor e nosso suor não são infrutíferos, subis ao céu das Escrituras Sagradas, isto é, ao entendimento delas, através de nossa pregação. A que altura achava-se o céu deste salmo! Nenhum de vós entendia essa figura: “Estende o céu como um pavilhão, que protege com as águas a parte superior”. Até mesmo a palavra: “E emprega as nuvens para subir”, já está entendido, através de nossa pregação, à medida que o Senhor nos concedeu. Pois, as chuvas não caem por si mesmas das nuvens. Subi, ao com-preenderdes, e com este entendimento frutificai. Não sejais como a vinha mencionada pelo profeta: “Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela” (Is 5,6). Ele denuncia a vinha que havia produzido espinhos em vez de uvas, não retribuíra dignamente à sua-vidade da chuva. Quem ouve boas palavras e age mal, recebe uma chuva suave e produz espinhos. Não devemos ima-ginar, irmãos, que o Senhor se refira a uma vinha terrena e visível. Com efeito, no intuito de evitar que se interpretasse como uma desculpa aos pecados a obscuridade da palavra, o próprio Senhor, através do profeta, explicou de que vinha falava e se dirigia: “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel” (Is 5,7). Por que motivo, ó iníquos, vossos corações divagam através de montes e colinas dos vinhateiros? Sei, diz ele, de que vinha estou falando, sei onde procurava uvas e encontrei espinhos; inutilmente vos entregais a suspeitas e opiniões, sem quererdes entender para não terdes de agir bem. Pois, também isto está escrito: “Não quis entender para agir bem” (Sl 35,4). Desisti de todas as vossas imaginações: “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel e os homens de Judá a sua plantação preciosa”. Preciosa ao ser plantada; condenada ao produzir espinhos. Por conseguinte, irmãos, a casa de Israel teria sido a vinha, e nós não somos? Ouçamos com temor o que foi dito aos judeus. Vede como o Apóstolo atemoriza os ramos enxertados em lugar dos ramos quebrados (Rm 11, 20-22), recomendando a estes que receiem a severidade, e aos ramos enxertados que amem a bondade de Deus. Não sejas infrutífero quando ele emprega bondade, a fim de não temeres a severidade, por causa de tua esterilidade. Mas, eu não sou vinha, dizes-me. Para que serve a palavra do Senhor: “Eu sou a verdadeira vide, e vós os ramos. Meu Pai é o agricultor”? (Jo 15,15). E a palavra do Apóstolo: “Quem planta uma vinha e não come de seu fruto”? (1 Cor 9,7). És uma vinha, ó Igreja, e tens a Deus por agricultor. Um agricultor humano não pode fazer a chuva cair sobre sua vinha. Irmãos caríssimos, entranhas da Igreja, penhor da Igreja, filhos de uma mãe celeste, ouvi, enquanto é tempo. Deus ameaçou àquela vinha com ameaças terríveis: “Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem a sua chuva sobre ela”. E assim aconteceu. Os apóstolos se dirigiram aos judeus, que os repeliram; então, eles declararam: “Era a vós que fôramos enviados, mas como rejeitais a palavra de Deus, nós nos voltamos para os gentios” (At 13,46). Vedes como o Espírito de Deus que habitava nos corações dos seus ordenou às nuvens que não derramassem chuva sobre a vinha, porque deu espinhos em vez de uvas. Por isso, o Senhor empregou as nuvens para subir, e estendeu o céu como um pavilhão. Não tendes motivo de queixa. A autoridade das Escrituras estendeu-se sobre a terra inteira, não faltam nuvens, a palavra da verdade é anunciada, as obscuridades são explicadas, a fim de que vossos corações empreguem as nuvens para subir. Cuidai de como crer, como acolher. Depois do pregador, virá o juiz, após o dispensador vem o cobrador. “Emprega as nuvens para subir”. | |
§ 12 | “E voa nas asas dos ventos”. Isso já é perigoso tomar à letra. Ou quais são as asas dos ventos? Seria como nas pinturas? Nós nos tornaremos ventos a voar, tendo asas? Vento, irmãos, não passa do que sentimos, certo movimento e flutuação do ar, impelindo o que pode, conforme sua intensidade. Quais são as asas dos ventos? E quais as asas de Deus? No entanto, foi dito: “Os filhos dos homens se abrigam à sombra de tuas asas” (Sl 35,8). Em-penhemo-nos em tomar isto à letra, conforme propriamen-te se dá nesta criatura. Talvez a Escritura queira recomen-dar a velocidade da palavra. Desta velocidade já falamos em outro salmo, onde se acha escrito: “Sua palavra corre veloz” (Sl 147,15). Os homens nada conhecem de mais veloz do que o vento. Na pele, anotava-se a facilidade de esticar; nada é mais fácil para o homem do que estender uma pele. Assim também aqui, o salmista insinuando que Deus, ou seu Verbo, está presente em toda parte e por isso nada perde em comparações quanto a velocidade de movimentos, e uma vez que tu nada conheces de mais veloz do que o vento, declara: “Voa nas asas dos ventos”, isto é, sua velocidade supera a velocidade dos ventos, mas a palavra de Deus é mais veloz do que todos os ventos. Assim o primeiro modo de considerar. Batamos à porta para alcançarmos o interior, e este sentido literal nos indique figuradamente mais alguma coisa. | |
§ 13 | Entendemos que figuradamente ventos seriam certamente as almas. Não quer isso dizer que a alma seja de vento, mas que o vento é invisível, embora seja elemento material e mova os corpos; no entanto, escapa aos olhares humanos. Como a alma é invisível, entendemos que o vento pode figurá-la. Por isso é que se diz que Deus insuflou o espírito de vida no homem que plasmara: “e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Portanto, não é absurdo tomar os ventos como alegoria da alma. Cuidado para não pensares, por ter eu nomeado a alegoria, que me refiro ao pantomimo. Pois, certas palavras, por serem palavras e procederem da língua, são comuns a nós e às comédias e representações desonestas. No entanto, estas palavras estão em seu lugar na Igreja e nas cenas. Falei como o Apóstolo, quando se referia aos dois filhos de Abraão: “Isto dito em alegoria” (Gl 4,24). Diz-se que é uma alegoria quando as palavras parecem significar algo, mas o sentido é outro. Como é que se diz que Cristo é cordeiro (cf Ap 1,29); acaso seria animal? Cristo é leão (cf Ap 5,5); seria fera? Cristo é pedra (cf 1Cor 10,4); seria por dureza? Cristo é monte (cf Dn 2,35); seria elevação de terra? E assim, muitos vocábulos têm um sentido como soam, mas outro é o seu significado; então, temos uma alegoria. Quem pensar que falei em alegoria pertencente ao teatro, pense também que o Senhor narrou uma parábola acerca do anfiteatro. Isso é o que acontece numa cidade1, onde os espetáculos são numerosos; no interior, no campo, falaria com mais segurança. Ali os homens aprenderiam o que é alegoria somente das Escrituras de Deus. Por isso, disse que alegoria é uma figura, alegoria é um sacramento em figura. E que entendemos aqui, no salmo: “Voa nas asas dos ventos?” Afirmamos que figura-damente podemos tomar ventos no sentido de almas. Asas dos ventos, asas das almas, que são elas, senão aquilo que as leva para o alto? Asas das almas, portanto, são as virtudes, as boas obras, os atos retos. Essas duas asas contêm as penas; todos os preceitos se resumem em dois. Quem amar a Deus e ao próximo, tem a alma com asas, asas livres, voando pela caridade santa para o Senhor. Quem se implica em amor carnal, tem visgo nas asas. Pois, se a alma não tem asas e penas, por que aquele que geme no meio das tribulações diz: “Quem me dará asas como as da pomba?” E continua: “para voar e repousar?” (Sl 54,7). E ainda em outra passagem: “Aonde irei para longe de teu espírito e aonde fugirei de tua face? Se subir até o céu lá estás, se descer ao inferno ali estás presente. Se tomar as asas da pomba, se voar aos confins do mar”. Aparentemente diz: Posso fugir de tua presença, de tua ira, se tomar as asas da pomba, se voar até os confins do mar. Voar até os confins do mar consiste em tender com a esperança até o fim dos séculos, de acordo com aquele que disse: “Refleti para compreender. Pareceu-me penosa tarefa até que entrei no santuário de Deus e percebi qual a sorte final” (Sl 72,16.17). E como alcançou os confins do mar? Teria sido porque tomou as asas? Diz ele: “Até lá me conduziria a tua mão e a tua destra me sustentaria” (Sl 138,7-10). De fato, apesar de minhas asas cairia, se tu não me sustentas. Por conseguinte, possuem asas boas e livres, sem visgo algum, as almas que praticam exatamente os preceitos de Deus, e que têm uma caridade que procede de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia (1 Tm 1,5). Mas, por mais que sejam ornadas de atos de caridade, que significa isto diante do amor de Deus para com elas, mesmo quando ainda cobertas de visgo? O amor de Deus para conosco é muito maior do que o nosso para com ele. Nosso amor dá-nos asas, mas “ele voa nas asas do vento”. | |
§ 14 | O Apóstolo já dizia a alguns: “Dobro os joelhos diante do Pai, para pedir-lhe que ele conceda sejais fortalecidos no homem interior, que Cristo habite pela fé em vossos corações e que sejais arraigados e fundados no amor”. Já lhes dá a caridade; já lhes dá asas e penas. Diz o Apóstolo: “Assim tereis condições para compreender qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade”. Talvez esteja se referindo à cruz do Senhor. No sentido da largura ele estendeu as mãos; o comprimento partia da terra, direção em que o corpo estava colocado; a altura seria a parte que se erguia para cima do braço transversal; a profundidade, onde se firmara a cruz. Aí está toda a esperança de nossa vida. A largura é a dimensão das boas obras, o comprimento refere-se à perseverança até o fim, a altura lembra a aclamação: Corações ao alto. Todas as boas obras, nas quais perseveramos até o fim, tendo a dimensão da largura que nos leva a fazer o bem, e do comprimento que nos traz a perseverança final, sejam feitas apenas por causa da esperança dos prêmios celestes. A altura consiste em não procurar recompensa aqui, mas no alto, no intuito de que não nos seja dito: “Em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa” (Mt 6,2). A profundidade, conforme disse, era o lugar onde da cruz fora encravada, a parte que não se via, e donde saía a parte visível. Que era oculto, não público, na Igreja? O sacramento do batismo, o sacramento da eucaristia. Os pagãos, vêem nossas boas obras, contudo os sacramentos são ocultos para eles. Mas, da parte invisível surgem as partes visíveis, assim como da parte da cruz que está fixa na profundidade da terra surge toda a cruz que aparece visivelmente. E o que há além disso? Depois dessas palavras o Apóstolo acrescenta: “E conhecer o amor de Cristo que excede a todo conhecimento” (Ef 3,14-1), tendo declarado antes: “Arraigados e fundados no amor”. Pois, amais a Cristo e em conseqüência, obrais unidos à cruz. Mas, amaríeis tanto quanto ele vos amou? Amando quanto puderdes, voais para junto dele, a fim de conhecerdes como ele próprio vos amou, isto é, para conhecerdes a excelência do amor de Cristo. Pois, amais quanto podeis, e voais quanto podeis; mas ele voa nas asas dos ventos. “E voa nas asas dos ventos”. | |
§ 15 | 4 “Faz dos espíritos os seus anjos, e do fogo ardente seus ministros”. E isto, apesar de não vermos aparições de anjos. Existe, oculta a nossos olhos, certa república muito grande que tem a Deus por imperador. No entanto, sabemos pela fé que existem anjos, e lemos nas Escrituras que muitos apareceram. Mantemos esta fé, e não nos é lícito duvidar disso. Com efeito, os espíritos são anjos; enquanto espíritos, ainda não são anjos, mas ao serem enviados tornam-se anjos. Com o nome de anjo se designa o ofício, não a natureza. Perguntas o nome desta natureza? É espírito. Procuras saber qual o seu múnus? É o de anjo, mensageiro. Quanto ao que é, é espírito; quanto ao que faz, é anjo. O mesmo se dá relativamente aos homens. O nome da natureza é homem; o do ofício é soldado; o nome da natureza é varão, o nome da profissão é de arauto. O homem se faz arauto, isto é, quem era homem faz-se arauto e não o que era arauto se faz homem. Assim também os que já eram espíritos criados por Deus criador, ele os torna seus mensageiros, anjos, enviando-os a anunciar o que ele houver ordenado; e do fogo ardente faz seus ministros. Lemos que apareceu fogo na sarça (cf Ex 3,2), lemos que foi também enviado fogo do alto e realizou o que havia sido ordenado. Serviu de ministro, quando realizou sua função. Enquanto existia estava em sua natureza; ao cumprir as ordens realizou seu serviço. Assim acontece literalmente nas criaturas. | |
§ 16 | E o que sucede, porém, figuradamente na Igreja? Como explicar: “Faz dos espíritos os seus anjos, e do fogo ardente os seus ministros?” Espíritos seriam os homens espirituais. Certamente faz dos homens espirituais os seus mensageiros, isto é, anunciadores de sua palavra. “O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado” (1 Cor 2,15). Observa como o homem espiritual se tornou mensageiro de Deus. Diz o Apóstolo: “Quanto a mim, não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais” (1 Cor 3,1). Por certa disposição espiritual, foi enviado aos homens carnais, como o anjo é enviado do céu à terra. Qual o sentido de: “Do fogo ardente seus ministros”, a não ser a palavra: “Fervorosos de espírito”? (Rm 12,11). Assim, pois, fervoroso de espírito, fogo ardente é o ministro de Deus. Estêvão não era ardente? Em que fogo ardia? Que fogo era aquele que o queimava ao ser apedrejado enquanto rezava pelos que o lapidavam? (cf At 7,59). Ao ouvires a afirmação: o ministro de Deus é um fogo, pensas que ele há de incendiar? Queime, de fato, mas o teu feno, isto é, teus desejos carnais sejam cauterizados pelo ministro de Deus, que prega a palavra de Deus. Escutai-o: “Portanto, considerem-nos os homens como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4,1). Como não ardia, ao dizer: “A nossa boca se abriu para vós, ó coríntios; o nosso coração se dilatou” (2 Cor 6,11). Ardia e se inflamava pela caridade; e ia aos coríntios para os incendiar. O Senhor afirmava que havia de mandar este fogo à terra, nesses termos: “Eu vim trazer fogo à terra” (cf Mt 10,34). A espada corta o afeto carnal, o fogo o consome. Entende tudo isso da palavra de Deus, tudo isso reconhece no espírito de Deus. Começa a inflamar-te de amor através da palavra que ouves, e vê o que realizou em ti o fogo, servo de Deus. “Faz dos espíritos os seus anjos e do fogo ardente seus ministros”. | |
§ 17 | 5 “Fundou a terra sobre firmes alicerces. Será inabalável pelos século dos séculos”. Tomar esta afirmação como relativa à terra, não sei se dá resultado, se é correto: Será inabalável pelos séculos dos séculos. Entretanto, dela se declarou: “Passará o céu e a terra” (Mt 24,35). É um problema se tomares no sentido literal. Com efeito, a locução: “Fundou a terra sobre firmes alicerces” talvez trate de uma firmeza que nos é desconhecida e que sustenta a terra, e por isso disse: “Fundou”. Sobre o que? Sobre os alicerces da própria terra, que estariam por baixo para a sustentar e que estão ocultos a nossos olhos. Se esse fato está oculto na natureza, por ser escondido não tornará desconhecido o Criador. Vejamos o que pudermos; do que vemos, louvemo-lo e amemo-lo. Voltemo-nos a considerar algo aqui apresentado em figuras. “Fundou a terra”, entende que é a Igreja. “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que ela encerra” (Sl 23,1). Entendo que terra é a Igreja. Ela é a terra árida mencionada nos salmos. Fala uma alma em lugar de todas: “Como terra sem água minha alma está diante de ti” (Sl 142,6). Que é: “Sem água?” Sedenta. Minha alma tem sede de ti, como a terra sem água; se ela não estiver sedenta, certamente não será irrigada. Para uma alma ébria a chuva é um dilúvio. Mas, deve ter sede: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,6), e dizer: “Como terra sem água minha alma está diante de ti”, ela que disse noutro salmo: “Minha alma tem sede do Deus vivo” (Sl 41,3). Por terra entendo a Igreja. Qual a firmeza que a sustenta, a não ser seu fundamento? Não seria inadequado aplicar a firmeza que sustenta a terra ao fundamento sobre o qual foi fundada a Igreja? Que fundamento é este? “Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo” (1 Cor 3,11). Nele, portanto, nos firmamos. Com razão, quem nele se apoia será inabalável pelos séculos dos séculos. Nada tão firme como este fundamento. Eras fraco, mas o alicerce firme te sustenta. Por ti mesmo, não podias ser firme; serás sempre firme, se não deixares aquele fundamento firme. “Será inabalável pelos séculos dos séculos. A Igreja é coluna e sustentáculo da verdade” (cf 1Cor 3,15). | |
§ 18 | 6.17 “O abismo cerca-a como uma veste. Sobre as montanhas se elevarão as águas. Diante de tua ameaça fugirão. Temerão o ribombo do trovão. Elevam-se os montes e sulcam-se as planícies nos lugares que lhes fixaste. Assinalaste limites que não transporão, nem voltarão a cobrir a terra. Fazes brotar fontes nos vales, entre as montanhas deslisarão as águas. Delas beberão todos os animais do campo e os asnos selvagens com elas apagarão a sua sede. Perto delas aninham-se as aves do céu, que do meio dos rochedos emitirão seu canto. Do alto regas os montes; do fruto de tuas obras fartar-se-á a terra. Produzes o feno para os jumentos e plantas úteis aos homens, para que retire da terra o pão e o vinho que alegra o coração do homem. E o óleo que lhe faz brilhar o rosto e o pão que lhe sustenta as forças. Fartam-se as árvores do campo e os cedros do Líbano que ele plantou. Ali constroem os pássaros os seus ninhos e a casa da gaivota é guia para eles”. Observais o céu em sua extensão e quereis subir até lá com o intelecto. Eu o vejo. Penso, porém, que V. Caridade há de considerar comigo a sua altura. Quis que fossem lidos muitos versículos, para verificardes em que altura se colocam os mistérios de Deus. Não nos entendiemos diante do que foi apresentado, para não diminuirmos seu valor. Procurando sempre, apesar das dificuldades, serão encontrados com maior prazer. Entre os demais, irmãos, que podem ser tomados à letra, por acaso também estão os versículos: “Ali constroem os pássaros os seus ninhos e a casa da gaivota é guia para eles?” Por acaso serve a casa da gaivota de guia para as aves? Ou a casa da gaivota é guia para os cedros? “E os cedros do Líbano que ele plantou. Ali constroem os pássaros os seus ninhos e a casa da gaivota é guia para eles”. Efetivamente, em latim: “deles” (eorum) não se pode referir a “cedros”, porque cedri é do gênero feminino. A casa da gaivota, então, como pode ser guia dos pássaros? Desta ave, que vemos com nossos olhos, de forma alguma isso se pode entender. As gaivotas são aves do mar ou dos lagos. A casa das gaivotas são os ninhos das gaivotas; como então a casa da gaivota pode ser guia para os pássaros? Por que o Espírito Santo mistura certas coisas, quase absurdas entre as coisas visíveis, senão a fim de que, uma vez que não podem ser tomadas à letra, nos obriguem a procurar ocultas nelas o sentido espiritual? | |
§ 19 | Por conseguinte, se desejais, como disse, subir ao céu com o intelecto, ao céu estendido como um pavilhão e empregar estas nuvens para subir, esta nuvem que hoje vos fala sente-se incapaz de explicar tudo isso. Tende indulgência, não certamente para com a vossa fraqueza, mas para a minha. Eu vos vejo sempre tão ávidos que estais continuamente dispostos a ouvir. Mas, há dois pontos a ponderar, que não são desprezíveis. Pois, temos de considerar a fraqueza de nosso corpo, e como guardar na memória estas explicações. Neste intervalo, refleti no que ouvistes. Que disse eu? Ruminai o que comestes. Pois, assim sereis animais puros, e aptos para os convívios de Deus. Observai o fruto que colhestes em vossas obras. Digere muito mal aquele que ouve bem, mas não age bem, porque o Senhor nosso Deus não deixa de alimentar. É notório a todos que haveremos de prestar contas do pão que recebemos e distribuímos. V. Caridade o sabe perfeitamente. A página das Sagradas Escrituras não o cala, nem Deus nos adula. Podeis ver como estamos livres para vos falar deste lugar; ou se eu estou menos livre, ou aqueles todos que vos falam neste lugar, se estamos nós menos livres, certamente a palavra de Deus não tem medo de ninguém. Nós, contudo, quer tenhamos medo, quer falemos com liberdade, somos obrigados a anunciar aquele que não tem medo de ninguém. Quanto a vós, concedeu-vos Deus e não os homens, que escuteis livremente, mesmo da parte dos orgulhosos. Não teríes escusa no juízo de Deus, a não ser que pratiqueis boas obras e recebais como chuva o que ouvis, dando frutos convenientes. Frutos adequados são as boas obras; frutos adequados encontram-se no amor, não só aos irmãos, mas também aos inimigos. Não menosprezes a ninguém que te peça algo, e quando não puderes dar o que ele pedir, não o desprezes. Se podes dar, dá; se não podes, mostra-te afável. Deus co-roa internamente a vontade, quando não se tem possibilidade de dar. Ninguém diga: Não tenho. A caridade não se tira da bolsa. Tudo o que dizemos, tudo o que já dissemos, e tudo o que pudermos ainda dizer, tanto nós mesmos, ou os que vêm depois de nós, ou os que vieram antes de nós, não têm outra finalidade a não ser a caridade, porque a finalidade do preceito é a caridade, que procede de coração puro e de fé sem hipocrisia (cf 1Tm 1,5). Ao orardes a Deus, interrogai vossos corações; vede como traduzis este versículo: “Perdoai as nossa dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (cf Mt 6,12). Não rezas, se não pronuciares estas palavras; se proferires outras, ele não te ouvirá, porque não foi isto que te ditou o jurisperito enviado por ele. É preciso, portanto, mesmo quando proferimos nossas palavras em oração, nós as digamos de acordo com estas. E ao repetirmos estas mesmas palavras, en-tendamos bem o que estamos dizendo, porque Deus quis que fossem bem claras. Se, portanto, não as rezardes, não tendes esperança. Se rezardes de maneira diferente daquela ensinada pelo Mestre, não alcançareis o que pedis; ou se mentirdes na oração, não impetrareis o objeto de vosso pedido. Por conseguinte, temos de orar, de dizer a verdade, de rezar como ele ensinou. Quer queiras, quer não, hás de repetir diariamente: “Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Queres repetir com segurança? Pratica o que dizes | |
II SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Estou ciente de que nos tendes como devedores, não por necessidade, mas o que é mais forte, por caridade. Estamos devendo em primeiro lugar ao Senhor nosso Deus, que habitando também em vós, exige isto de nós; em seguida a nosso Senhor e Pai, que está aqui presente, e que nos deu a ordem de falar e reza por mim. Além disso, por causa de empenho com que extorquis nossas palavras, apesar de nossas limitadas forças. No entanto, à medida que o Senhor nos conceder, e confiante de que ele se dignará dar-nos forças, devido a vossas orações, uma vez que há poucos dias expusemos a primeira parte deste salmo, vamos empreender explicar as partes seguintes e com auxílio daquele em cujo nome começamos, esperamos terminar. Relembrávamos a V. Caridade, aos que estavam presentes, que este salmo inteiro está entretecido de mistérios ocultos em figuras. Costuma-se descobrir com gosto maior aquilo que é díficil de pesquisar. Não penseis que eles se furtam a vós devido a sua obscuridade, mas estão guardados pelas próprias dificuldades. Assim sucede, segundo já dissemos com freqüência a fim de que se dê aos que pedem, achem os que procuram, entrem os que batem à porta. Mas necessitamos de um pouco mais de silêncio de vossa parte e de vossa paciência, a fim de que as poucas palavras que devemos dizer não tomem mais tempo por causa do barulho. A escasses do tempo nos obriga a falar pouco, porque, como sabe V. Caridade, devemos tomar parte nas exéquias solenes de um fiel. Por isso, não nos forceis a repetir o que já foi dito e explicado; se alguns estiveram ausentes e por isso não ouviram, que não tivessem faltado; talvez seja bom que não ouçam agora o que ouviram os que estavam presentes, a fim de que aprendam a comparecer. Leiamos, portanto, brevemente. | |
§ 2 | 1.2 “Bendize, minha alma, ao Senhor”. Diga nossa alma, as almas de todos nós que somos uma só alma em Cristo. “Senhor meu Deus, tu te engrandeceste sumamente”. Como te engrandeceste? “De confissão e de esplendor te revestiste”. Confessai para vos ornardes, para que ele vos revista. “Envolvido de luz como de uma veste”. Envolvido da luz de sua Igreja, porque ela se tornou luz em Cristo, apesar de ser antes trevas em si mesma, conforme a palavra do Apóstolo: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5,8). “Estende o céu como um pavilhão”. Tão facilmente quanto tu estendes uma pele, se tão facilmente podes tomar isto ao pé da letra. Ou entendamos que se trata da autoridade das Escrituras, estendida por todo o mundo, sob o nome de pele. A mortalidade é representada pela pele, pois a autoridade das divinas Escrituras vem até nós através de homens mortais, cuja fama, depois que eles morreram, se propagou. | |
§ 3 | 3 “Que protege com as águas a parte superior”. Parte superior de quê? Do céu. Que é céu? Dissemos que figura as Sagradas Escrituras. Qual a parte superior das Escrituras Sagradas? O preceito, que ultrapassa a todos, da caridade. Por que motivo, porém, a caridade é comparada às águas? “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). E por que a água representa o próprio Espírito? “Jesus, de pé, disse em alta voz: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva”. Como provamos que se refere ao Espírito Santo? Diga-o o próprio evangelista, que continua: “Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem” (Jo 6,37-39). “E voa nas asas dos ventos”, isto é, sobre as virtudes das almas. Qual é a virtude da alma? A própria caridade. Como ele voa sobre ela? Porque a caridade de Deus em relação a nós é maior do que a nossa relativamente a ele. | |
§ 4 | 4 “Faz dos espíritos os seus anjos e do fogo ardente seus ministros”, isto é, daqueles que são espíritos, são espi-rituais, não carnais, faz seus mensageiros, enviando-os a pregarem seu evangelho. “E do fogo ardente seus ministros”. Se o ministro ao pregar não arder não inflamará aquele que ouve sua pregação. | |
§ 5 | 5.6 “Fundou a terra sobre firmes alicerces”. Firmou a Igreja sobre seus alicerces. Qual o firmamento da Igreja senão seu fundamento? E qual o seu fundamento, a não ser o mencionado pelo Apóstolo: “Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo” (1 Cor 3,11). E apoiada neste fundamento, que mereceu ouvir? “Fundaste a terra sobre firmes alicerces”, isto é, firmou a Igreja sobre Cristo, seu fundamento. A Igreja vacilará se vacilar o fundamento; mas de que modo pode vacilar Cristo, se, antes de vir para junto de nós e assumir a carne, “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3), e ele tudo contém por sua majestade, e a nós em sua bondade? Como Cristo não vacila, ela “será inabalável pelos séculos dos séculos”. Onde se acham os que dizem que a Igreja no mundo pereceu, quando nem se abala? | |
§ 6 | Mas, quando começou o Senhor a semear esta Igreja, a revelá-la, a dar-lhe início, a mostrá-la, difundi-la? Quando começou? Que existia antes? “Fundaste a terra sobre firmes alicerces. Será inabalável pelos séculos dos séculos. O abismo cerca-a como uma veste”. A quem? Acaso a Deus? Mas o salmista já se referira à veste de Deus: “Envolvido de luz como de uma veste”. Ouço dizer que Deus está vestido de luz, e a própria luz, se queremos, somos nós. Que quer dizer: Se queremos? Se já não formos trevas. Portanto, se Deus está revestido de luz, de quem é esta veste do abismo? Chama-se abismo uma imensa quantidade de água. Todas as águas, toda a natureza úmida, a substância espalhada por todos os mares, rios, antros ocultos, todos simultaneamente têm o nome de abismo. Portanto, entendemos que o salmista fala da terra: “Fundou a terra sobre firmes alicerces. Será inabalável pelos séculos dos séculos”, creio que também se refere a ela: “O abismo cerca-a como uma veste”. As águas são certo revestimento da terra, cercando-a e reco-brindo-a. Mas, uma vez, no dilúvio, este revestimento aumentou tanto que cobriu tudo e ultrapassou as mais altas montanhas, subindo quase quinze côvados acima delas, conforme atesta a Escritura (Gn 7,20). É provável que este salmo se refira a esta época, ao dizer: “O abismo cerca-a como uma veste”. 1 Cartago. | |
§ 7 | “Sobre as montanhas se elevarão as águas”, a saber, a veste da terra, o abismo, aumentou tanto que as águas subiram acima das montanhas. Lemos que assim aconteceu no dilúvio, conforme disse acima. De que tempo falava o profeta? Narrava-nos fatos passados, ou prenunciava eventos futuros? Mas, se contasse fatos passados, não diria: “Sobre as montanhas se elevarão as águas”, e sim: Sobre as montanhas as águas se elevaram. Costumam as Escrituras usar o tempo passado em lugar do futuro. Lemos freqüentemente que o Espírito prevê os eventos futuros como já realizados. Daí vem a passagem de outro salmo que todos conhecemos bem, porque parece que se lê do evangelho: “Transpassaram-me as mãos e os pés. Contaram todos os meus ossos. Sobre a minha túnica lançaram sortes” (Sl 21,17-19). São mencionados como fatos realizados, enquanto, de fato, ainda eram futuros. Mas, o que conseguimos com nossa aplicação? Que podemos com tanto trabalho? Ou que tempo dar-lhe para podermos afirmar com certeza: assim é? Percebem que os profetas freqüentemente usam o pretérito para exprimir fatos futuros; mas que empreguem o futuro pelo pretérito, não é tão fácil ao leitor encontrá-lo. Não ouso afirmar: não é. Mas, sem dúvida apontei aos estudiosos das Escrituras o que devem pesquisar. Se encontrarem e nô-lo comunicarem, ficaremos gratos, nós, velhos ocupados, à diligência dos jovens que têm tempo; e aprenderemos algo de seu ministério. Não o menosprezamos, uma vez que Cristo nos ensina através de todos. Então, diz o salmista: “Sobre as montanhas se elevarão as águas”. O profeta, cuidando de predizer o futuro e não de narrar fatos passados, assim se expressou, porque a Igreja haveria de se achar no dilúvio das perseguições. Houve uma época em que a terra de Deus, a Igreja de Deus estava imersa nas águas das perseguições; de tal forma imersa que não apareciam nem os grandes, que são os montes. Se eles, em toda parte, fugiam, como não haveriam de desaparecer? Talvez parta daquelas águas esta voz: “Salva-me, ó Deus, porque as águas penetraram até a minha alma” (Sl 68,2). Especialmente as águas dos mares, procelosas, sem utilidade. As águas marinhas se recobrem uma terra qualquer, não a fecundam; ao contrário, esterilizam. Com efeito, os montes estavam debaixo das águas, pois estas os ultrapassavam. Os povos resistiam à autoridade dos que em toda parte anunciavam com fortaleza a palavra de Deus. A estes recobriam as águas, elevavam-se sobre eles, diziam: Oprime, oprime. E eram oprimidos. Extingue, não apareçam mais. Assim falavam, e prevaleciam contra os mártires. Os cristãos fugiam em todas as partes. Os apóstolos se ocultavam, fugindo. Por que eles se ocultavam e fugiam? Porque sobre as montanhas se elevavam as águas. Era grande a violência das águas. Mas até quando? Escuta os versículos seguintes. | |
§ 8 | 7 “Diante de tua ameaça fugirão”. E assim se fez, irmãos; diante da ameaça de Deus as águas fugiram, isto é, desistiram devido à resistência dos montes. Temos agora os montes: Pedro e Paulo. Como se elevam! Eram anteriormente oprimidos pelos perseguidores e agora são venerados pelos imperadores. As águas fugiram diante das ameaças de Deus, porque o coração do rei está na mão de Deus; este, segundo o seu querer, o inclina (cf Pr 21,1). Ele ordenou que a paz fosse dada aos cristãos. Brilhou e prevaleceu a autoridade apostólica. Porventura quando as águas se elevaram, diminuira a grandeza das montanhas? Todavia, meus irmãos, diante da ameaça de Deus as águas fugiram, a fim de que todos vissem a elevação dos montes, desses montes através dos quais veio a salvação ao gênero humano, pois: “Ergui os olhos para os montes, para ver de onde me viria o auxílio” (Sl 120,1). “Temerão o ribombo do trovão”. Quem agora não se atemoriza diante da voz de Deus através dos apóstolos, da voz de Deus, através das Escrituras, de suas nuvens? O mar está em bonança, as águas temeram, os montes estão despojados, o imperador deu ordens. Mas quem daria ordens, se Deus não fizesse trovejar? Uma vez que Deus o quis, os imperadores ordenaram, e tudo se fez. Por conseguinte, ninguém se vanglorie de coisa alguma. As águas temeram “o ribombo do trovão”. Pois, no momento que Deus determinou, as águas fugiram para não pesarem sobre os montes. Antes disso, porém, os montes mantiveram-se firmes sob as águas. | |
§ 9 | 8.10 “Elevam-se os montes e sulcam-se as planícies nos lugares que lhes fixaste”. Ainda trata das águas. Não imaginemos que o salmista aqui fala de montes de terra, nem de campos terrenos; refere- se a ondas tão altas que são comparadas a montanhas. Outrora agitou-se o mar, e seus vagalhões pareciam montanhas, que recobriam aqueles outros montes, os apóstolos. Mas por quanto tempo elevaram-se os montes e sulcaram-se as planícies? Os perseguidores enfureceram-se e acalmaram-se. Enquanto enfurecidos eram montes; aplacados, tornaram-se planícies, nos lugares que Deus lhes fixou. Há um desfiladeiro, muito profundo, onde de certo modo se refugiam os corações enfurecidos dos mortais. Quantos existem agora salgados e amargos, embora quietos? Quantos são os que não querem tornar-se suaves? Quais são os que não querem ser mansos? Os que ainda não querem acreditar em Cristo. E apesar de serem muitos os que ainda não acreditam, que faz à Igreja? Outrora eram montes, agora são planícies; no entanto, meus irmãos, o mar em calmaria é ainda mar. Por que, então, agora não maltratam? Por que não se iram? Por que não entram em ação? Se não podem arruinar a nossa terra, certamente podem recobri-la. Por que não o fazem? Escuta: “Assinalaste limites que não transporão, nem voltarão a cobrir a terra”. | |
§ 10 | Que acontece então, uma vez que as ondas tão amargas têm seus limites de tal modo que nos é lícito até pregar livremente estas palavras? Se lhes foi assinalado o devido termo e não podem ultrapassar os limites marcados, nem voltar a cobrir a terra, que sucede à própria terra? Que se opera na terra, de onde o mar recuou? Embora às suas margens ressoem tênues ondas, embora os pagãos ainda murmurem, ouço o som na praia, mas não te-nho receio de inundação. Que, então, acontece na terra? “Fazes brotar fontes nos vales”. Diz o salmo: “Fazes brotar fontes nos vales”. Sabeis que vales são os lugares da terra em depressão. Pois as colinas e montanhas se contrapõem aos vales. Colinas e montanhas são as elevações da terra; vales são as depressões. Não desprezes os lugares baixos; ali brotam as fontes: “Fazes brotar fontes nos vales”. Escuta como fala um monte; diz o Apóstolo: “Trabalhei mais do que todos eles”. Fala de certa grandeza; imediatamente, porém, a fim de que brotem as águas, apresenta-se como um vale: “Não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Cor 15,10). Não é paradoxo asseverar que os montes são também vales. São denominados montes em vista de sua grandeza espiritual e vales por causa de sua humildade de espírito. “Não eu”, diz ele, “mas a graça de Deus que está comigo”. “Não eu”, trata-se do vale; mas “a graça de Deus que está comigo”, é a fonte. “Fazes brotar fontes nos vales”. Acerca do Espírito foi dito aquilo que mencionei há pouco: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, de seu seio jorrarão rios de água viva. Ele falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem” (Jo 7,37-39). Vejamos se são vales, de tal sorte que brotem fontes nos vales. Ouve o que diz o profeta: “Sobre quem repousará o meu Espírito, senão sobre o humilde e quieto, sobre aquele que treme diante da minha palavra”? (Is 66,2). Que significa: “Sobre quem repousará o meu Espírito, senão sobre o humilde e quieto?” Quem terá a minha fonte? O vale. | |
§ 11 | “Entre as montanhas deslizarão as águas”. Até aqui o leitor pronunciou as palavras do salmo. Até aqui baste a V. Caridade. Exporemos isto e em nome de Deus terminaremos o sermão. Que quer dizer: “Entre as montanhas deslizarão as águas?” Ouvimos a explicação de que montes são os grandes pregadores da palavra, sublimes mensageiros de Deus, embora ainda na carne mortal. São excelsos não por sua virtude, mas pela graça de Deus. Em si mesmos são vales, e humildemente neles brotam as fontes. “Entre as montanhas deslizarão as águas”. Consideremos que foi dito o seguinte: Entre os apóstolos passarão os pregadores da palavra da verdade. Que significa: No meio dos apóstolos? O que é intermediário é comum a dois. Um bem intermedio é um bem comum, de onde todos haurem igualmente para viver, e não me pertence; nem te pertence, nem a mim. Por isso, falamos de igual modo a respeito de alguns: Têm paz entre si, têm fidelidade entre si, entre si têm caridade. Sem dúvida, assim nos exprimimos. Que significa: Entre si? No meio deles. Que quer dizer? No meio deles? É comum a todos eles. Escuta as águas no meio dos montes. A fé lhes era comum; ninguém considerava as águas como próprias e suas. Se as águas não correm pelo meio, são de certo modo privadas e não fluem publicamente. Tenho as minhas próprias águas, ele tem as suas; não existem águas entre nós, de tal sorte que eu e ele as possuamos. Mas, uma pre-gação desta espécie não é pacífica. Ao invés, a fim de que as águas deslizem entre as montanhas, escuta a voz do monte: “O Deus da paz vos conceda terdes os mesmos sentimentos uns para com os outros” (Rm 5,15), e ainda: “Guardai a concórdia uns com os outros, de sorte que não haja divisões entre vós” (1 Cor 1,10). Tu pensas como eu: entre nós passam as águas: não tenho bem particular, nem tu. A verdade não me seja própria, nem a ti, de tal modo que seja tua e minha: “Entre as montanhas deslizarão as águas”. Escuta o próprio monte, conforme disse, porque “entre as montanhas deslizarão as águas”. “Por conseguinte, tanto eu como eles, eis o que pregamos. Eis também o que acreditastes” (1 Cor 15,11). Disse com segurança: “Tanto eu como eles, eis o que pregamos. Eis também o que acreditastes”. Entre as montanhas deslizavam as águas. Nenhuma discórdia entre os montes a respeito das águas; mas havia a paz da concórdia e a sociedade da caridade. Se alguém quisesse pregar algo diferente, pregaria do que é seu e não do que havia no meio deles. E escuta como se exprime a respeito desse dissidente aquele que fez brotar as fontes nos vales: “Quando ele mente, fala do que lhe é próprio” (Jo 8,44). Por esta razão, a fim de evitar que alguém acolhesse um monte que faz brotar águas de si mesmo, e não da parte intermediária, diz o Apóstolo: “Se alguém vos anunciar um evangelho diferente do que recebestes, seja anátema”. E vê como não quis ter presunção acerca do monte, a fim de que o monte não se aparte das águas que correm pelo meio, querendo que flua algo de próprio. “Se alguém, ainda que nós mesmos”. E que importância tinha o monte que assim falou! Com que abundância a água fluía de seu vale! Contudo, queria que corresse no meio dos montes, e ali se tornasse segura a fé dos povos, porque mantinham entre si a fé que havia entre os apóstolos e lhes era comum. “Ainda que nós”, diz ele. E tu, Paulo, podes pregar algo de diferente? Trata-se aqui de Paulo. Ouve como continua ele: “Ainda que nós mesmos ou um anjo do céu anunciar um evangelho diferente do que recebestes, seja anátema” (Gl 1,9.8). Se vier um monte a anunciar um evangelho diferente, seja anátema; se vier um anjo a anunciar um evangelho diferente, seja anátema. Por que isto? Porque quer águas que brotam particularmente e não da parte intermediária. Pode ser que um homem carnal, perturbado por uma névoa, depois de deixar a fonte comum, e estando reduzido à sua própria falsidade, assim aja. Mas e um anjo? Na verdade um anjo? Se um anjo, no paraíso, fazendo brotar as águas do que lhe era peculiar, não tivesse sido ouvido, não nos precipitaríamos na morte. Fora apresentada aos homens a água que brotava do meio, o preceito de Deus; água do meio, água de certo modo pública, conforme disse a V. Caridade, água genuína, sem mancha, sem lodo. Se o homem sempre tivesse bebido desta água, viveria para sempre. Aproximou-se o anjo que caíra do céu, que se tornara serpente, porque desejava insidiosamente inocular seu veneno. Inoculou-o, falou de seu próprio fundo, do que era seu; porque “quando ele mente, fala do que lhe é próprio”. E os infelizes homens, ouvindo-o, abandonaram o que era comum, e que os fazia felizes. Reduzidos ao que lhes era próprio, querendo perversamente ser semelhantes a Deus, pois o diabo lhes dissera: Comei, “e vós sereis como deuses” (Gn 3,5), e apetecendo o que não eram, perderam o que haviam recebido. Por conseguinte, irmãos, o que dissemos a V. Caridade, acerca das fontes, sirva para o seguinte; que brotem de vós, sede vales, e partilhai com todos o que recebeis de Deus. As águas corram pelo meio. Não tenhais inveja de outrem. Bebei, saturai-vos; depois de saciados, manai. As águas comuns de Deus em toda parte tenham a glória, não as peculiares mentiras dos homens | |
III SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | V. Caridade se lembra de que somos devedores, quanto à explicação das restantes partes deste salmo. Não preciso estimular vossa atenção por outro prêmio. Vejo-vos atentos com grande vivacidade para entenderdes os mistérios da profecia. Minha palavra não precisa despertar a atenção daqueles que o Espírito Santo já despertou. Façamos então o que é mais urgente. Já falamos das fontes que brotam nos vales, e das águas que correm entre as montanhas. Falamos até aqui. Vamos expor de agora em diante o que segue. | |
§ 2 | 11 Efetivamente, continua o salmo: “Delas beberão todos os animais do campo”. De onde beberão? Das águas que deslizam entre as montanhas. De que se desaltara-rão? Das fontes que brotam nos vales. Que animais hão de beber? Os animais do campo. De fato, verificamos isto na natureza. Os animais do campo bebem das fontes e dos rios que correm entre as montanhas. Mas tendo sido do beneplácito de Deus esconder sob essas figuras sua sabedoria, que, no entanto, não se furta dos esforçados, que se abre para aqueles que batem à porta, mas se fecha aos negligentes, aprouve também ao mesmo Deus, Senhor nosso, que vos exortássemos a que procuremos em todas essas coisas que se dizem das criaturas corporais e visíveis, algo de espiritual nelas oculto, que nos alegre com sua descoberta. Entendemos que animais do campo são os gentios; muitas passagens das Escrituras o atestam. Todavia, ocorrem-nos dois exemplos particularmente evidentes. Na arca de Noé, que indubitavelmente figura a Igreja, não seriam encerrados todos os gêneros de animais (cf Gn 7,2.14), senão para significar, na unidade do agregado, todas as gentes. A não ser que imaginemos a terra que os produzisse, se o dilúvio os eliminasse totalmente, que Deus não teria poder de ordenar aquilo que ele anteriormente produzira por sua palavra (Gn 1,24). Por isso, não foi sem razão, nem temerariamente, nem por alguma indigência ou falta de poder da parte de Deus que ele ordenou fossem aqueles animais encerrados na arca. Efetivamente, veio depois o tempo (e já devemos acres-centar o outro exemplo bem evidente), a ocasião oportuna para que se cumprisse na Igreja o que era prefigurado na arca, Pedro apóstolo, hesitando em dar o sacramento evangélico do batismo aos gentios incircuncisos; ou antes, não hesitando, mas opinando que absolutamente não devia ser dado, certo dia em que quis comer por estar com fome, subiu ao terraço para rezar. Todos os que lêem atentamente ou ouvem bem a Sagrada Escritura sabem que isso se encontra nos Atos dos Apóstolos. Enquanto rezava, adveio-lhe aquele arroubo de espírito que os gregos chamam de êxtase, isto é, a mente se alheia do hábito corporal de contemplar algo com os olhos, apartada das realidades presentes. Então viu certo objeto, uma espécie de toalha, presa pelas quatro pontas, descer do céu. Dentro havia de todos os animais, de todas as espécies de feras; e ele ouviu uma voz: “Pedro, imola e come”. Ele, contudo, que fora instruído pela lei, crescera entre os preceitos judaicos, e observava os mandamentos de Deus, promulgados através de Moisés, tendo-os guardado fielmente por toda a vida, respondeu: “De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa profana e impura!” Estão bem cientes, os que aprenderam as ciências eclesiásticas de que os judeus e a lei chamavam alguns alimen-tos profanos e imundos. E a voz replicou-lhe: “Não chames impuro o que Deus declarou puro”. Isso se deu por três vezes. E foi recolhido aquele objeto vindo do céu, por três vezes (cf At 10,9-16). O prato dentro da toalha de quatro pontas representava as quatro partes da terra. Freqüentemente, a Escritura cita estas quatro partes: oriente e ocidente, norte e sul. E assim como todo o orbe seria convidado ao evangelho, foram escritos quatro evangelhos. O objeto que desceu do céu por três vezes significa o que foi dito aos apóstolos: “Ide, portanto e batizai as nações em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19). Daí se deduz, como já o sabeis, o número dos discípulos: doze. Não foi sem razão que o Senhor quis ter doze apóstolos; e de tal forma aquele número é sagrado que em lugar de um que caíra, apenas pôde ser escolhido outro. Por que doze apóstolos? Porque são quatro as partes da terra, e todo o orbe era chamado ao evangelho e por isso foram escritos quatro evangelhos e a terra inteira é chamada em nome da Santíssima Trindade, para que se congregue a Igreja. Quatro vezes três são doze. Por isso, não nos admiremos de que daquelas águas que correm entre as montanhas, daquela doutrina apóstolica que corre pelo meio devido à concórdia da comunhão, bebam todos os animais do campo. Pois, todos estavam na arca, todos no prato, e Pedro mata e come a todos. Porque Pedro é pedra, e pedra é a Igreja. Que é matar e comer? Matar o que eles eram, e ingeri-los. Tu dissuadiste um pagão de um sacrilégio: mataste o que era. Dando-lhe o sacramento de Cristo, incorporaste-o à Igreja; comeste. | |
§ 3 | Os próprios animais, portanto, bebem dessas águas; no entanto, de passagem; não de maneira permanente e sim de passagem. Com efeito, todo ensinamento ministrado na terra, passa. Daí dizer o Apóstolo: “Quanto a ciência, também desaparecerá. Quanto às profecias, desaparecerão”. Por que motivo elas desaparecerão? “O nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá” (1 Cor 13,8-10). A menos que pense V. Caridade que na cidade da qual se diz: “Louva, ó Jerusalém, ao Senhor, louva a teu Deus, ó Sião. Porque ele reforçou os ferrolhos de tuas portas”, quando já estiverem reforçados os ferrolhos e as portas da cidade estiverem fechadas, e dela, conforme já dissemos anteriormente1, não sair amigo algum, nem ali entrar qualquer inimigo, será lido um livro, ou pronunciado um sermão, como este que agora vos fazemos. Ora, agora expomos, a fim de que lá se realize; agora se divide por sílabas, para que lá seja contemplada a realidade total e integralmente. Ali não faltará a palavra de Deus; no entanto, não consistirá em letra, sons, códices, nem precisará de leitor ou expositor. Então, como será? Como “no princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus”. Não veio até nós para de novo se afastar, porque “ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele” (Jo 1,1.10). Tal é o Verbo que haveremos de contemplar. “Pois, aparecerá o Deus dos deuse em Sião” (Sl 83,8). Mas quando será? Depois de terminada a peregrinação, a nossa caminhada; mas isto se, depois de terminada esta, não formos entregues ao juiz para que nos lance no cárcere. Mas, se terminada nossa jornada, como esperamos e desejamos e nos empenhamos para que aconteça, chegarmos à pátria, lá contemplaremos o que sempre haveremos de louvar. Ali não nos faltará o que nos for apresentado, nem desfaleceremos nós que disto fruirmos. Não se enfastiará aquele que comer, nem faltará o alimento. Aquela contemplação será grande e admirável. E quem poderá falar dignamente dela no tempo em que as águas deslizam entre as montanhas? Neste intervalo de tempo, que as águas deslizam entre as montanhas, que elas passem. Enquanto as águas correm, durante nossa peregrinação, bebamos a fim de não perecermos no caminho por causa da sede. “Delas beberão todos os animais do campo”. De onde viestes, da floresta fostes apanhados. E em que floresta? Ninguém por ali passava, porque nenhum profeta havia sido enviado. Mas, para a construção da arca foram cortadas madeiras da floresta. Viestes do lugar onde havia madeira e feras. Portanto, bebei. “Beberão todos os animais do campo”. | |
§ 4 | “E os asnos selvagens com elas apagarão a sua sede”. Os asnos selvagens são animais corpulentos. Quem não sabe que onagros são os asnos selvagens? Alguns maiores são indômitos. Os povos, de fato, não tinham jugo de lei alguma. Viviam muitos povos segundo seus próprios costumes, vagando como no deserto, em sua soberba e jactância. Na verdade, todas as feras são assim, mas o salmista fala em asnos selvagens por causa de seu tamanho. Eles também beberão quando com sede; pois, também para eles correm aquelas águas. Delas bebem as lebres e os asnos selvagens. A lebre é pequena e o asno grande; a lebre é tímida e o asno feroz. Ambos bebem ali, mas cada um conforme “sua sede”. A água não diz: Basto para a lebre, e repele o asno; nem diz: Aproxime-se o asno, e se a lebre se acercar, será apanhada. Ela corre de maneira tão clara e moderada que sacia o asno selvagem, sem atemorizar a lebre. Ressoa o estrépido da voz de Túlio, lê-se Cícero, um livro ou diálogo, seja dele, seja de Platão, ou de qualquer outro de tais escritores; ouvem os indoutos, os fracos de menos inteligência; quem ousa ali aspirar? Fragor das águas, e muito perturbadas. Certamente, no entanto, a correr tão impetuosamente que um animal tímido não ousa aproximar-se para beber. Quem ouve: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1), e não ousa beber? Quem escuta um salmo e diz: É difícil demais para mim? Eis que agora ressoa o salmo. Certamente, há mistérios ocultos.Todavia, ressoa de tal modo que as crianças gostam de ouvi-lo; os ignorantes se aproximam para beber, e saciados irrompem em salmodia. Bebem, portanto, os animais menores e maiores; mas os maiores com maior capacidade, porque “os asnos selvagens com elas apagarão a sua sede”. Bebam os menores, aos quais foi dito: “E vós, maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja. As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos” (Ef 5,25.24). Bebam os menores. Ao Senhor foi feita a pergunta: “É lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo que seja”? O Senhor proíbe-o, dizendo que não é lícito. Respondeu: “Não lestes que desde o princípio o criador os fez homem e mulher? O homem não separe o que Deus uniu”. Em seguida, acrescentou: “Aquele que repudiar sua mulher — exceto por motivo de fornicação, (converte-a em adúltera) — se desposar outra comete adultério” (Mt 19,3.4.6). O Senhor confirmou o vínculo; é isto que convém a quem está ligado; cuidasse anteriormente de não se casar. “Estás ligado a uma mulher? Não procures romper o vínculo. Não estás ligado a uma mulher? Não procures mulher” (1 Cor 7,27). Se ainda não és asno selvagem e não estás ligado a mulher, podes beber como a lebre; e se tomares mulher, não pecas. Os discípulos, porém, ao ouvirem o Senhor pronunciar que não é lícito de forma alguma, exceto por motivo de fornicação, separar os cônjuges, responderam: “Se é assim a condição do homem em relação à mulher, não vale a pena casar-se”. E o Senhor acrescentou: “Nem todos são capazes de compreender esta palavra” (Mt 19,10.11). Ora, é verdade o que dizeis, porque se tal é a condição do homem relativamente à mulher, não vale a pena casar-se; mas, então, somente os asnos selvagens hão de beber? Nem todos são capazes de compreender esta palavra, muitos não a compreendem. E quais são os que a compreendem? “Os asnos selvagens com elas apagarão a sua sede”? Que quer dizer: “Os asnos selvagens com elas apagarão a sua sede? Quem tiver capacidade para compreender, compreenda” (Mt 19,12). | |
§ 5 | 12 Continuando, diz o salmo em seu contexto: “Acima delas aninham-se as aves do céu”. Acima de quê? Dos asnos, ou antes, dos montes? O sentido se revela nestes versículos: “Entre as montanhas deslizarão as águas. Delas beberão todos os animais do campo e os asnos selvagens com elas apagarão a sua sede. Acima delas aninham-se as aves do céu”. É mais conveniente entendermos: acima dos montes, porque isto assemelha-se ao que se vê na natureza; assim entenderíamos, se fôssemos necessariamente obrigados a isso. Sobre os montes as aves podem aninhar-se; sobre os asnos, não. Por conseguinte, as aves do céu aninhar-se-ão sobre os montes. Vemos que estas aves aninham-se nos montes; mas muitas delas aninham-se nos campos, muitas nos vales, muitas nos bosques, muitas nos jardins; nem todas, pois, nos montes. Há certas aves que moram somente nos montes. Figuram as almas espirituais. Aves são os corações espirituais, que fruem da liberdade dos ares. Estas aves fruem da serenidade do céu, contudo encontram seu sustento nos montes; lá habitam. Sabeis quais são os montes; já o explanamos. Montes são os profetas, montes os apóstolos, montes todos os pregadores da verdade. Quem quiser ser espiritual, habite ali; não divague em seu coração; habite, atravesse voando. Temos, então, as aves a figurarem algo de espiritual. Não foi sem razão que foi dito: “Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude” (Sl 102,5). Tem determinado sentido o que foi dito de Abraão: “Entretanto, não partiu as aves”. Abraão naquele sacrifício assaz misterioso ofereceu três animais: uma vaca, de três anos, um cordeiro de três anos, uma cabra de três anos, uma rola e um pombinho. Dividiu o cordeiro e colocou uma parte em face da outra; dividiu a cabra e colocou metade em face da outra; dividiu a vaca, e fez o mesmo com a sua carne; e acrescenta a Escritura: “Entretanto, não partiu as aves”. Além disso, diz-se que o cordeiro era de três anos, a vaca de três anos; a cabra de três anos; não se fala, porém, da idade das aves. Qual o motivo, pergunto-vos, senão porque as aves representam homens espirituais, cuja idade temporal se omite, porque meditam as realidades eternas e ultrapassam todas as realidades temporais pelo desejo e o intelecto? O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado (cf 1Cor 2,15); por isso, somente eles não se separam em heresias e cismas. O cordeiro representa os chefes sob o jugo da lei, sob a qual labutava. A cabra figura a Igreja dos gentios; ela saltava livremente e nutria-se da amarga oliveira silvestre. Estes animais tinham três anos, porque a graça se revelou na terceira época. A primeira foi antes da lei; a segunda, em que a lei foi promulgada; a terceira, a atual, em que se anuncia o reino dos céus. Por que dizemos que o cordeiro não se divide? Acaso os bispos não foram fautores de cismas e heresias? De fato, se o próprio povo não se dividisse, isto é, se a vaca não fosse partida, nem a cabra, talvez se envergonhassem de suas divisões e voltassem à união. Dividem-se os chefes, dividem-se os povos, como se um cego guiasse outro cego e ambos caíssem numa cova; são colocados um diante do outro. “Entretanto, não partiu as aves” (cf Mt 15,14). Os espirituais não sofrem divisão, não planejam cismas. Têm a paz em si, e conservam-na nos outros à medida que podem; e quando ela falta nos outros, eles a mantêm em si mesmos. “E se lá houver um homem de paz, a vossa paz irá repousar sobre ele; se não, voltará a vós” (Lc 10,6). Se ele não é de paz, quis dividir, tua paz voltará a ti, porque não partiu as aves. Virá também o fogo; pois, Abraão sentou-se ali até a tarde, e apoderou-se dele grande pavor como do dia do juízo. Aquela tarde representa o fim do mundo e a fogueira o dia do juízo futuro. Também o fogo dividiu, ao passar pelo meio das partes (Gn 13,9-17). Se o fogo passou pelo meio, separou uma parte para a direita e outra para a esquerda. Existem, de fato, alguns que são carnais, e contudo estão contidos no grêmio da Igreja, vivendo a seu modo. Receamos que estes sejam seduzidos pelos hereges; pois, enquanto são carnais são divisíveis. “Entretanto, não partiu as aves”. Os carnais são divisíveis. “Não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais”. E como provar que os carnais se dividem? Prossegue: “Cada um de vós diz: Eu sou de Paulo! ou Eu sou de Apolo! ou Eu sou de Cefas! Não sois carnais, não procedeis de maneira meramente humana? Peço-vos, irmãos, ouvi e tirai proveito; deixai de ser carnais e começai a ser rola e pombinho: “Entretanto, não partiu as aves”. Ora, quem permanecer assim, segundo certo estilo de vida conveniente aos carnais, sem se apartar do grêmio da Igreja, nem se deixar seduzir pelos hereges (sendo dividido e indo para a parte contrária), virá o fogo, contudo não poderá ser colocado à direita a não ser passando através do fogo. Mas, se não quiser suportar o fogo, procure tornar-se rola e pomba. Quem puder compreender, compreenda. Se, porém, ele não for assim, e “sobre esse fundamento construir com madeira, feno ou palha”, isto é, se edificar sobre o fundamento de sua fé com amores mundanos, no entanto, tem a Cristo por fundamento de tal forma que isto ocupe o primeiro lugar em seu coração e nada lhe é preferido, seja levado, seja suportado esse tal, porque virá o fogo e queimará a madeira, o feno e a palha. “Ele será salvo, mas como que através do fogo” (1 Cor 1,12.13; 3,1-15). Esta é a ação do fogo: separará alguns à esquerda e outros segregará à direita. “Entretanto, não partiu as aves”. Mas cuidem as aves de serem tais que possam habitar nos montes; não devem seguir a elevação de seus corações, a respeito da qual foi dito: “Investem com a boca contra o céu” (Sl 72,9). Não sejam arrastadas pelos ventos; repousem nos montes. Elas estão sob a autoridade dos santos; descansem nos montes, nos apóstolos, nos profetas. Ali habitem tais aves, porque nos montes encontram-se pedras, bases dos preceitos. Como existe aquela única pedra, Cristo Verbo de Deus, há muitas palavras de Deus, muitas pedras, e estas nos montes. Considera como as aves ali se aninham: “Acima delas aninham-se as aves do céu”. 1 Cf Com s/ salmos 84, 12, 14; 147, 9, 13 | |
§ 6 | Mas, não penses que estas aves do céu se apoiem em sua própria autoridade. Verifica o texto do salmo: “Do meio dos rochedos emitirão seu canto”. Se agora eu vos dissesse: Acreditai nisso porque assim falou Cícero, assim disse Platão, assim afirmou Pitágoras, quem de vós não haveria de rir-se de mim? Pois, seria ave que não emitiria minha voz do meio dos rochedos. Que me deve responder qualquer um de vós? Que me deve replicar quem tiver sido instruído? “Se alguém vos anunciar um evangelho diferente do que recebestes, seja anátema” (Gl 1,9). Que me dirias de Platão, de Cícero, de Virgílio? Tens diante de ti as pedras dos montes, do meio dos rochedos emite-me teu canto. “Do meio dos rochedos emitirão seu canto”. Sejam ouvidos aqueles que escutam as palavras emitidas dentres os rochedos; sejam ouvidos, porque na voz daquelas muitas pedras se ouve a da pedra: “E essa rocha era Cristo” (1 Cor 10,4). Sejam, portanto, ouvidas de bom grado, porque do meio dos rochedos emitem seu canto. Nada de mais suave do que o canto dos pássaros. Eles soam e as pedras ressoam. Eles soam, disputam os homens espirituais; ressoam as pedras, respondem os testemunhos da Escritura. Eis de onde as aves, no meio dos rochedos, emitem seu canto; pois, aninham-se nos montes. | |
§ 7 | 13 Os próprios montes e aqueles rochedos, de onde emitem as vozes? A fim de sermos irrigados pelas Sagradas Escrituras, refugiamo-nos junto do apóstolo Paulo. E ele, de onde tira? Vamos a Isaías. E Isaías, de onde? “Do alto regas os montes”. Por exemplo, se nos procurar um gentio incircunciso, que quer acreditar em Cristo, damos-lhe o batismo, sem exigir dele as obras da lei. E se um judeu nos interrogar por que agimos assim, emitimos palavras do meio dos rochedos, do seguinte modo: Assim agiu Pedro, assim agiu Paulo. Emitimos nossa voz do meio dos rochedos. De fato, aquela pedra, Pedro, grande montanha, enquanto rezava e teve aquela visão, era irrigado do alto. O apóstolo Paulo diz aos gentios: “Se vos fizerdes circuncidar, Cristo para nada vos servirá” (Gl 5,2). Assim se exprime Paulo, qual montanha; assim dizemos nós, emitindo a voz do meio dos rochedos. Irrigue o Senhor a pedra do alto. Pois, enquanto esse rochedo era ainda áspero pela infidelidade, o Senhor, querendo regá-lo do alto a fim de que as águas corressem no vale, clamou: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Ele não lhe fez a leitura de um profeta, não o fez ouvir outro apóstolo, pois aquela grande montanha teria desprezado tudo isso; mas regou-o do algo, e logo que foi irrigado e já desejava manar, disse: Senhor, que queres que eu faça? (At 9,4.6). Vai àquele monte ou pedra, de onde possas emitir tua voz; adere a ele, e vê-lo-ás irrigado do alto, a manar para as partes inferiores. Escuta isso de outra passagem: “Se nos deixamos arrebatar como para fora do bom senso, foi por causa de Deus; se somos sensatos, é por causa de vós” (2 Cor 5,13). Não podeis compreender a expressão: “Se nos deixamos arrebatar para fora do bom senso”; fomos arrebatados para fora de todos os bens carnais, e vós ainda sois carnais. Portanto, fomos arrebatados para Deus, e não podemos expressar o que vemos quando arrebatados. Pois, Paulo ali “ouviu as palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir” (2 Cor 12,4). E então, perguntam os homens carnais, as lebres, nós não seremos irrigados? Nada chegará até nós? E como Deus faz brotar fontes nos vales? E como entre as montanhas deslizarão as águas? É relativo a isto a palavra: “Se somos sensatos, é por causa de vós”. Donde provém isto? A quem imitamos? Diz o Apóstolo: “A caridade de Cristo nos compele” (2 Cor 5,13.14). Tu que és partícipe do Verbo, embora hoje sejas espiritual, eras ontem ainda carnal, menosprezas descer para junto dos carnais; e no entanto, o próprio Verbo se fez carne (Jo 1,14), para habitar junto de vós. | |
§ 8 | Bendigamos, portanto, ao Senhor, e louvemos àquele que rega os montes do alto. De lá, a irrigação atinge a terra, de lá também os lugares baixos se fartam, pois continua o salmo: “Do fruto de tuas obras fartar-se-á a terra”. Que quer dizer: “Do fruto de tuas obras?” Ninguém se glorie de suas obras; mas aquele que se gloria, se glorie no Senhor (cf 1Cor 1,31). É saciado por tua graça quando é saciado; não diga que recebeu a graça devido a seus méritos. Se é denominada graça, é dada gratuitamente; se é paga das obras, é recompensa. Portanto, recebe gratuitamente, porque, sendo ímpio és justificado (cf Rm 4,4.5). “Do fruto de tuas obras fartar-se-á a terra”. | |
§ 9 | 14 “Produzes o feno para os jumentos e as plantas úteis aos homens”. É verdade. Vejo isso, reconheço-o na criação: a terra produz feno para os jumentos e as plantas úteis aos homens. Mas verifico que há outros jumentos do Senhor que são representados pelas palavras: “Não amordaçarás o boi que tritura o grão”; e diz o próprio jumento: “Acaso Deus se preocupa com os bois?” Efetivamente, é por nossa causa que a Escritura fala assim. Como, então, a terra produz feno para os jumentos? Porque “o Senhor ordenou àqueles que anunciam o evangelho, que vivam do evangelho” (1 Cor 7,7-19). Enviou pregadores e lhes disse: “Comei o que vos servirem. Pois, o operário é digno do seu salário” (Lc 10,7.8). Tendo dito: “Comei o que vos servirem”, para não obter a resposta: Seremos indesejáveis às mesas dos outros quando estivermos necessitados; queres que sejamos tão ousados? Não, replicará ele, isso não é uma dádiva dos outros, mas o vosso salário. Salário de quê? O que dão? O que recebem? Dão bens espirituais, e recebem bens materiais; dão ouro e recebem feno. “Toda carne é feno e toda a sua graça é como a flor do campo” (Is 40,6). Todos os bens temporais supérfluos e superbundantes que possuis são feno para os jumentos. Por quê? Porque são carnais. Ouve de quais jumentos são feno. “Se semeamos em vosso favor os bens espirituais, será excessivo que colhamos os vossos bens materiais?” Assim pergunta o Apóstolo, o pregador tão trabalhador, tão ativo, tão exercitado que leva o feno para toda a terra. Diz ele: “Não me vali de nenhum desses direitos”. Mostra que tinha esse direito, mas não o utilizou; contudo não condena os que aceitaram o que lhes era devido. Seriam condenáveis os que exigissem o que não lhes cabia e não os que recebessem seu salário; ele, porém, abriu mão até de seu salário. Se alguém te perdoou algo, nem por isso deixas de devê-lo a outro; do contrário não serias terra irrigada que produz feno para os jumentos. “Do fruto de tuas obras fartar-se-á a terra. Produzes o feno para os jumentos”. Não sejas estéril. Produz feno para os jumentos. Se os jumentos não aceitam teu feno, entretanto não te encontrem estéril. Recebes bens espirituais, paga com carnais, que são devidos aos soldados. Dá ao soldado porque és provedor de Cristo1. “Quem vai alguma vez à guerra com seus próprios recursos? Quem planta uma vinha e não come do seu fruto? Quem apascenta um rebanho e não se alimenta do leite do rebanho?” Não digo isso para agirem assim para comigo. O Apóstolo foi um soldado que até dispensava ao provedor de lhe fornecer seu sustento; todavia o provedor forneça o alimento. Direi a este respeito mais; são jumentos: “Não amordaçarás o boi que tritura o grão. Produzes o feno para os jumentos”, e de certo modo explica a expressão, acrescentando: “e as plantas úteis aos homens”. A fim de entenderes o que foi dito: “Produzes o feno para os jumentos” expôs, repetindo o anterior. Acima dissera: “feno”, em seguida: “planta”. Tendo dito: “para os jumentos”, aqui traz: “úteis para os homens”. Para o serviço dos homens e não para a liberdade. Por que então: “Vós fostes chamados à liberdade?” Mas entende às palavras do mesmo Apóstolo: “Ainda que livre em relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível” (1 Cor 9,7-19). E qual o motivo por que aos mesmos aos quais dissera: “Vós fostes chamados à liberdade”, acrescentou: “Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade, ponde-vos a serviço uns dos outros”? (Gl 5,13). Apresenta como escravos aqueles que mostrara como livres; não por condição, contudo pela redenção operada por Cristo; não por necessidade, mas por caridade: “Ponde-vos a serviço uns dos outros”, diz ele, “pela caridade”. Mas responde alguém: Por Cristo, servi-mo-nos mutuamente; não ao povo, não aos carnais, não aos fracos. Efetivamente, serves a Cristo, se serves àqueles aos quais Cristo serviu. Dele não foi dito que serviu bem a muitos? Isso se lê no profeta; costuma-se aplicar isso somente a Cristo. Ouçamos, contudo, propriamente e do evangelho a sua voz: “Aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve” (Mt 20,27). Aquele que por seu sangue te fez livre, tornou-te meu servo. Dizei-nos isto, porque é verdade. Ouve como o Apóstolo fala em outra passagem: “Apresentamo-nos como vossos servos por causa de Jesus” (2 Cor 4,5). Amai, de fato, vossos servos, mas em vosso Senhor. Que ele nos conceda servirmos bem. Pois, queiramos ou não, somos servos; entretanto se o somos voluntariamente, não servimos obrigados, mas por caridade. Pois, de certo modo parecia uma soberba apaixonada a de seus servos, quando o Senhor lhes dizia: “Aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve”. Ora, os filhos de Zebedeu desejavam tronos elevados; um queria sentar-se à direita, outro à esquerda, servindo-lhes a mãe de intermediária para ma-nifestar seus desejos. O Senhor não lhes recusou os tronos, mas mostrou-lhes primeiro o vale de lágrimas, dizendo-lhes de certa maneira: Queres vir até onde eu estou? Vinde pelo mesmo caminho que eu. Que quer dizer: Vinde pelo mesmo caminho que eu? Pela humildade. Eu desci das sublimes alturas, e depois de humilhado subo. Encontrei-vos na terra, e quereis voar antes que vos alimentar. Primeiro nutri-vos, educai-vos, suportai o ninho. Que lhes disse? Como os chamou de volta à humildade, enquanto procuravam as alturas? “Podeis beber o cálice que estou para beber?” (Mt 20,22). E eles, ainda nisto soberbos, responderam: “Podemos”. Fizeram como Pedro: “Darei a minha vida por ti”. Varão forte, até que a criada lhe dissesse: “Ele estava com eles” (Mt 26,35.71). Assim, estes aqui: “Podemos”. Podeis? “Podemos”. Então lhes disse: “Sim, bebereis de meu cálice”, embora agora não sejais capazes, “bebereis”. Igualmente a Pedro: “Não podes seguir-me agora aonde vou, mas me seguirás mais tarde” (Jo 13,36). “Sim, bebereis de meu cálice. Todavia, sentar à minha direita e à minha esquerda, não cabe a mim concedê-lo”. (Mt 20,20-27). Que significa: “Não cabe a mim concedê-lo?” Não me compete dá-lo a soberbos. Vós, a quem falo agora, sois soberbos; por isso disse: “Não cabe a mim concedê-lo”. Mas talvez respondessem: Seremos humildes. Então, já não sereis vós. Eu disse: “a vós”. Não disse: Não darei aos humildes e sim: Não darei aos soberbos. Quem, contudo, de soberbo se torna humilde, já não será o que era. | |
§ 10 | Por conseguinte, os pregadores da palavra são jumentos e são servos. Produz a terra, se for irrigada, “o feno para os jumentos e as plantas úteis aos homens”. É este o fruto, a fim de se poder realizar a palavra do evangelho: “a fim de que eles vos recebam nos tabernáculos eternos” (Lc 16,9). Nota o que podes fazer com o feno, o que comprar com quantia insignificante. “A fim de que eles nos recebam nos tabernáculos eternos”. Eles vos recebam lá onde se acham. Por que assim sucede? Porque “quem recebe um justo na qualidade de justo, receberá a recompensa própria de justo. E quem recebe um profeta na qualidade de profeta, receberá a recompensa própria de profeta. E quem der, nem que seja um copo d’água fria, a um destes pequeninos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa” (Mt 10,41-42). Que recompensa não perderá? Eles vos receberão nos tabernáculos eternos. Quem não se apressará? Quem não correrá velozmente? Se sois terra, inebriai-vos dos frutos das obras de Deus. Não digais: Não temos a quem beneficiar. Nossos pregadores, jumentos que trituram os grãos, homens que servem, não precisam do que é nosso. Procura, no entanto, a fim de que ninguém passe necessidade; enfim, mesmo os que de nada necessitam, encontrem em ti o que não quiserem receber. Ele receberá tua boa vontade e tu receberás a paz. Embora ele não procure a dádiva (cf Fl 4,17), procura o fruto. Procura, no entanto, para não suceder que alguém passe necessidade. E não digas: Se ele pedir, darei. Esperas, então, que ele peça? Alimentas o boi de Deus, como um mendigo de passagem? Dás ao que pede, porque está escrito: “Dá a quem te pedir” (Lc 6,30). E quanto ao que não pedir, como está escrito? “Feliz de quem entende o necessitado e o pobre” (Sl 40,2). Procura a quem dar: “Feliz de quem entende o necessitado e o pobre”, que vai ao encontro de quem quer pedir. Se no meio de vós os soldados de Cristo sofrem indigência, a ponto de terem de pedir, cuidai de que não vos julguem, em vez de pedirem. Como, dizes, devo procurar? Sê curioso, sê prudente; prevê, verifica como cada um consegue sua subsistência, como se mantém, de onde tira seus recursos. Esta curiosidade não é repreensível. Serás uma terra que “produz feno para os jumentos e as plantas úteis aos homens”. Sê curioso e entende o necessitado e o pobre. Um te procura para pedir; vá ao encontro de outro para que não precise pedir. Como foi dito acerca de quem te procura: “Dá a quem te pedir”; assim a respeito daquele que deves procurar foi dito: Segura a esmola em tua mão até achares um justo a quem dá-la. Ora, deve-se dar mesmo a estes pobres mendigos; Deus não proibiu dar-lhes esmolas, pois Cristo fala sobre eles: “Quando deres um festa, chama cegos, coxos, fracos, que não têm com que te retribuir. Serás, porém, recompensado na ressurreição dos justos” (Lc 14,13.14). Chama também a estes, alimenta-os; banqueteia-te com eles; alegra-te porque eles se saciam; eles, de teu pão e tu, da justiça de Deus. Nenhum de vós diga: Cristo mandou que se dê ao servo de Deus, mas não se dê ao mendigo. De forma nenhuma; é completamente ímpio quem fala assim. Dá-lhe e muito mais a ele. Pois, ele pede, e pela voz deves reconhecer a quem dar. Quanto menos pedir, tanto mais deves estar vigilante para ires ao encontro de quem vai pedir; ou talvez agora não suplique e um dia condene. Por isso, meus irmãos, sede curiosos nesta questão; encontrareis muitos servos de Deus na penúria, contanto que queirais encontrar. Mas, como vos agrada a desculpa: Não sabíamos, por isso não encontrais. | |
§ 11 | O próprio Senhor tinha bolsa, onde guardava o necessário e possuía dinheiro para uso daqueles que o acompanhavam e para si mesmo. Ao dizer o evangelista: “Teve fome (Mt 4,2;21,18), não mentiu”. O Senhor quis ter fome por tua causa, para que não tenhas fome com aquele que se tornou pobre, quando era rico, para nos enriquecer com sua pobreza (cf 2Cor 8,9). Teve, portanto, bolsa; e foi narrado que certas mulheres religiosas o acompanhavam quando seus pés iam evangelizar, e que elas o serviam com seus bens. O evangelho as nomeia; entre elas havia a mulher de Cuza, procurador de Herodes (cf Lc 8,3). Vê o que se fazia. Futuramente viria Paulo que nada disso queria, e cedia tudo aos provedores. Mas, como muitos homens fracos haviam de querer isto, Cristo prefere fazer as vezes dos fracos. Paulo seria mais sublime que Cristo? Cristo é mais sublime, porque mais misericordioso. Cristo, vendo que Paulo não aceitaria auxílio, cuidou de não condenar os que recebessem, e deu em si exemplo aos fracos; da mesma forma, vendo como muitos estariam dispostos ao martírio e iriam para ele alegres, exul-tantes no meio dos sofrimentos, fortes, produzindo cem por um e maduros para o celeiro, enquanto outros eram fracos, e ele via que poderiam perturbar-se com a perspectiva da paixão, sem cederem contudo, mas antes conformariam sua vontade humana com a vontade do Criador, Cristo quis na paixão representá-los, dizendo: “A minha alma está triste até a morte!” e ainda: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice”. Mostrou o que haveria de dizer um homem fraco, mas em seguida ensinou o que ele devia fazer: “Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,38.29), ó Pai. Como, pois na paixão, representou os fracos, prefigurando-os em seu corpo, porque são seus membros, não foi dito sem razão: “Teus olhos viram minha imperfeição. Em teu livro todos serão inscritos” (Sl 138,16), assim também assumiu a indigência, tendo bolsa, recebendo de certo modo salário que não exigiria, mas lhe seria oferecido. Zaqueu o recebeu em sua casa, e se alegrou (cf Lc 19,6). Quem foi beneficiado? Cristo, ou Zaqueu? Efetivamente, se Zaqueu não o acolhesse, não haveria onde ficar o criador do mundo? Ou se Zaqueu não o alimentasse, precisaria disso aquele que saciou tantos milhares de homens com cinco pães? Quando alguém acolhe um santo, o benefício não é para quem é acolhido, mas para quem acolhe. Por acaso, durante aquela fome, Elias não era alimentado? O corvo não lhe levava pão e carne, servindo a criatura ao servo de Deus? No entanto, foi enviado à viúva para receber alimento; e assim algo lhe foi ministrado, não como a um soldado, mas como a um provedor (cf 1Rs 17,6). | |
§ 12 | Por conseguinte, irmãos, falávamos a respeito de como alimentar os pobres. O Senhor tinha uma bolsa e disse a Judas que estava para traí-lo: “Faze depressa o que tens de fazer”. Não entendendo os outros porque lhe dissera isto, pensavam que Jesus lhe ordenara que desse algo aos pobres. Era ele que guardava a bolsa. Assim está escrito no evangelho (cf Jo 13,27-29). Poderiam imaginar isso se o Senhor não tivesse o costume de agir deste modo? Por conseguinte, daquilo que o Senhor recebia e guardava na bolsa, dava-se alguma coisa àqueles pobres que Deus ensinou não serem desprezíveis. Mas se não o desprezas, quanto mais não o deves fazer ao boi que tritura esta eira? Quanto mais ao teu escravo? Talvez não precise de alimento, mas necessite de roupa. Não precisa de roupa, mas é possível que necessite de casa. Talvez levante uma igreja, ou faça um trabalho útil à casa de Deus. Ele espera que lhe dês atenção, que entendas o pobre e o necessitado. Tu, ao invés, terra dura como pedra, não irrigada, ou inutilmente irrigada, desculpas-te: Não sabia, não tinha conhecimento, ninguém me disse. Ninguém te disse! Cristo não cessa de dizer, o profeta diz continuamente: “Feliz quem entende o necessitado e o pobre”. Não vês que teu prelado está com o cofre vazio, mas certamente vês elevar-se o edifício onde entrarás para rezar. Não está diante de teus olhos? A não ser, irmãos, que penseis que vossos superiores estão acumulando bens em tesouros. Conhecemos muitos que não entesouram, e passam diariamente necessidade, em que ninguém acredita. Também vós podeis descobri-los, se quiserdes, se olhardes ao redor de vós, se estiverdes vigilantes, a fim de produzirdes frutos. Disse o que pude, quanto pude. Penso que conheceis bem nossa situação; como diz o Apóstolo, não falamos isto para agirdes assim em relação a nós. Conceda-me Deus que não tenha falado em vão; conceda-me que sejais terra irrigada, não pedregosa, como os judeus, que mereceram receber os mandamentos em tábuas de pedra; mas sejais terra frutífera, terra irrigada que retribua ao agricultor. Eles mesmos, os judeus, de coração duro como pedra, figurado nas tábuas de pedra, pagavam o dízimo. Vós até gemeis, mas nada sai daí. Se gemeis, dai à luz; se estais em parto, dai à luz. Por que um gemido vão? Para que um gemido estéril? Doem as vísceras, e no interior nada há de nascer? “Do alto regas os montes, do fruto de tuas obras fartar-se-á a terra”. Felizes os que fazem, felizes os que ouvem essas palavras e frutificam, felizes os que não exclamam em vão. “Do fruto de tuas obras fartar-se-á a terra. Produzes o feno para os jumentos e as plantas úteis aos homens”. Para quê? “Para que retires da terra o pão”. Que pão? O Cristo. De que terra? De Pedro, de Paulo, dos demais administradores da verdade. Escuta por que se fala em terra: “Trazemos, porém, este tesouro em vasos de argila, para que esse incomparável poder seja de Deus” (2 Cor 4,7). Este é o pão que desceu do céu (cf Jo 6,41), de tal modo, contudo, que seja tirado da terra, ao ser pregado pela atuação corporal de seus servos. A terra produz o feno, para que o homem retire o pão da terra. Qual a terra que produz o feno? O povo piedoso, o povo santo. Para retirar o pão de que terra? A palavra de Deus, através dos apóstolos, dos ministros dos sacramentos de Deus, que ainda vivem na terra, ainda tendo um corpo terreno. | |
§ 13 | 15 “E o vinho que alegra o coração do homem”. Ninguém pense logo em embriaguez; ou antes, todos podem esperá-la. E teu cálice inebriante, como é excelente! (Sl 22,5). Não queremos dizer: Ninguém se inebrie. Inebriai-vos, mas vede como. Se vos inebria o cálice excelente do Senhor, revelar-se-á esta embriaguez em vossas obras, mostrar-se-á no santo amor da justiça, ver-se-á finalmente no arroubo de vossa mente, mas dos bens terrenos para o céu. “E o óleo que lhe faz brilhar o rosto”. Vejo qual a terra e quanto fruto produzirá, se ela produzir o feno para os jumentos. Estes servos de Deus não vendem aquilo que dão. Não são comerciantes do evangelho. Dão gratuitamente o que gratuitamente receberam. Eles se alegram com vossas boas obras, pois elas são para vosso próprio proveito. Não procuram presentes, mas desejam ver os frutos. Que brilho é este que o óleo traz à face? A graça de Deus, certo brilho que revela, conforme diz o Apóstolo: “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito” (1 Cor 12,7). Certa graça existente nos homens, notória aos outros e que concilia um amor santo, chama-se óleo, de brilho divino. E como esta graça apareceu de modo excelente em Cristo, todo o mundo o ama. Tendo sido desprezado quando estava na terra, agora é adorado por todos os povos: “Porque do Senhor é o Reino. E ele dominará os povos” (Sl 21,29). Nele existe tanta graça que muitos que nele não acreditam, louvam-no, dizendo, porém, que não querem acreditar nele, porque ninguém pode cumprir o que ele ordena. Sentem-se coagidos enquanto o louvam aqueles que antes o injuriavam, furiosos. No entanto, é amado por todos, por todos anunciado. Como foi ungido de maneira excelente, chama-se Cristo. Cristo deriva de ungido, de crisma. Em hebraico Messias, em grego Cristo, em latim Unctus, ungido; mas todo o seu corpo foi ungido. Todos, portanto, que aderem a ele recebem a graça, de tal sorte que o óleo lhes faz brilhar o rosto. | |
§ 14 | “E o pão que lhe sustenta as forças, o coração”. Que quer dizer isto, irmãos? Incita-nos a entender de que pão ele fala. Pois, o pão material fortifica o estômago, o ventre; existe outro pão que confirma o coração, porque é pão para o coração. O salmista já se referira a um pão, mais acima: “Para que retire da terra o pão”, mas não dissera que espécie de pão era este. “E o vinho que alegra o coração do homem.” Provavelmente já se trata do vinho espiritual, pois alegra o coração do homem. Mas, ainda pode se tratar do vinho material, porque os ébrios se mostram de coração alegre. Oxalá se alegrem e não briguem. Podes replicar-me: Quem está mais contente do que o ébrio? Ou antes, que de mais louco do que o ébrio? E muitas vezes, quem mais colérico? Ora, existe outro vinho que verdadeiramente alegra o coração, e não faz outra coisa senão alegrá-lo. Mas, não consideres que este vinho deve ser entendido como sendo espiritual e o pão não. Expôs o próprio salmista que o pão é também espiritual, nesses termos: “E o pão que lhe sustenta as forças, o coração”. Interpreta, portanto, o pão da mesma forma que o vinho. Deves ter fome interiormente, ter sede interiormente: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). Este pão é a justiça, este vinho é a justiça; é a verdade e a verdade é Cristo (Jo 14,6). “Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6,41), e: “Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5). “E o pão que lhe sustenta as forças, o coração”. | |
§ 15 | 16 “Fartam-se as árvores do campo” com a graça que brota da terra. “Árvores do campo” são as multidões dos povos. “E os cedros do Líbano que ele plantou”. Cedros do Líbano são os poderosos do mundo. Eles se fartarão. Chegaram o pão, o vinho e o óleo de Cristo até aos senadores, aos nobres, aos reis; fartaram-se as árvores do campo. Primeiro, os humildes se saciaram, em seguida igualmente os cedros do Líbano, mas aqueles “que ele plantou”: cedros piedosos, fiéis religiosos; de fato, a esses ele plantou. Pois, também os ímpios são cedros do Líbano, mas “o Senhor quebra os cedros do Líbano” (Sl 28,5). O Líbano é um monte; ali existem literalmente estas árvores anti-quíssimas e excelentes. Líbano se traduz, conforme lemos nos que escreveram sobre o assunto, por: brancura. Líbano quer dizer brancura. Parece referir-se à brancura deste mundo, que agora brilha e refulge em suas pompas. Ali estão os cedros do Líbano que o Senhor plantou; fartam-se as árvores que o Senhor plantou. Pois, diz o Senhor, “toda planta que não foi plantada por meu Pai será arrancada” (Mt 15,13). “E os cedros do Líbano que ele plantou”. | |
§ 16 | 17 “Ali constroem os pássaros os seus ninhos e a casa da gaivota é guia para eles”. Onde os pássaros constroem seus ninhos? Nos cedros do Líbano. Já ouvimos o que são os cedros do Líbano: os nobres do mundo, importantes pela estirpe, riquezas, honrarias. Fartam-se também esses cedros, mas aqueles que o Senhor plantou. Nesses cedros os pássaros constroem seus ninhos. Quais são os pássaros? Efetivamente, as aves e animais alados do céu são pássaros, mas costuma-se denominar pássaros os alados pequeninos. Existem, portanto, determinados homens espirituais que constroem ninhos nos cedros do Líbano, isto é, existem servos de Deus que seguem a palavra do evangelho: Renuncia a tudo, ou: “Vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus”. Depois, “vem e segue-me” (Mt 19,21). Ouviram o convite não somente os grandes, mas ouviram igualmente os pequenos. Estes quiseram atender e tornar-se espirituais; preferiram não ter mulher, não se atormentar com as preocupações com os filhos, não possuir casas particulares que os prendessem e adotar vida em comum. Mas o que abandonaram estes pás-saros? Parecem ser os mínimos deste mundo esses pássaros. A que renunciaram? Que deixaram de importante? Alguém se converte, abandona a morada pobre de seu pai, apenas uma cama e uma arca. Converte-se, porém, torna-se pássaro, procura os bens espirituais. Bem, ótimo! Não o injuriemos, nem digamos: Nada deixaste. Não se enso-berbeça aquele que renunciou a muito. Sabemos que Pedro era pescador. Que pôde deixar para seguir o Senhor? Ou seu irmão André, ou os filhos de Zebedeu, João e Tiago, também eles pescadores? Entretanto, que disseram? “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos” (cf Mt 4,18,21; 19,27). O Senhor não lhes respondeu: Estás esquecido de tua pobreza? Que deixaste para receberes o mundo todo? Deixou muito, meus irmãos, deixou muito quem não somente deixou tudo o que tinha, mas ainda tudo o que ambicionava ter. Qual o pobre que não se incha com esperanças mundanas? Quem não ambiciona diariamente aumentar o que tem? Esta ambição foi cortada. Era imensa; recebeu limites, e nada deixou? De fato, Pedro deixou o mundo todo e Pedro recebeu o mundo todo. Como nada tendo, embora possuindo tudo (cf 2Cor 6,10). Muitos assim fazem. Fazem-no os que têm pouco, mas vêm a Cristo, e tornam-se pássaros úteis. Pareciam insignificantes, porque não possuíam altos postos, dignidades mundanas; constroem seus ninhos nos cedros do Líbano. Mesmo os cedros do Líbano, nobres, ricos e poderosos neste mundo, ouvem com temor a palavra: “Feliz quem entende o necessitado e o pobre” (Sl 40,2), ponderam seus bens, suas propriedades, e todo o supérfluo que parece aumentar-lhes a grandeza, e oferecem-nos aos servos de Deus. Dão campos, dão jardins, edificam igrejas, mosteiros, reúnem pássaros, a fim de que estes construam seus ninhos nos cedros do Líbano. Por conseguinte, fartam-se “os cedros do Líbano que plantou o Senhor e ali constroem os pássaros os seus ninhos”. Observai a terra inteira e vede se não é assim. Falei tudo isto, não só porque acredito, mas porque vi; compreendi-o por experiência. Examinai as maiores extensões de terras que conheceis, e vede quantos são os cedros do Líbano onde aqueles pássaros, a que me referi, constroem seus ninhos. | |
§ 17 | Todavia, meus irmãos, os próprios pássaros, se são espirituais, embora contruam seus ninhos nos cedros do Líbano, não devem dar excessiva importância aos cedros do Líbano e julgar superiores a tudo aqueles que lhes fornecem o necessário. Pois, eles são pássaros, e os outros são cedros do Líbano. No entanto, “a casa da gaivota é guia deles”, dos pássaros. Embora os pássaros construam seus ninhos nos cedros do Líbano, nem por isso esses são os guias dos pássaros. Eis que se fartarão as árvores do campo, todos os povos; e fartar-se-ão os cedros do Líbano que o Senhor plantou, todos os nobres e altamente colocados dentre os fiéis. Ali, isto é, nos cedros do Líbano, os pássaros farão seus ninhos; os ramos oferecerão oportunidade de se recolherem os homens espirituais de condição menos elevada. Ofereçam-na; façam-no os cedros do Líbano que o Senhor plantou; façam-no e façam-no de boa vontade. Estão cientes do que fazem, sabem-no os que recebem. Mas, apesar de ser nos cedros do Líbano que os pássaros fazem seus ninhos, “a casa das gaivotas é guia deles”. Que é a casa da gaivota? A gaivota, como todos nós sabemos, é uma ave marinha; habita nos lagos ou no mar. Não é fácil habitarem no litoral, ou nunca habitam aí, e sim no que emerge do meio da água; muitas vezes em pedras cercadas de água. Entendemos, portanto, que os rochedos são adequados para as casas das gaivotas. Não habitam em lugar mais forte e mais firme do que a pedra. Em que pedra? A que emerge do mar. Embora batida das ondas, ela as quebra sem se partir. É a grandeza do rochedo que emerge do mar. Quantas ondas bateram contra nossa pedra, Cristo Senhor nosso? Chocaram-se contra ele os judeus; estes se quebraram, Cristo ficou inteiro. Qualquer que quiser imitar a Cristo, mantenha-se neste mundo, isto é, nesse mar, onde não é possível deixar de sentir as procelas e tempestades, sem ceder a vento algum, a onda alguma, mas receba tudo isso e permaneça íntegro. Portanto, a casa da gaivota é forte e humilde. A gaivota não habita nas alturas; nada é mais firme do que sua casa, e nada mais humilde. De fato, os pássaros constroem seus ninhos nos cedros, devido às necessidades da vida presente; mas têm como guia aquela pedra que é batida pelas ondas e não se parte; pois imitam a paixão de Cristo. E se acaso os cedros do Líbano se irritarem, e sacudirem seus ramos, provocando incomodidades e escândalos para os servos de Deus, os pássaros, sem dúvida, voarão dali; mas ai dos cedros que ficarem sem os ninhos dos pássaros! Quanto aos pássaros não afundarão, não perecerão, porque “a casa da gaivota é guia para eles”. 1 Cf Com. s/ Sl. 52 90, I, 10, 15 | |
§ 18 | 18 Como continua o salmo? “Os altos montes são os cervos”. Cervos, grandes, espirituais, que atravessam correndo todos os espinheiros das sebes e das florestas. “Deu-me agilidade aos pés como aos dos cervos e nas alturas me firmará” (Sl 17,34). Mantenham-se nos montes altos, altos preceitos de Deus; meditem as coisas sublimes, guardem a lembrança do que se destaca nas Escrituras, sejam justificados pelas realidades supremas, pois para os cervos são aqueles montes altíssimos. Que acontece aos animais menores? Que sucede à lebre? Que sucede ao ouriço? A lebre é um animal pequeno e fraco, e o ouriço é espinhento. Um animal tímido e outro coberto de espinhos. Que significam os espinhos senão os pecadores? Quem peca diariamente, embora não sejam pecados graves, fica coberto de espinhos miúdos. Enquanto teme é lebre; enquanto coberto de pecados miúdos é ouriço; e não pode observar os preceitos mais importantes e perfeitos. “Os altos montes são para os cervos”. E então? Estes se perdem? Não. Assim como os altos montes são para os cervos”, vê como continua o salmo: “E os rochedos são asilos para os ouriços e as lebres”, porque o Senhor se fez o refúgio do pobre (cf Sl 9,10). Se pensas na pedra que está na terra, serve de asilo para os ouriços e lebres; se pensas no rochedo no meio do mar, é a casa da gaivota. Em toda parte a pedra é útil. Mesmo nos montes é útil; as montanhas sem uma base de pedra ruiriam nas produndezas. Já não se dizia das montanhas: “Acima delas aninham-se as aves do céu, que do meio dos rochedos emitirão seu canto?” Em toda parte, portanto, a pedra é nosso refúgio: quer esteja elevada nos montes, quer no meio do mar, quer batida das ondas sem se partir, quer se firme na terra; junto da primeira estão os cervos, da segunda a gaivota, da terceira a lebre e o ouriço. Que as le-bres batam no peito, os ouriços confessem seus pecados; embora estejam cobertos de pecados leves e cotidianos, não lhes falta contudo a pedra, que lhes ensinou a oração: “Perdoa as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores (Mt 6,12). Os rochedos são asilos para os ouriços e as lebres”. | |
§ 19 | 19 “Fez a lua para indicar os tempos”. No sentido espiritual, é a Igreja que cresce de um ponto mínimo, e devido à mortalidade nesta vida de certo modo envelhece; mas é para se aproximar do sol. Não estou falando desta lua visível aos olhos, mas daquela que é figurada por este nome. Esta, quando a Igreja estava na obscuridade, quando ainda não aparecia, ainda não se destacava, os homens eram seduzidos e dizia-se: Esta é a Igreja, aqui está Cristo; para alvejarem, sob uma lua obscura, os retos de coração” (Sl 10,3). Agora, que grande cegueira não é errar com a lua cheia? “Fez a lua para indicar os tempos”. Aqui no tempo, a Igreja passa; não existirá para sempre esta mortalidade. Crescer e minguar são fases que um dia terminarão; realizavam-se no tempo. “E o sol conhece a hora de se pôr”. Que sol é este senão o sol de justiça, que não nasceu para os ímpios, conforme eles se queixarão no dia do juízo? Eles haverão de declarar naquele dia: “Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol” (Sb 5,6). O sol nasce para quem entende o Cristo. Cristo se afasta da mente daquele que de tal sorte fica irado contra um irmão que lhe tem ódio. Conseqüentemente, “irai-vos e não pequeis” (Sl 4,5). Quem possui a caridade, apesar de se irar de vez em quando para corrigir a outrem, não é réu, porque a ira não é inveterada a ponto de se converter em ódio. Se, porém, a ira se converter em ódio, o sol se põe sobre a vossa ira. Portanto, “não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Ef 4,26). | |
§ 20 | Não penseis, irmãos, que por causa disso deveria o sol ser adorado, pois o sol nas Escrituras às vezes simboliza Cristo. Isso é loucura; como se eu estivesse recomendando a adorar quando digo: o sol simboliza Cristo. Adora, então, a pedra, que representa Cristo (cf 1Cor 10,4). “Como um cordeiro conduzido ao matadouro” (Is 53,7): adora também o cordeiro, porque representa o Cristo. “Eis que o Leão da tribo de Judá venceu” (Ap 5,5): adora também o leão, porque figura o Cristo. Vede quantas são as figuras de Cristo; todas elas o figuram por semelhança, mas não são ele propriamente. Queres saber como é Cristo propriamente? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Assim é propriamente o Cristo que te fez. Queres ouvir como é propriamente aquele que te restaurou? “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,1.14). As outras coisas são semelhanças. Compreende, aumenta tua capacidade de entender a Escritura, a fim de que uma coisa seja apresentada a teus olhos e outra seja sugerida a teu coração. | |
§ 21 | Sem dúvida podemos afirmar que aquele sol, o sol de justiça, com razão não nasce para os ímpios, embora eles o desejem. A própria Sabedoria o assevera: “Então, buscar-me-ão os maus, e não me encontrarão”. E por quê? Porque odiaram a sabedoria. Fala a própria sabedoria: “Buscar- me-ão os maus, e não me encontrarão, porque odiaram o saber” (Pr 1,28.29). Se odiaram, porque procuram? Procuram, não para dela usufruir, mas se orgulharem; buscam palavras, odeiam os bons costumes. “Pois o Espírito Santo, o educador, foge da duplicidade, ele se retira dos pensamentos sem sentido” (Sb 1,5). De fato, o sol acima mencionado não nasce para os ímpios, não se levanta para os maus. Quanto ao sol visível, que foi dito? “Ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, e cair a chuva sobre os justos e injustos” (Mt 5,45). Por conseguinte, não sei bem o que este salmo quer dizer a respeito do sol de justiça, segundo o mistério; pois verificamos que na criação isto acontece visivelmente: “O sol conhece a hora de se pôr”. Que quer dizer: “O sol conhece a hora de se pôr?” Cristo conhece o hora de sua paixão. Ocaso de Cristo é a paixão de Cristo. Mas, acaso o sol se põe para não nascer mais? “Porventura aquele que dorme, não poderá reerguer-se”? (Sl 40,9) Não foi ele mesmo quem disse: “Dormi inquieto?” E dele não foi dito: “Sejas exaltado, ó Deus, acima dos céus” (Sl 56,5.6)? Por conseguinte, “o sol conheceu a hora de se pôr”. Que significa: “conheceu?” Aprovou, agradou-lhe. E como provamos que conheceu, isto é, que lhe agradou? Que é que Deus não sabe? Que desconhece Cristo? E no entanto há de dizer no fim do mundo a alguns: “Nunca vos conheci” (Mt 7,23). Como, portanto, nesta passagem: “Nunca vos conheci” não quer dizer: Sois desconhecidos para mim, e sim: Não me sois agradáveis, assim igualmente aqui: “conheceu a hora de se pôr”, isto é, aprovou-lhe a hora de se pôr. Se lhe de-sagradasse, como sofreria? A um homem, visto que ele não é o sol, embora lhe desagrade sua paixão, cabe sofrer mesmo o que não quer. Cristo, porém, sofreria, se não lhe aprou-vesse padecer, isto é, se não conhecesse seu ocaso, não seria morto; pois ele próprio declarou: “Dou a minha vida para retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente. Tenho poder de entregá-la” (Jo 10,17.18). Portanto, “o sol conheceu a hora de se pôr”. | |
§ 22 | 20.21 E que aconteceu ao se pôr o sol, na paixão do Senhor? As trevas envolveram os apóstolos, sua esperança desfaleceu, enquanto anteriormente eles o tinham por grande e redentor de todos os homens. Por quê? “Estendeste as trevas e fez-se noite. Nela rondarão todas as feras da floresta. Os leõezinhos rugem pela presa e pedem a Deus o seu sustento”1. No sentido espiritual, como entender esses leõezinhos, a não ser os espíritos malignos? (cf Ef 6,12). Como interpretar se não se trata dos demônios malvados, alimentados com os erros dos homens? Existem os príncipes dos demônios e outros demônios desprezíveis. Eles procuram seduzir as almas, ali onde o sol não nasceu, onde há trevas. E quando caem as trevas, os leõezinhos procuram a quem devorar. Que foi dito do leão principal, príncipe de todos esses leões? “Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar” (1Pd 5,8). Por isso, “pedem a Deus o seu sustento”. Pois, o diabo não pode tentar, sem permissão de Deus. O santo varão Jó estava diante do diabo, todavia estava distante. À vista dele, mas fora de seu poder. Quando ousaria ele tentá-lo na carne, ou quanto aos bens que Jó possuía, se não recebesse faculdade para isso? Por que lhe foi dado este poder? É no intuito de que os ímpios sejam condenados, ou os justos provados. Em tudo Deus age com justiça. Sem uma concessão de Deus, que tem o poder sublime e supremo, o diabo não tem poder sobre ninguém, nem sobre seus bens. Como acontece com o diabo, assim também homem algum tem poder sobre outro homem, se não lhe for dado do alto. Comparecia o juiz dos vivos e dos mortos perante um juiz humano e este homem que o julgava, vendo o Cristo diante de si, ensoberbeceu-se e disse: “Não sabes que eu tenho poder para te matar e poder para te libertar?” Mas aquele que viera para ensinar até aquele que o julgava respondeu: “Não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto” (Jo 19,10.11). Tanto o homem quanto o diabo e qualquer demônio não podem prejudicar se não receberem poder para isso. Mas não prejudicam os mais adiantados. Para os maus, eles são o que o fogo é, para o feno; para os bons, como o fogo para o ouro. Judas foi absorvido como feno; Jó foi provado como ouro. “Estendeste as trevas e fez-se noite. Nela rondarão todas as feras da floresta”. Temos aí as feras da floresta, de maneira diferente. Estas coisas se estendem sempre de vários modos. Assim como o Senhor é cordeiro, é também leão. Que há de mais diverso do que o cordeiro e o leão? Mas, que espécie de cordeiro? Cordeiro que vence o lobo, que vence o leão. Ele é também pedra, pastor, porta. O pastor entra pela porta. E diz: “Eu sou o bom pastor”, ainda: “Eu sou a porta” (Jo 10,7.11). O nome de leão também representa o Senhor, porque: “O Leão da tribo de Judá venceu” (Ap 5,5), o diabo; também: “Calcarás o leão e o dragão” (Sl 90,13). Aprendei a interpretar assim, quando estas coisas se dizem em figura, para não suceder que ao lerdes que a pedra representa Cristo, venhais a supor que pedra é sempre Cristo. Tem a palavra vários significados, deve-se verificar onde está uma letra para apreender sua força. Se ouvires a letra D, primeira do nome de Deus, e pensares que deve sempre ser usada para isso, tu a apagarás do nome do diabo. O nome de Deus começa pela mesma letra que se acha no início do nome do diabo; e nada tão separado um do outro quanto Deus e o diabo. Observa como é absurdo, tanto relativamente às coisas humanas quanto às divinas, o que pode dizer alguém de uma só letra, a letra D: não deve ser colocada no começo do nome do diabo. E se perguntares por quê? Responderá: li esta letra no nome de Deus. E o outro há de rir. Não é coisa digna de se prestar atenção. Não penses de maneira tão pueril das realidades divinas. Nem algum de vós, porque disse mais acima que as feras da floresta representam os povos e agora afirmo que as feras da floresta significam os demônios, anjos prevaricadores, vai imaginar que estou me contradizendo. São comparações, e onde se acham, explicam-se pelas circunstâncias. “Nela rondarão todas as feras da floresta”. Onde? Na noite que o Senhor trouxe, porque “o sol conheceu a hora de se pôr. Os leõezinhos rugem pela presa e pedem a Deus o seu sustento”. Com razão, o Senhor estando iminente o seu ocaso, disse aos apóstolos, futuras trevas, onde o leão haveria de rondar à procura de quem devorar (e aquele leão a ninguém devoraria, sem antes pedir): “Eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti a fim de que, Pedro, tua fé não desfaleça” (Lc 22,31.32). Ao negar Pedro por três vezes, ele já não estava nos dentes do leão? (cf Mt 26,70-74). “Os leõezinhos rugem pela presa e pedem a Deus o seu sustento”. | |
§ 23 | 22 “Ao rair do sol”. Aquele que disse: “Tenho poder de entregar a minha vida e poder de retomá-la”, conheceu seu ocaso e a entregou. “Ao raiar do sol”, ele a retomou: “Ao raiar do sol”, porque o sol se pôs, mas não se extinguiu. Para os que não compreenderam a Cristo ainda é noite. O sol ainda não nasceu. Insistam no esforço de entender, a fim de não serem arrebatados pelo leão a rugir. Pois, os leõezinhos não ousam atacar aqueles para os quais o sol nasceu. Continua o salmo: “Mas se retiram ao raiar do sol e vão deitar em seus covis”. Quanto mais se levanta este sol, de forma a ser percebido na terra inteira, e o mundo todo vê a glória de Cristo, retiram-se os leõezinhos. Os demônios desistem de perseguir a Igreja. Eles instigam a perseguição contra a casa de Deus, operando nos filhos da desobediência. Pois, foi dito: “Conforme o príncipe do poder do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência” (Ef 2,2). Agora, uma vez que nenhum deles ousa perseguir a Igreja, “ao raiar do sol, se retiram”. E onde estão? “Vão se deitar em seus covis”. Seus covis são os corações dos infiéis. Quantos são os que trazem leões deitados em seus corações? Não saem dali, não atacam a esta Jerusalém peregrina. Por que não o fazem? Porque o sol já “raiou” e brilha em todo o orbe da terra. | |
§ 24 | 23 Por conseguinte, olha como continua o salmo. “Mas se retiram ao raiar do sol e vão se deitar em seus covis”. Que fazes tu, ó homem de Deus? Que fazes, ó Igreja de Deus? Que fazes tu, ó corpo de Cristo, cuja Cabeça está no céu? Que fazes tu, ó homem, na unidade? “Então sairá o homem para o seu trabalho”. Pratique, portanto, esse homem boas obras na segurança da paz da Igreja, pratique até o fim. Pois, um dia virá a escuridão; haverá um ataque, mas à tarde, no fim do mundo; agora, porém, a Igreja opera na paz e tranqüilidade, porque “sairá o homem para o trabalho e para a labuta até o anoitecer”. | |
§ 25 | 24 “Quão magníficas são as tuas obras, Senhor!” Com efeito, são grandes, são excelsas. Onde se realizaram estas obras tão grandiosas? Em que posto Deus permaneceu, ou que sede utilizou para operá-las? Em que lugar as fez? De onde partiram primeiro estas obras tão belas? Se tomares à letra, donde se originaram as criaturas bem ordenadas, que decorrem em perfeita ordem, ordenadamente belas, ordenadamente surgem, e ordenadamente desaparecem, ordenadamente percorrem todos os tempos? E a própria Igreja, como obteve progresso, sucesso, perfeição? Como se destina à imortalidade final? Como é apregoada? Que mistérios a recomendam? Que sacramentos a ocultam? Que pregação a revela? Onde Deus executou tudo isso? Vejo obras grandiosas: “Quão magníficas são as tuas obras, Senhor!” Procuro o lugar onde atuou e não encontro; mas descubro o que segue: “Com sabedoria fizeste todas as coisas”. Portanto, fizeste tudo em Cristo. Cristo desprezado, Cristo esbofeteado, cuspido, coroado de espinhos, crucificado, tudo fizeste nele. Escuto, escuto o que anuncias aos homens acerca deste teu soldado; o que anuncias aos povos sobre aquele santo pregoeiro, Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Os judeus zombem de Cristo crucificado, porque é escândalo para eles; zombem os pagãos de Cristo crucificado, porque é loucura para eles: “Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que, para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas, para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 23.24). “Com sabedoria fizeste todas as coisas”. | |
§ 26 | “E a terra está repleta de tuas criaturas”. A terra está repleta das criaturas de Cristo. E como? Que observamos? O que não foi criado pelo Pai através do Filho? Tudo que anda ou se arrasta sobre a terra, tudo o que nada nas águas, tudo o que voa no ar, tudo o que gira no céu, quanto mais a terra, todo o mundo é criatura de Deus. Mas, não sei bem o que o Apóstolo quis dizer ao falar em nova criatura: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova. Tudo isto vem de Deus” (2 Cor 5,17.18). A nova criatura que surgiu consta de todos os que acreditaram em Cristo, se despojaram do homem velho e se revestiram do novo (cf Ef 4,22.24). “E a terra está repleta de tuas criaturas”. Cristo foi crucificado num lugar da terra, num lugar pequenino caiu o grão na terra e morreu; mas produziu muito fruto. Estavas sozinho, Senhor Jesus, até que passaste. “Estou só, até que passo” (Sl 140,10): reconheço tua voz em outro salmo. Estavas só até passares; estavas só quando conheceste teu ocaso; mas do ocaso passaste ao nascente. Nasceste, brilhaste, foste glorificado, ao subires ao céu, “e a terra está repleta de tuas criaturas”. Irmãos, não terminamos ainda o salmo; mas adiemos algo, em nome de Cristo para o domingo | |
IV SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | Lembra-se V. Caridade do que vou dizer. Uma só é a palavra de Deus que se estende por todas as Escrituras; e através da boca de muitos santos ressoa um só Verbo, que sendo no princípio Deus junto de Deus, lá não consta de sílabas, porque está fora do tempo; e não devemos admirar que, por causa de nossa fraqueza ele desceu até às partículas de nossos sons, quando desceu para assumir a fraqueza de nosso corpo (cf Jo 1,1.14). Quanto ao presente salmo, exigiu de nós muitos sermões e os mistérios que encerra ocultos (a fim de que a porta deles se abra para os que batem), tomaram-nos grande quantidade de tempo, para serem pronunciados, recomendados, e para demonstrarmos o que estava ali encerrado, enfim para que se abrissem, manifestassem, mostrassem. Assim, lembra-se V. Caridade, como ia dizendo, que nem ontem pudemos chegar ao termo, e por isso diferimos a conclusão para hoje. Quis o Senhor conceder-nos tempo para se cumprir nossa palavra. Posso eu, devedor, pagar meu débito, e tranqüilizar meus cobradores. O Senhor mesmo nos dê o que possamos vos transmitir, ele que não nos retribuiu com o mal, o mal que havíamos praticado. | |
§ 2 | 24 Exclamou, como sabeis, como recordais com piedade e alegria, exclamou com o salmo o íntimo de nosso coração, dizendo: “Quão magníficas são as tuas obras, Senhor! Com sabedoria fizeste todas as coisas e a terra está repleta de tuas criaturas”. Tudo que Deus criou, criou em sua sabedoria e por sua sabedoria. Tudo aquilo que conhece a sabedoria e tudo o que não a conhece, e contudo está entre as criaturas de Deus, foi feito em sua sabedoria e por sua sabedoria. Os que conhecem a sabedoria, têm a luz da sabedoria; os que não a conhecem, têm a sabedoria por autor, apesar de estarem eles mesmos detidos na insipiência. Aqueles que possuem-na como sua luz, têm-na igualmente por autor; mas nem todos que a têm por autor possuem também a luz da sabedoria. Efetivamente, muitos são os homens que se tornam participantes dela, e chamam-se sábios; e muitos dela desprovidos têm o nome de estultos. Por isso não é devidamente que são chamados de estultos os que se aplicam a obter a sabedoria, porque se pedem, se procuram, se batem à sua porta, podem alcançar uma participação nela; ela não se furta à natureza, e sim à negligência. Existem contudo, outras criaturas que não podem ser participantes da sabedoria, como todas as feras, todos os animais, todas as árvores que nem têm sensibilidade. Mas, se não podem ser participantes da sabedoria, em conseqüência não foram feitas na sabedoria e pela sabedoria? Deus não exige inteligência do cavalo e do mulo; mas aos homens ele diz: “Não sejais como o cavalo e o mulo, sem inteligência” (Sl 31,9). Se isto constitui natureza no cavalo, no homem é crime. Por isso diz Deus: Não exijo participação em minha sabedoria daqueles que não fiz à minha imagem; mas daqueles que fiz assim, peço o uso do dom que lhes concedi. Os homens, portanto, que dão a Deus o que é de Deus, e dão a César o que é de César (cf Mt 22,21), isto é, que devolvem a César sua imagem, e a Deus dão de volta a imagem de Deus, elevam a mente, não a si mesmos, mas a seu criador e àquela luz de onde vêm, a uma espécie de calor espiritual que os aquecem. Abandonando este calor, eles se esfriam, e deixando a luz ficam nas trevas; se, porém, voltam a ela iluminam-se. Dizendo piedosamente a Deus: “Senhor, fazes brilhar a minha lâmpada. Iluminarás, meu Deus, as minhas trevas” (Sl 17,29), afastadas as trevas da estultície terrena, eles abrem a boca, orientam o espírito, elevam confiantes, como disse, os olhos do coração. Mentalmente percorrem o mundo, a terra, o mar e o céu, e vendo todas as coisas dispostas com beleza, movimentarem-se ordenadamente, dividirem-se em espécies, multiplicarem-se por sementes, sofrerem vicissitudes, sucederem-se no tempo, comprazem-se no Criador e agradam o Criador por meio de suas obras. E exclamam cheios de grande alegria, pois de fato nada se compara a este gáudio: “Quão magníficas são as tuas obras, Senhor! Com sabedoria fizeste todas as coisas”. Onde se acha a sabedoria com que fizeste todas as coisas? Que sentido a atinge? Que olho a vê? Com que estudos é pesquisada? Que méritos a obtêm? Com que, senão pela graça de Deus? Quem nos deu o ser, concede-nos também a possibilidade de sermos bons. Dá aos que se converteram. Antes que se convertessem enquanto eram seus adversários e seguiam seus próprios caminhos, ele não os procurou? Não desceu do céu? O Verbo não se fez carne e habitou entre nós? (cf Jo 1,14). Não acendeu a lâmpada de sua carne, quando pendia da cruz, e procurou a dracma perdida? Procurou e encontrou; convidou as vizinhas a se congratularem, isto é, todas as criaturas espirituais, próximas de Deus. Para alegria das vizinhas foi encontrada a dracma; com a alegria dos anjos foi encontrada a alma humana. Foi encontrada. Portanto se alegre e diga: “Quão magníficas são as tuas obras, Senhor! Com sabedoria fizeste todas as coisas”. | |
§ 3 | “A terra está repleta de tuas criaturas”. De que cria-turas a terra está cheia? De árvores e arbustos, de animais e rebanhos, de todo o gênero humano; a terra está repleta das criaturas de Deus. Nós o vemos, sabemos, lemos, conhecemos, louvamos e com elas anunciamos; e não conseguimos louvar tanto quanto transborda de nosso coração, por causa desta boa observação. Mas sabe-nos prestar maior atenção à criatura mencionada pelo Apóstolo: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” (2 Cor 5,17). “Quais as coisas antigas que terminaram”? Entre os gentios a idolatria, entre os próprios judeus a servidão da lei, os sacrifícios que prenunciavam o sacríficio atual. Superabundava a velhice humana; veio aquele que havia de renovar a sua obra, purificar a sua prata, cunhar a sua moeda e notamos que a terra está repleta de cristãos que crêem em Deus, que se apartam das anteriores impurezas e da idolatria e abandonam as antigas esperanças em vista da esperança do século novo. Ainda não é a plena realidade, mas esta já é possuída na esperança, e devido à própria esperança já cantamos: “A terra está repleta de tuas criaturas”. De fato, ainda não é na pátria que assim cantamos, ainda não é no repouso prometido, ainda não se reforçaram os ferrolhos das portas de Jerusalém (cf Sl 147,13). Mas, ainda em peregrinação, contemplando todo este mundo, e em todas as partes homens que caminham à luz da fé, que temem a geena, desprezam a morte, amam a vida eterna, desprezam a vida presente; e cheios de alegria diante de tal espetáculo, dizemos: “A terra está repleta de tuas criaturas”. | |
§ 4 | 25 O mundo ainda se acha batido pelas ondas das tentações, ainda é perturbado pelas tempestades e procelas das tribulações e ambições; no entanto, prossegue. Apesar das ameaças do mar, das grandes ressacas e das procelas, prosseguimos e nos é dado um madeiro, sobre o qual realizamos nossa travessia: “A terra está repleta de tuas criaturas”. Mas ainda não nos achamos na terra dos vivos. Esta terra ainda é terra dos que morrem. Clamamos, contudo, repetindo: “Tu és a minha esperança, a minha porção na terra dos vivos” (Sl 141,6). Na terra dos que morrem minha esperança, minha porção na terra dos vivos. Eis a terra repleta das criaturas de Deus. Quem ainda está na terra dos que morrem, ainda não na terra dos vivos, por onde passa? Escuta o versículo seguinte: “Eis o mar amplo e vasto, onde se agitam inúmeros animais pequenos e grandes”. Refere-se a um mar terrível: “lá se agitam inúmeros animais”. As insídias serpeiam neste mundo, e de repente atacam os incautos. Quem pode enumerar as tentações insidiosas? Serpeiam; cuidado para que não se insinuem. Que se vigie sobre o madeiro; mesmo no meio das águas, mesmo entre as ondas estamos seguros; Cristo não durma, não durma a fé. E se ele adormecer, seja despertado. Ele ordenará aos ventos e aplacará o mar. O caminho há de terminar, e haverá alegria na pátria. “Onde se agitam inúmeros animais pequenos e grandes”. Vejo neste mar horroroso os que ainda não crêem; eles vivem em águas amargas e estéreis; ali, de fato, há grandes e pequenos. Sabemos bem que é assim; muitos das câmadas inferiores são ainda incrédulos, muitos dos potentados deste mundo não crêem ainda: existem neste mar “animais pequenos e grandes”. Odeiam a Igreja, mas são retidos pelo nome de Cristo; não são cruéis porque não lhes é permitido ser. Fica presa no coração a fúria que não se pode mostrar nas mãos. Pois, todos, pequenos ou grandes, “animais pequenos e grandes”, que agora se queixam porque os templos estão fechados, os altares acham-se derrubados, estão quebrados os ídolos, e existem leis promulgadas que consideram crime capital sacrificar aos ídolos, todos esses, que lastimam tudo isso, ainda estão no meio do mar. E a nós, o que acontece? Queremos ir para a pátria, através de que caminho? Pelo próprio mar, mas sobre o madeiro. Não temas o perigo; carrega-te o madeiro que contém o mundo. Por isso, atenção: “Eis o mar amplo e vasto, onde se agitam inúmeros animais pequenos e grandes”. Não temas, não te atemorizes; deseja a pátria, entende como é a peregrinação. | |
§ 5 | 26 “As naus sulcam-no”. Quanto ao que se temia, eis que as naus sulcam o mar, sem naufragar. Entendemos por naus as Igrejas, que sulcam o mar entre as tempestades, procelas das tentações, ondas deste mundo, entre animais pequenos e grandes. O piloto é Cristo no madeiro de sua cruz. “As naus sulcam-no”. Não tenham medo as naves, não considerem tanto onde navegam, mas quem as dirige. “As naus sulcam-no”. Como podem achar triste a travessia, se percebem que Cristo é o piloto? Naveguem com segurança, sulquem o mar com perseverança, pois chegarão ao termo desejado, serão conduzidos à terra firme. | |
§ 6 | Existe neste mar algo que supera todos os animais pequenos e grandes. Que será? Escutemos o que diz o salmo: “Este dragão que criaste para dele zombar”. No mar se encontram inúmeros animais, animais pequenos e grandes; as naves o atravessam sem medo não somente dos animais inúmeros, pequenos e grandes, mas até do dragão que nele existe. Dizem a Deus: “que criaste para dele zombar”. É um grande enigma, contudo sabeis o que vou dizer. Estais cientes de que a Igreja tem por inimigo um dragão. Não o vistes com os olhos carnais, mas o vedes com os olhos da fé. Identifica-se com o leão, mencionado na Escritura: “Calcarás o leão e o dragão” (Sl 90,13). Ele está sujeito à tua Cabeça; que se sujeite também ao corpo, contanto que os membros adiram à Cabeça, sendo na verdade seus membros. Narra-se que a primeira mulher foi seduzida por este dragão. Trata-se de Eva, a quem ele deu um conselho mortal, insinuando-se qual serpente por uma astuta persuasão no coração da mulher. Aconteceu o que sabemos, o que também nós ali fizemos e que lastimamos. Naqueles dois seres humanos achava-se todo o gênero humano; daí vem a transmissão da morte, daí provém o débito, o delito mesmo nas criancinhas. Diz a Escritura: “Quem é puro em tua presença? Nem a criança que tem um dia de vida sobre a terra” (cf Jó 14,4 e 5, sg LXX). Transmissão do pecado, transmissão da morte originária do primeiro pecado. Pois, conheceis o que foi dito à mulher, ou antes à serpente por Deus, diante do pecado do primeiro homem: “Ele observará tua cabeça e tu observarás seu calcanhar” (Gn 3,15). Foi dito para simbolizar um grande mistério, figurando a Igreja do futuro, tirada do lado de seu esposo enquanto dormia. Adão era um tipo do futuro. “Figura daquele que devia vir” (Rm 5,14), diz o Apóstolo. Foi prefigurado o que havia de vir. A Igreja nasceu do lado do Senhor adormecido na cruz. Pois do lado aberto do crucificado brotaram os sacramentos da Igreja (cf Jo 19,34). Que foi dito à Igreja? Ouvi, entendei, acautelai-vos: “Ela observará tua cabeça e tu observarás o seu calcanhar”. Ó Igreja, observa a cabeça da serpente. Que é a cabeça da serpente? A primeira sugestão de pecado. Ocorre-te alguma coisa ilícita; não detenhas ali teu pensamento, não consintas. Veio-te à mente, é a cabeça da serpente. Calca a cabeça, e evitas outros movimentos. Que significa calca a cabeça? Despreza a sugestão. Mas ela sugeriu um lucro, um grande lucro, muito ouro; se praticares esta fraude, ficarás rico. Pisa a cabeça da serpente. Que quer dizer: pisa? Despreza o que ela sugeriu. Mas sugeriu uma grande quantidade de ouro. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua alma? (cf Mt 16,26). Pereça o lucro mundano, a fim de que a alma não sofra dano. Falando assim, observaste a cabeça da serpente e a pisaste. De outro lado, o diabo observa teu calcanhar. Que quer dizer: Observa teu calcanhar? Observa se escorrega no caminho de Deus. Tu observas a primeira sugestão e ele observa tua queda. Pois, se escorregares cais; se caires, ele te possuirá. Mas, para não caires, não saias do caminho. Deus te abriu uma senda estreita; tudo o que está fora dela é escorregadio. Pois, Cristo é a luz, Cristo é o caminho: “Era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem ao mundo” (Jo 1,9); e: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Vais por mim, vais a mim. Se, portanto, Cristo é luz e também caminho, se dele te afastares, não estarás na luz, nem no caminho. E qual a conseqüência? A que afirma sobre os ímpios um salmo: “Seja tenebroso e escorregadio o seu caminho” (Sl 34,6). 1 Cf Com, s/ Sl 100, 12 ss. | |
§ 7 | Este dragão, portanto, nosso antigo inimigo, inflamado de cólera, astuto em insídias, está no grande mar. “Este dragão que criaste para dele zombares”. Tu também, zomba do dragão; para isso foi feito. Ele tendo caí-do por causa de seu pecado da sublime habitação dos céus, e de anjo transformado em diabo, recebeu um lugar neste mar amplo e vasto. Parece seu reino e é seu cárcere. Pois, muitos dizem: Por que o diabo recebeu tanto poder que domina neste mundo e tem tanta força e tanto poder? Quanta força, quanto poder? Sem permissão, nada pode. Tu, porém, age de tal modo que nada consiga contra ti; ou se lhe for permitido tentar-te, que se afaste vencido, sem tomar posse de ti. Pois, foi-lhe permitido tentar a alguns santos servos de Deus; eles o venceram porque não se apartaram do caminho; não caíram aqueles cujo calcanhar o diabo observava. O santo varão Jó estava sentado no monturo, mas de fato corria pelo caminho. Vede como ele observou a cabeça da serpente e como esta estava atenta a seu calcanhar. Jó repelia a serpente a sugerir, e esta esperava que ele caísse. Apanhou sua mulherzinha. Tirou a Jó tudo o que tinha, mas deixou apenas quem podia ajudá-lo, não para consolar o marido, antes para tentá-lo. Apanhou aquela que não observa- va a cabeça da serpente. Ela ainda era Eva, mas Jó não era mais Adão. Tendo perdido tudo, restou a Jó a mulher que o tentasse e ficou com Deus que o governava. Quem sofreu tão repentina pobreza se consideras sua casa? E quem mais rico que ele se olhas seu coração? Vê a pobreza da casa: perdeu tudo. Vê a riqueza do coração: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; como foi do agrado do Senhor assim se fez; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). Sabia quem o governava e quem o tentava. Conhecia quem dava permissão ao tentador. Diz: que o diabo nada atribua a si mesmo. Ele tem a vontade de danifi-car, contudo não teria poder para isso se não o recebes-se. Sofro na medida que ele recebeu faculdade para isso. Não sofro da parte dele, mas da mão daquele que lhe deu poder para tanto. Desprezo a soberba do tentador e suporto o castigo de meu pai. O tentador foi repelido, sua cabeça era observada e ele não pôde penetrar no coração. O diabo atacou de fora a cidade com muralhas, mas não a tomou. Chegou a tentação. Foi-lhe permitido atacar o corpo de Jó e feriu-o com uma ferida grave da cabeça aos pés; consumido de podridão, fervilhava de vermes e tendo perdido a casa estava sentado no monturo. Ali Eva cativa, que restara não para auxílio ao marido, mas para causar-lhe uma queda, sugere-lhe que blasfeme contra Deus. O diabo no paraíso, primeiro, sugeriu que desprezasse a Deus, e agora que blasfeme contra Deus. Conseguiu-o então do homem em perfeita saúde, e agora foi vencido por um homem putrefacto. No paraíso derrubou, no monturo foi superado. Aquele dragão observava se Jó resvalaria pela língua. Ao agir, o homem parece ter pés próprios para isto, enquanto atua, movimenta-se, anda. Jó proferiu muitas palavras. Os leitores sabem quantas coisas ele falou. Entre tantas palavras, a serpente observava seu calcanhar para ver se escorregava. Ele, contudo, que observava a cabeça da serpente, repeliu toda sugestão. Respondeu também à mulher, como era conveniente responder-lhe: “Falas como uma insensata; se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males? Apesar de tudo isso, Jó não caiu jamais” (Jó 2,10). Muitos não entendem aquelas pala- vras, e alguns pensam que Jó proferiu algo de duro contra Deus. | |
§ 8 | Pois, entre muitas outras proferiu também essas palavras, parecendo irado contra Deus, conforme opinam alguns que não entendem, pois ele fazia as vezes de outra personagem, como uma grande profecia: “Oxalá existisse um árbitro entre nós!” (Jó 9,33, sg LXX). Assim se dirige ele a Deus. Que significa: “Oxalá existisse um árbitro entre nós?” Alguém que julgasse a nós dois, e por seu julgamento minha causa vencesse. Assim parece à primeira vista. Mas examina para não escorregares. Pois aquela serpente sempre observa teu calcanhar. Que parece ter dito Jó? “Oxalá existisse um árbitro entre nós!” Oxalá houvesse um mediador que julgasse a mim e a ti! Assim fala o homem de Deus, o homem sentado no monturo, como se fosse um anjo do céu a falar a Deus: “Oxalá existisse um árbitro entre nós!” Mas o que previa? Que desejava? O Senhor disse: “Muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não viram” (Mt 13,17). Desejava um árbitro. Que é um árbitro? Um mediador para resolver uma causa. Não éramos inimigos de Deus e tínhamos uma causa comprometida contra Deus? Quem poria termo a esta causa comprometida, senão aquele mediador que veio para não desaparecer o caminho da misericórdia? Dele fala o Apóstolo: “Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens um homem, Cristo Jesus” (1 Tm 2,5). Se não é homem não é mediador, porque ele é Deus igual ao Pai. Diz outra passagem da Escritura: “Ora, não existe mediador quando se trata de um só, e Deus é um só” (Gl 3,20). O mediador fica entre dois; portanto, Cristo é mediador entre o homem e Deus. Não enquanto Deus, mas enquanto homem; pois enquanto Deus é igual ao Pai e sendo igual ao Pai não é mediador. A fim de se tornar mediador, desce do superior ao inferior, da igualdade com o Pai. Faz o que diz o Apóstolo: “Aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens e sendo exteriormente reconhecido como homem” (Fl 2,7.8). Derrame seu sangue, apague o documento de nossa dívida, reconcilie-nos com Deus, corrigindo nossa vontade segundo a justiça e inclinando para a misericórdia a sentença de Deus (cf Cl 2,14). Da mesma forma que expusemos, à medida que o Senhor nos concedeu, o que de fato é aquilo que parece duro nas palavras de Jó, assim o restante que ali parece áspero e blasfemo, tem seu sentido. Pensaríamos ser diferente, se o próprio Deus não o atestasse, antes de Jó tomar a palavra e depois de tudo o que falou. Em primeiro lugar, Deus deu este testemunho: “Homem íntegro e reto, que teme verdadeiramente a Deus” (Jó 1,8). Assim falou Deus, e disse isto antes de sua provação. Todavia, para evitar que alguém não entendendo bem aquelas palavras se escandalizasse, e pensasse que Jó fora um varão justo antes da tentação, mas que durante esta gravemente tivesse pecado e caído em sacrílega blasfêmia, quando terminaram todos os discursos do próprio Jó e de seus amigos que deviam consolá-lo, o Senhor prestou este testemunho de que estes não haviam proferido a verdade como seu servo Jó. “Não falastes corretamente de mim, como o meu servo Jó” (Jó 42,7.8). Em seguida, ordena-lhe que ofereça pelos amigos vítimas para que seus pecados fossem perdoados. | |
§ 9 | Vamos, meus irmãos. Quem quiser observar a cabeça da serpente e atravessar o mar desta vida com segurança, uma vez que forçosamente aqui habita esta serpente e, conforme começara a dizer, o diabo que caiu do céu tem aqui seu lugar, observe sua cabeça, evite o temor e a ambição neste mundo. Ele sempre sugere algo que te cause temor ou desejo. Ele te tenta por amor ou temor. Tu, porém, se temes a geena e amas o reino de Deus, deves observar sua cabeça. Acautela-te da cabeça e estarás seguro; nem ele conseguirá tua queda, nem se alegrará com tua ruína. Ora, ninguém diga conforme mencionei acima: Ele tem grande poder. Os homens verificam que ele parece ter recebido grande poder, mas não vêem quanto perdeu. O santo varão Jó, em suas palavras místicas e profundamente secretas, ao falar do poder atribuído ao diabo, e descrevendo-o de muitas maneiras por meio de comparações e figuras, expôs quem é ele e quanto pode, nestes termos: “Na terra ninguém se iguala a ele, pois foi feito para que meus anjos dele zombem. Afronta os mais altivos, é rei de todos os que estão nas águas” (Jó, 41,24.25, sg LXX). Este testemunho combina com o do presente salmo. Ao se referir ao mar amplo e vasto, onde se agitam animais pequenos e grandes sem número, onde as naves estão a navegar seguras devido ao madeiro, declarou: “Este dragão que criaste para dele zombar”. Mas, se foi feito para zombaria, como Deus dele zomba? Ou será que o entregou para zombaria, isto é, para que fosse ridicularizado? Pensaríamos que Deus zomba dele, se a Escritura, através de Jó, não resolvesse o problema; neste livro foi dito: “Para que meus anjos dele zombem”. Queres zombar do dragão? Sê anjo de Deus. Mas ainda não és anjo de Deus. Até que o sejas, se te encaminhas para isso, existem anjos que zombam do dragão, a fim de que ele não te cause dano. Estão colocados os anjos dos céus acima das potestades do ar e daí procede a palavra do salmo. Os anjos contemplam a lei fixa, a lei eterna, promulgada sem escritura, sem sílabas, sem ruído, sempre firme e estável. Os anjos a contemplam com o coração puro e realizam aqui tudo de acordo com ela; e ela põe em ordem as potestades, das supremas até as ínfimas. E se as potestades dos céus mais altos são regidas pela palavra de Deus, quanto mais as inferiores e terrenas? Nos maus resta apenas a vontade de prejudicar. O homem tem em seu poder o desejo de prejudicar, a vontade de fazer a maldade. Mas, se puder fazer mal a alguém não se glorie disso; não prejudicou por si mesmo, foi-lhe concedida faculdade para tal. Foi proferido uma vez e é sentença firme: “Não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1). Por que então temer? O dragão fique nas águas, fique no mar; passarás por ali. Ele foi feito para ser ridicularizado, e foi-lhe determinado este lugar, destinada esta sede. Pensas que é importante esta sede, porque não conheces as sedes dos anjos, de onde ele caiu. Parece-te honra, mas é condenação. | |
§ 10 | Acolhei esta breve comparação. Realmente é importante conhecer e entender estas coisas. Considerai todo o governo da criação como sendo o de uma grande casa: Esta grande casa tem um senhor, tem escravos e dentre estes, os mais próximos do senhor, cuidam do que ele tem de melhor em vestes, tesouros, celeiros, grandes possessões; o senhor possui também escravos dedicados aos serviços ínfimos, tão sujeitos a seu poder que alguns até limpam as cloacas. Quantos não são os graus, desde os supremos procuradores até estes serviços extremos e ínfimos! Se, portanto, algum procurador importante comete erro e seu senhor, por exemplo, o castiga fazendo-o porteiro de último lugar, e ele, no exercício do ofício, impedir os que quiserem entrar ou sair, conforme o poder que recebeu de seu senhor, aqueles que não sabem que fora um grande procurador, pensam que é grande coisa esse poder, porque desconhecem o que ele perdeu. E no entanto, meus irmãos, aquele porteiro que mencionei, usando a comparação de uma grande casa terrena, pode fazer algo sem conhecimento de seu senhor, e impedir o acesso a alguém, sem ter recebido ordem para tal. Este, o diabo, porém, não está colocado junto à porta que nos dá acesso a Deus. Pois, Cristo é a porta, e por Cristo entramos na vida eterna (Jo 10,9). Mas existe uma porta pela qual entramos neste mundo, porta de mortalidade. Junto dela, em vista das falhas e apoios de nossa carne fraca, fica o diabo, como porteiro. Ele tem poder neste mar que as naves sulcam, mas não é tão grande que possa fazer algo sem conhecimento e contra a vontade de seu Senhor. Que não diga alguém: Perdeu, de fato, aquele grande poder sobre bens mais elevados; mas estou entre estes bens insignificantes e aqui o diabo pode ter poder sobre mim, portanto, devo servi-lo. Não te enganes: teu Senhor te conhece e de tal forma que sabe o número de teus cabelos (cf Mt 10,30). Por que, então, tens medo? É possível que o diabo tente tua carne; é um castigo de teu Senhor e não poder do tentador. Este quer prejudicar à salvação que te foi prometida, mas não lhe é permitido. Cristo seja tua Cabeça para que isto não lhe seja permitido. Repele a cabeça do dragão, não consistas em sua sugestão, não escorregues no caminho. “Este dragão que criaste para dele zombar”. | |
§ 11 | 27.29 Ora, queres ver que não te prejudica sem permissão? “Todos de ti esperam, Senhor, que lhes dês alimento a seu tempo”. Este dragão quer devorar, mas não devora a quem quer. “Todos de ti esperam, Senhor, que lhes dês alimento a seu tempo”. Todos, os animais inúmeros, pequenos e grandes, o próprio dragão e todas as tuas criaturas com que encheste a terra: “Todos de ti esperam que lhes dês alimento a seu tempo”, cada qual um alimento peculiar. Tu tens um alimento próprio, e o dragão tem seu alimento peculiar. Se viveres bem, tens a Cristo por alimento; se dele te apartares, serás alimento do dragão. “Todos de ti esperam que lhes dês alimento a seu tempo”. Qual a sentença do dragão? “Comerás poeira”. Foi proferido contra o dragão: “Comerás poeira todos os dias de tua vida”. Escutaste qual o alimento do dragão. Não queres que Deus te entregue ao dragão como alimento, não sejas comido do dragão, isto é, não abandones a palavra de Deus. Quando foi dito ao dragão: “comerás poeira”, foi também proferido contra o homem trans-gressor. “Tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,14.15). Não queres te tornar alimento da serpente? Não sejas terra. Como, dizes, não serei terra? Não tendo gosto pelas coisas terrenas. Escuta os dizeres do Apóstolo, a fim de não seres terra. Pois, o corpo que tens é terra, mas tu não de-ves ser terra. Como? Diz o Apóstolo: “Se, pois, ressus-citastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra” (Cl 3,1.2). Se não pensas nas coisas terrenas, não és terra; se não és terra, não serás comido pela serpente, a quem a terra foi dada como alimento. Deus dá à serpente seu alimento quando quer, e a quem quer; ele julga corretamente, não se pode enganar, não lhe dá ouro em vez de terra. “Todos de ti esperam, Senhor, que lhes dês alimento a seu tempo. Tu o forneces, eles vêm recolhê-lo”. Estão diante deles; mas eles não o recolhem se tu não o deres. Jó estava diante do diabo; e ele, de fato, não devorou a Jó, nem mesmo ousou tentá-lo, sem permissão. “De ti esperam; tu o forneces, eles vêm recolhê-lo”; se não deres, eles não recolhem. | |
§ 12 | Quanto a nós, irmãos, que alimento temos? Vem em seguida qual é nosso alimento. “Abres as mãos, todos se enchem de bens”. Que quer dizer, Senhor, abres tua mão? “E a quem se revelou o braço do Senhor”? (Is 53,1). Abre-se para aquele a quem se revela alguma coisa, pois revelação é abertura. “Abres as mãos, todos se enchem de bens”. Quando Cristo te revela, “todos se enchem de bens”. Eles não são bons em si mesmos; pois algumas vezes são provados: “Se escondes o rosto, perturbam-se”. Muitos, cheios de bondade, atribuiram a si mesmos o bem que ti-nham e quiseram gloriar-se de sua justiça, dizendo a si mesmos: Sou justo, sou grande; e agradaram-se a si mesmos. Mas o Apóstolo lhes clama: “Que é que possuis que não tenhas recebido?” (1 Cor 4,7). Deus, quando quer provar ao homem que recebe dele tudo o que tem, a fim de que ele possua a bondade unida à humildade, às vezes o perturba. Afasta dele a sua face e o homem cai em tentação; assim, Deus lhe mostra que se era justo e andava retamente era porque Deus o regia. “Se escondeu o rosto, perturbam-se”. Vede o que diz outro salmo: “Eu, porém, disse na prosperidade: Jamais sereis abalado” Presumira de si mesmo. Estava cheio de bondade e pensava que vinha de si mesmo toda a bondade; então disse em seu coração: “Jamais serei abalado”. Mas como já percebera que havia recebido a graça de Deus, dá graças pela experiência: “Senhor, por tua benevolência, confirmaste a minha honra. Escondeste a tua face e fiquei perturbado” (Sl 29,7.8). Assim também aqui: “Abres as mãos, abres as mãos e todos se encherão de bens”. Mãos abertas são as tuas, não as dele. “Se escondes o rosto, perturbam-se”. | |
§ 13 | Mas por que ages assim? Por que escondes teu rosto para que se perturbem? “Se lhes retiras o espírito expiram”. Espírito deles era a soberba, com que se gloriavam, atribuíam tudo a si, consideravam-se justos. Esconde, portanto, tua face para que se perturbem; retira-lhes o espírito para que expirem. Que clamem por ti: “Escuta-me prontamente, Senhor; meu espírito desfaleceu. Não me ocultes a tua face” (Sl 142,7). “Se lhes retiras o espírito expiram e voltam para o pó de onde vieram”. O homem se recupera, arrependendo-se de seu pecado, pois não tinha forças em si mesmo; e confessa a Deus, dizendo que é pó e cinza. Ó soberbo, voltaste ao pó donde saíste, teu espírito se retirou de ti; já não te gabas, não te orgulhas, não te justificas; vês que foste feito do pó, e que, se o Senhor esconde seu rosto, voltas ao pó de onde vieste. Reza, portanto, confessa que és pó, confessa tua fraqueza. | |
§ 14 | 30 Vê como continua o salmo: “Enviarás teu espírito e serão criados”. Tu lhes retiras o espírito e envias o teu espírito: “Tu lhes retiras o espírito”, não terão mais seu próprio espírito. Portanto, foram abandonados? “Bem-aventurados os pobres em espírito”, não foram abandonados, “porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3). Não qui-seram ter o seu próprio espírito e terão o espírito de Deus. O Senhor disse aos futuros mártires: “Quando vos entregarem, não vos preocupeis por saber como ou o que deveis falar, porque não sereis vós que falareis naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós” (Mt 10,19.10). Não atribuais a vós mesmos a fortaleza. Se é vossa e não minha, é dureza, não fortaleza. “Se lhes retiras o espírito, expiram e voltam para o pó de onde vieram. Enviarás o teu espírito e serão criados”. Diz o Apóstolo: “Pois somos criaturas dele, criados para as boas obras” (Ef 2,10). Recebemos do espírito a graça, a fim de vivermos para a justiça, porque é ele quem justifica o ímpio (cf Rm 4,5). “Se lhes retiras o espírito, expiram. Enviarás teu espírito e serão criados e renovarás a face da terra”, isto é, os homens novos, que confessam terem sido justificados e não serem justos por si mesmos, de tal sorte que a graça de Deus esteja neles. Vê como são aqueles com os quais a face da terra foi renovada. Paulo declara: “Trabalhei mais do que todos eles”. Que é isto, Paulo? Nota se foste tu, se foi teu espírito. “Não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Cor 15,10). | |
§ 15 | E então? Quando o Senhor tiver nos retirado o espírito, voltaremos ao pó de onde viemos; consideramos para nossa utilidade a nossa fraqueza, de tal forma que seremos refeitos, após receber seu espírito. Vê como continua o salmo: “Ao Senhor, glória eterna”. Não a ti, não a mim, nem a este ou aquele; “ao Senhor, glória”, não temporal, mas “eterna. Alegrar-se-á o Senhor em suas obras”. Não em tuas obras, como se fossem tuas; porque as obras são tuas se são más, devido a tua iniqüidade; se são boas, elas o são pela graça de Deus. “Alegrar-se-á o Senhor em suas obras”. | |
§ 16 | 32 “Ele que faz tremer a terra com o seu olhar e com seu contacto inflamará as montanhas”. Ó terra, exultavas por causa de tua bondade, atribuías a ti mesma as forças de tua opulência. Eis que o Senhor com seu olhar te faz tremer. Que ele te olhe e te faça tremer. É melhor o tremor da humildade do que a ousadia da soberba. Vede como Deus olha a terra e a faz tremer. O Apóstolo fala à terra que confia em si mesma e exulta por isso: “Operai a vossa salvação com temor e tremor”. Com temor e tremor: “pois é Deus quem opera em vós” (Fl 2,12.13). Dizes, ó Paulo: “Operai”. Dizes que devemos operar, mas por que razão “com tremor? Pois é Deus quem opera em vós. Com tremor”, porque “Deus é quem opera”. Uma vez que foi ele quem deu, não vem de ti o que tens e então hás de operar com temor e tremor; pois se não tremeres, ele retirará o que deu. Com tremor, portanto, deves operar. Verifica o que se acha em outro salmo: “Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com tremor” (Sl 2,11). Se é com tremor que se deve exultar, é porque Deus olha e há terremoto; com o seu olhar tremam nossos corações; então neles Deus repousará. Escuta-o em outra passagem: Sobre quem repousará meu espírito? Sobre o humilde e tranqüilo, sobre aquele que treme diante da minha palavra (Is 66,2). “Ele que faz tremer a terra com o seu olhar e com seu contacto inflamará as montanhas”. As montanhas eram soberbas, gabavam-se, Deus não as tocara; com seu contacto ele as inflamará. Que significa inflamar as montanhas? Elas rogarão ao Senhor. Eis que os montes altos, soberbos, montes imensos, não rogavam a Deus. Queriam ser rogados, mas não rezavam a quem lhes era superior. Qual o potentado, inchado, soberbo desta terra que se digna rezar humildemente a Deus? Refiro-me aos ímpios e não aos cedros do Líbano que o Senhor plantou. Um ímpio qualquer, alma infeliz, não sabe suplicar a Deus e quer que os homens lhe supliquem a ele. É monte e é preciso que Deus o toque para que fumegue; quando começar a fumegar, rezará, oferecerá o sacrifício do coração. Fumegue diante de Deus e em seguida bata no peito; começa então a chorar, porque também a fumaça produz lágrimas. “Com seu contacto inflamará as montanhas”. | |
§ 17 | 33 “Cantarei ao Senhor em toda a minha vida”. Que cantará? Tudo o que somos cantará. Cantemos ao Senhor em nossa vida. Nossa vida agora é esperança; depois será eternidade. A vida mortal é a esperança da vida imortal. “Cantarei ao Senhor em toda a minha vida. Salmodiarei ao meu Deus enquanto eu existir”. Uma vez que nele existirei sem fim, enquanto eu existir salmodiarei ao meu Deus. Não pensemos que, ao começarmos a salmodiar a Deus naquela cidade, passaremos a fazer coisa diferente. Toda a nossa vida será salmodiar a Deus. Se nos causasse fastio aquele que louvamos, poderíamos enfastiar-nos de nosso louvor. Mas, se ele sempre é amado, sempre o louvaremos: “Salmodiarei ao meu Deus enquanto eu existir”. | |
§ 18 | 34 “Gratas lhe sejam minhas palavras. Regozijar-me-ei no Senhor. Gratas lhe sejam minhas palavras”. Quais as palavras que o homem dirige a Deus, senão a confissão de seus pecados? Confessa a Deus o que és, e lhe falaste. Fala com ele, pratica boas obras e fala. Diz Isaías: “Lavai-vos, purificai-vos”. Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! Então, sim, poderemos discutir, diz o Senhor” (Is 1,16-18). Que é discutir com Deus? Mostra-te a ele que te conhece, a fim de que ele se revele a ti que o desconheces. “Gratas lhe sejam minhas palavras”. Eis as tuas palavras que são gratas a Deus. O sacrifício de tua humildade, a contrição de teu coração, o holocausto de tua vida, isto é suave a Deus. E a ti, o que é suave? “Regozijar-me-ei no Senhor”. Esta é a discussão entre os dois, a que me referi: mostra-te àquele que te conhece e ele se revela a ti que o desconheces. Grata lhe é a tua confissão, suave é para ti a sua graça. Ele se revelou a ti. Como se revelou? Pelo Verbo. Que Verbo? O Cristo. Falou-lhe e falou de si mesmo. Tendo enviado Cristo, falou de si mesmo. Sim, ouçamos o próprio Verbo: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). “Regozijar-me-ei no Senhor”. | |
§ 19 | 35 “Desapareçam da terra os pecadores”. Parece furioso o salmista. Ó alma santa, que aqui canta e geme! Oxalá nossa alma esteja unida a esta alma! Oxalá se una a ela, a ela se associe e adira! Verá também a misericórdia daquela alma que se ira. Quem entende isto, se não estiver cheio de caridade? “Desapareçam da terra os pecadores”. Estremeces, porque ela maldiz. E quem é que maldiz? Um santo. Sem dúvida será atendido. Mas, foi dito aos santos: “Abençoai e não amaldiçoeis” (Rm 12,14). Por que então diz o salmo: “Desapareçam da terra os pecadores?” Desapareçam efetivamente; seja retirado o seu espírito e desapareçam, a fim de que Deus envie seu espírito e sejam restaurados. “Desapareçam os pecadores da terra, e os iníquos nunca mais existam”. Quem não deve existir, a não ser o iníquo? Portanto, sejam justificados os iníquos, para que deixem de existir. O salmista viu isto realizado, encheu-se de alegria e voltou ao primeiro versículo do salmo: “Bendize, minha alma, ao Senhor”. Bendiga nossa alma ao Senhor, irmãos, porque se dignou dar-nos a possibilidade de falar e a palavra, e a vós concedeu atenção. Em conversas mútuas digeri o que assimi-lastes, ruminai o que recebestes. Não fique em olvido em vossos corações. Tesouro precioso repouse em vossos lábios (cf Pr 21,20). Com grande esforço tudo isso foi examinado e encontrado, com grande labor foi anunciado e discutido. Seja frutuoso para vós o nosso labor, e bendiga nossa alma ao Senhor. | |