ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 102 | ||
§ 102:1 | Ơ Ó Senhor, ouve a minha oração, e chegue a ti o meu clamor. | |
§ 102:2 | Ɲ Não escondas de mim o teu rosto no dia da minha angústia; inclina para mim os teus ouvidos; no dia em que eu clamar, ouve-me depressa. | |
§ 102:3 | Ꝓ Pois os meus dias se desvanecem como fumaça, e os meus ossos ardem como um tição. | |
§ 102:4 | Ꝋ O meu coração está ferido e seco como a erva, pelo que até me esqueço de comer o meu pão. | |
§ 102:5 | Ꝓ Por causa do meu doloroso gemer, os meus ossos se apegam à minha carne. | |
§ 102:6 | ᶊ Sou semelhante ao pelicano no deserto; cheguei a ser como a coruja das ruínas. | |
§ 102:7 | ⱴ Vigio, e tornei-me como um passarinho solitário no telhado. | |
§ 102:8 | Ꝋ Os meus inimigos me afrontam todo o dia; os que contra mim se enfurecem, me amaldiçoam. | |
§ 102:9 | Ꝓ Pois tenho comido cinza como pão, e misturado com lágrimas a minha bebida, | |
§ 102:10 | ᵽ por causa da tua indignação e da tua ira; pois tu me levantaste e me arrojaste de ti. | |
§ 102:11 | Ꝋ Os meus dias são como a sombra que declina, e eu, como a erva, me vou secando. | |
§ 102:12 | ɱ Mas tu, Senhor, estás entronizado para sempre, e o teu nome será lembrado por todas as gerações. | |
§ 102:13 | Ŧ Tu te lenvantarás e terás piedade de Sião; pois é o tempo de te compadeceres dela, sim, o tempo determinado já chegou. | |
§ 102:14 | Ꝓ Porque os teus servos têm prazer nas pedras dela, e se compadecem do seu pó. | |
§ 102:15 | Ɑ As nações, pois, temerão o nome do Senhor, e todos os reis da terra a tua glória, | |
§ 102:16 | ɋ quando o Senhor edificar a Sião, e na sua glória se manifestar, | |
§ 102:17 | ɑ atendendo à oração do desamparado, e não desprezando a sua súplica. | |
§ 102:18 | ⱻ Escreva-se isto para a geração futura, para que um povo que está por vir louve ao Senhor. | |
§ 102:19 | Ꝓ Pois olhou do alto do seu santuário; dos céus olhou o Senhor para a terra, | |
§ 102:20 | ᵽ para ouvir o gemido dos presos, para libertar os sentenciados à morte; | |
§ 102:21 | ɑ a fim de que seja anunciado em Sião o nome do Senhor, e o seu louvor em Jerusalém, | |
§ 102:22 | ɋ quando se congregarem os povos, e os reinos, para servirem ao Senhor. | |
§ 102:23 | ⱻ Ele abateu a minha força no caminho; abreviou os meus dias. | |
§ 102:24 | ⱻ Eu clamo: Deus meu, não me leves no meio dos meus dias, tu, cujos anos alcançam todas as gerações. | |
§ 102:25 | Ɗ Desde a antigüidade fundaste a terra; e os céus são obra das tuas mãos. | |
§ 102:26 | ⱻ Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles, como um vestido, envelhecerão; como roupa os mundarás, e ficarão mudados. | |
§ 102:27 | ɱ Mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão. | |
§ 102:28 | Ꝋ Os filhos dos teus servos habitarão seguros, e a sua descendência ficará firmada diante de ti. | |
O SALMO 102 | ||
SERMÃO 💬 | ||
§ 1 | 1 Bendiga ao Senhor a nossa alma por todos os dons do Senhor nosso Deus, por todas as suas consolações, por todas as suas correções pela graça que se dignou conceder-nos, pela indulgência que o levou a não retribuir confor-me merecíamos, por todas as suas obras. Foi isso que cantamos. Assim começa o salmo que explicaremos, à me-dida que nossas forças, pela graça daquele a quem nossa alma bendiz. Cada um de nós incite, exorte a sua alma, nesses termos: “Bendize, minha alma, ao Senhor”. E todos nós, irmãos em Cristo de todas as parte da terra, um só homem, cuja Cabeça se acha no céu, este homem único exorte a sua alma, dizendo-lhe: “Bendize, minha alma, ao Senhor”. Ela ouve, obedece, assim procede, fica persuadida, mas não por causa de nossos dons e sim por dádiva daquele a quem nossa alma bendiz. O salmo empreendeu mostrar-nos a razão de bendizer a nossa alma ao Se-nhor, como se lhe tivesse respondido sua alma: Por que me dizes: Bendize ao Senhor? Ouçamos, então, ouça nossa pró-pria alma, considere tudo que a estimula, a fim de deixar a preguiça de bendizer ao Senhor. Pondere se é justo dizer-lhe: “Bendize, minha alma, ao Senhor”, se deve bendizer a outro além do Senhor. “Bendize, minha alma, ao Senhor”. | |
§ 2 | O salmo retoma o convite e se exprime com maior clareza: “Bendize, minha alma, ao Senhor e tudo o que há em mim, o seu santo nome”. A meu ver, ele não se dirige às vísceras corporais; não fala ao pulmão, ou ao fígado, ou aos intestinos que emitam palavras a bendizerem ao Senhor. Com efeito, nosso pulmão é qual um fole que aspira o ar, e faz com que se emita a voz e o som, ao proferirmos as palavras. Em nossa boca a voz não soa se o pulmão não expirar o ar. Mas não se trata disso aqui; interessa só ao ouvido humano. Deus tem ouvidos para o som do coração. O homem fala a seu íntimo que bendiga ao Senhor com essas palavras: Tudo o que há em mim, bendizei ao nome do Senhor. Perguntas o que há no teu interior? A tua alma. Por isso, dizer: “Bendize, minha alma, ao Senhor” equivale a: “tudo o que há em mim, o seu santo nome”. Subentende-se: Bendizei. A voz clama para que um homem ouça; silencia quando não há quem o ouça; mas nunca falta quem ouça teu íntimo. Ora, ressonava a bênção em nossa boca e cantávamos estas mesmas palavras: “Bendize, minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim, o seu santo nome”. Passado um tempo suficiente, calamos; porventura deve calar o nosso íntimo e não bendizer ao Senhor? O som das vozes alterne com pausas, de acordo com o tempo; perpétua seja a voz do nosso íntimo. Ao te unires na Igreja aos que cantam um hino, em tua voz ressoam os louvores de Deus. Cantaste quanto pudeste e saíste; ressoem em tua alma os louvores de Deus. Estás ocupado; tua alma louve a Deus. Tomas alimento; nota o que diz o Apóstolo: “Quer comais, quer be-bais, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Cor 10,31). Ouso dizer: Se dormes, bendiga tua alma ao Senhor. Não acordes com o pensamento de praticar um malfeito, não despertes disposto ao furto, não despertes talvez com um plano de corrupção. Tua inocência, mesmo enquanto dormes, é a voz de tua alma. “Bendize, minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim, o seu santo nome”. | |
§ 3 | 2 “Bendize, minha alma, ao Senhor e não esqueças nenhuma de suas retribuições. Bendize”, diz o salmo, “minha alma, ao Senhor”. Que é a tua alma? Tudo o que há no teu íntimo. “Bendize, minha alma, ao Senhor”. A repetição vale por uma exortação, a que sempre bendigas ao Senhor. “Não esqueças nenhuma de suas retribuições”. Se esqueceres, calarás. Diante de teus olhos não poderão estar as retribuições do Senhor, se não estiverem perante teus olhos teus pecados. Não haja diante de teus olhos o deleite dos pecados passados, mas haja diante de teus olhos a condenação do pecado. Condenação de tua parte, remissão da parte de Deus. É assim que o Senhor retribui, de sorte que possas dizer: “Com que retribuirei ao Senhor por tudo com que me retribuiu”? (Sl 115,12). Os mártires, cuja memória hoje celebramos, consideraram tudo isto; igualmente, todos os santos que desprezaram a vida presente, e conforme o que ouvistes da epístola de S. João, deram a vida pelos irmãos (cf 1Cor 3,16), no que consiste a perfeição da caridade, de acordo com a palavra do Senhor: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Levando tudo isso em conta, os santos mártires desprezaram a vida terrena para recuperá-la no céu, em conformidade com o dito do Senhor: “Quem ama sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna” (Jo 12,25). Pois, eles quiseram retribuir. Quem? O quê? A quem? Homens que retribuíram a Deus com o seu ministério até a morte. Mas, foi algo que ele não tivesse dado? Que deram os homens que não tenham recebido? Por isso, só retribui verdadeiramente o doador único; mas não retribui por nossos pecados, pois merecíamos retribuições bem diferentes. “Não esqueças nenhuma de suas retribuições”. Não fala o salmo de doações, mas de “retribuições”. Nosso crédito era outro; foi-nos devolvido o que não nos era devido. Daí provém a palavra: “Com que retribuirei ao Senhor por tudo com que me retribuiu”? (Sl 115,12). Não declara: que me deu, mas “me retribuiu”. Tu retribuíste bens com obras más; Deus retribuiu com bens o mal. Como retribuíste, ó homem, com o mal pelos bens que Deus te deu? Outrora eras blasfemo, perseguidor e insolente; retribuíste com blasfêmias (cf 1Tm 1,13). Em troca de que bens? Em primeiro lugar, porque existes; mas também a pedra existe. Em seguida, porque vives; mas o animal também vive. Que retribuirás ao Senhor, por te ter criado, acima de todos os animais e acima de todas as aves, à sua imagem e semelhança? (cf Gn 1,26). Não procures com que retribuir. Devolve-lhe a sua semelhança; ele não pede mais. Exige a sua moeda (cf Mt 22,21). Mas, tu, em vez de dar graças, em vez da humildade, da reverência, do culto religioso, isto é, de tudo o que devias a teu Deus, pelos bens que recebeste e a que aludi, retribuíste com blasfêmias. E ele, que faz? Diz: Confessa, que eu perdôo. Eu também retribui, mas não a tua maneira. Tu retribuíste com mal pelo bem; eu retribuo com bens pelos males. | |
§ 4 | Pondera, portanto, ó alma, todas as retribuições de Deus, pensando em todo o mal que fizeste. Quantos são os teus malfeitos, tantas as retribuições em bens. E que presentes lhe ofereces? Que dons? Que sacrifícios? Ele se apraz no sacrifício de não esqueceres suas retribuições: “Bendize, minha alma, ao Senhor. O sacrifício de louvor me glorificará. Oferece a Deus um sacrifício de louvor e cumpre os votos ao Altíssimo” (Sl 49,23.14). Deus quer ser louvado, com o fito de que tu progridas e não para que ele se eleve. Não há absolutamente possibilidade de lhe retribuir. O que ele exige, não o exige para si, mas é em teu favor. Ser-te-á útil; é reservado para ti. Não te ama para com isso se engrandecer, mas para te conduzir até ele. Por isso, os mártires procuravam, e desistiam da busca por não encontrarem; e por isso diziam: “Com que retribuirei ao Senhor por tudo com que me retribuiu?” E não acharam outro modo de retribuir, senão: “Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” (Sl 115,12.13). Com que retribuirás ao Senhor? Procuravas e não encontravas: “Tomarei o cálice da salvação?” Como? Não foi o próprio Senhor quem deu “o cálice da salvação?” Retribui com algo de teu, se podes. Não, eu diria. Não faças isso. Não queiras retribuir com algo de teu; Deus não quer essa retribuição. Se retribuis com algo de teu, será com o pecado. Pois, tudo o que tens recebeste dele; de teu só tens o pecado. Ele não quer retribuição tua, mas deseja retribuição do que é seu. Como o agricultor, se lhe levares a colheita da terra onde ele semeou, retribuíste com um fruto que é dele; se levas espinhos, ofereceste do que é teu. Retribui com a verdade, louva o Senhor na verdade. Se quiseres louvar com o que é teu, mentirás. “Quando ele mente, fala do que lhe é próprio” (Jo 8,44). Se alguém fala a mentira, fala do que lhe é próprio; se fala a verdade, fala do que é de Deus. Que sig-nifica tomar o cálice da salvação, a não ser imitar a paixão do Senhor? Assim fizeram os mártires. Foi isto que o Senhor disse aos apóstolos soberbos, que desejavam obter então tronos sublimes, fugindo do vale das lágrimas; queriam sentar-se um à direita e outro à esquerda. Como, então, lhes respondeu? “Podeis beber o cálice que estou para beber”? (Mt 20,22). O mártir, já preparado para ser santo sacrifício, diz: “Tomarei o cálice da salvação”, tomarei o cálice de Cristo, beberei a paixão do Senhor. Cuidado para não desfaleceres. Mas “invocarei o nome do Senhor”. Aqueles que desfaleceram, não invocaram o nome do Senhor; presumiram de suas forças. Tu, porém, retribui, lembrado de que recebeste aquilo que devolves. Assim, pois, bendiga tua alma ao Senhor e não se esqueça de todas as suas retribuições. | |
§ 5 | 3.5 Ouvi quais são todas as suas retribuições. “Porque ele é que perdoa todas as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. Ele resgata da morte a tua vida e te coroa por sua comiseração e misericódia. De bens cumula teu desejo. Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude”. Eis as retribuições. Que era devido ao pecador, senão o suplício? Que era devido ao blasfemo, a não ser a geena de fogo ardente? Não foi assim que Deus retribuiu. Não temas, não sintas horror, não tenhas temor sem amor. Não esqueças todas as suas retribuições para teu bem. Converte-te a fim de não experimentares as suas retribuições. Diria: más? Se são justas, não são más. Para ti, portanto, são más; mas para Deus nem esses males que sofres são maus, porque se são justos são bons, apesar de serem males para ti que os suportas. Não queres que reverta em mal para ti o que é justo diante de Deus? Não exista na presença de Deus o mal de tua iniqüidade. Ele, de fato, não cessa de chamar, ou pára de instruir aquele que ele chamou, ou deixa de aperfeiçoar o que foi instruído, ou negligencia coroar o perfeito. Que respondes? Que és pecador? Converte-te e receberás estas retribuições. “Porque ele é que perdoa todas as tuas culpas”. Mesmo depois da remissão dos pecados, tens um corpo fraco. Forçoso é que te incitem certos desejos carnais, e que te sugiram prazeres ilícitos; provêm de tua enfermidade. Ainda tens uma carne fraca, a morte ainda não foi absorvida pela vitória, nem este ser corruptível revestiu a incorrup-tibilidade (cf 1Cor 15,53-54). Certas perturbações ainda atingem a própria alma, mesmo depois da remissão dos pecados. Ela ainda vive nos perigos das tentações, deleita-se em algumas sugestões e em outras não se deleita. Nessas em que se deleita, por vezes consente, é apanhada. É doença. Ele “cura todas as tuas enfermidades”. Não temas. Todas as tuas enfermidades serão curadas. Respondes: São grandes; mas o médico é maior. O médico onipotente não se encontra com doença alguma incurável. Apenas aceita o tratamento, não repilas a sua mão; ele sabe o que deve fazer. Não te agrade somente quando ele fomenta, mas tolera ainda quando corta. Suporta a dor medicinal, pensando em readquirir a saúde. Vede, irmãos, quanto os homens suportam nas doenças corporais, a fim de viverem uns poucos dias e depois morrerem, e além disso dias incertos. Pois, muitos após tolerarem grandes dores nas operações feitas pelos médicos, ou morreram nas suas mãos, ou depois de curados, apareceu outra doença e eles morreram. Se soubessem que a morte estaria tão próxima, aceitariam sofrer dores tão intensas? Tu não suportas na incerteza. Aquele que te promete a cura não pode se enganar. Um médico muitas vezes se engana ao prometer a saúde corporal. Por que se engana? Porque não cura um homem que ele tenha criado. Deus fez teu corpo, Deus criou a tua alma; ele sabe como refazer o corpo que formou, reformar o que ele mesmo plasmou. Apenas deves submeter-te às mãos do médico; ele odeia aquele que repele suas mãos. Ninguém faz isso às mãos de um médico humano. Os homens deixam que ele os ligue, corte, e pagarão grande preço por uma dor certa, uma cura incerta. Deus, que te fez, cura-te com toda certeza e gratuitamente. Suporta, portanto, suas mãos, ó alma, que o bendizes, lembrada de suas retribuições, pois ele “cura todas as tuas enfermidades”. | |
§ 6 | “Ele resgata da morte a tua vida”. Cura todas as tuas enfermidades, porque resgata da morte a tua vida. Eis que um corpo corruptível pesa sobre a alma (cf Sb 9,15). A alma, de fato, vive num corpo corruptível. Que vida leva? Sofre vários ônus, sustenta pesos. Ao pensar no próprio Deus (como é digno que o homem pense), quantos são os impedimentos a interpelaram-no devido à necessária corruptibilidade humana? Quantos o chamam para trás? Quantos o desviam de uma sublime intenção? Quantos interpelam? Que turba de fantasias? Quantas sujestões do povo? Tudo isso pulula no coração do homem quais vermes da corrupção. Aumentamos a doença; louvemos o médico. Não te haverá de curar aquele que te fez de tal forma que não adoecerias se quisesses observar as leis salutares? Acaso ele não dispôs e ordenou o que podias tocar e no que não devias tocar para manter a saúde? Não quiseste ouvir para conservar a saúde, escuta para recuperá-la. A doença te fez experimentar como era verdadeiro o que ele mandara. Enfim, uma vez que o homem outrora não atendeu ao aviso, escute ao menos depois que aprendeu por experiência. Que dureza é esta que não cede nem diante da experiência? Com efeito, não pode te curar aquele que te criou de tal forma que nunca adoecerias se tivesses obedecido a seus preceitos? Não te haverá de curar quem fez os anjos e te restaurará de sorte a igualar-te aos anjos? Não curará o homem feito à imagem daquele que criou o céu e a terra? Ele há de curar; importa que queiras ser curado. Na verdade ele cura qualquer doença, mas não cura contra a vontade do doente. Que pode haver de melhor do que ter em teu poder a tua saúde, como se estivesse em tuas mãos? Se quisesses obter um poder sublime aqui na terra, um ducado, procon-sulado, prefeitura, por acaso alcançarias logo, sendo suficiente querer? Acaso o poder atenderia a tua vontade? Muitos desejam chegar a estes pontos e não podem; mas se alcançassem, de que serviria a honra aos doentes? Pois, quem não adoece nesta vida? Quem não arrasta uma longa enfermidade? Nascer aqui, num corpo mortal, é começar a adoecer. Nossa indigência é suprida por remédios cotidianos; medicamentos diários são as refeições que suprem todas as indigências. A fome não te mataria se não lhe desses remédio? A sede não acabaria contigo se tu, bebendo, não propriamente a extinguisses, mas diminuísses? A sede um pouquinho saciada, logo volta. Moderamos com estes alívios a tribulação de nossa enfermidade. Cansado de ficar de pé, alivias-te assentando; o próprio ato de ficar sentado cura o cansaço; mas o próprio remédio, de outro lado, te deixa fatigado; não poderás ficar muito tempo sentado. Todo socorro para um cansaço é o começo de outra fadiga. Por que então, em tua doença, desejas estes alívios? Pensa em primeiro lugar em tua saúde. Por vezes, adoece um homem em sua casa, em seu leito, de maneira evidente. Apesar de ser muito evidente, os homens não querem vê-la. No entanto, alguém adoece em sua casa, está ofegante de febre em seu leito, de uma doença que exige os cuidados do médico; talvez queira pensar na administração dos bens, quer dar alguma ordem em casa, ou na propriedade, ou fazer alguma disposição; imediatamente o cuidado dos seus que o cercam se exprime em voz alta e baixa, para que desista de tais preocupações, nesses termos: Deixa isso, pensa primeiro em tua saúde. Portanto, assim te é aconselhado como a um homem: Se não estás doente, cogita de outras coisas; mas se o próprio mal-estar te convence de estares doente, pensa primeiro em tua saúde. Cristo é a tua salvação; por isso, pensa em Cristo. Toma o seu cálice salutar, “que cura todas as enfermidades”. Se quiseres esta saúde, obtê-la-ás. Ao procurares obter honras e riquezas, não as conseguirás logo que quiseres; aquela é mais valiosa e depende da tua vontade. “Cura todas as tuas enfermidades. Ele resgata da morte a tua vida”. Ele curará todas as tuas enfermidades, quando este ser corruptível revestir a incorruptibilidade. Pois, tua vida já foi resgatada da morte. Podes ficar tranqüilo. Foi feito um contrato bem garantido. Ninguém engana teu redentor, ninguém o compra, ninguém o coage. Exerceu aqui um comércio, já pagou o preço, derramou seu sangue. O Filho único de Deus, dizia, derramou o sangue por nós. Ó alma, reanima-te; vales tanto! “Ele resgata da morte a tua vida”. De- monstrou por seu exemplo, o que prometeu como prêmio. Ele morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação (cf Rm 4,25). Aguardem os membros aquilo que foi demonstrado na Cabeça. Deus não terá cuidado dos membros cuja Cabeça ele levou ao céu? Portanto, “ele resgata da morte a tua vida”. | |
§ 7 | “Ele te coroa por sua comiseração e misericórdia”. Talvez já começavas a ser arrogante, ao ouvires: “te coroa”. Por conseguinte sou grande, lutei. De quem eram as forças? Tuas, mas subministradas pelo Senhor. É evidente que lutas; portanto, serás coroado, porque vences. Mas olha quem venceu primeiro, quem te faz tornar-te, pela segunda vez, vencedor. Diz o Senhor: Mas alegrai-vos, “eu venci o mundo” (Jo 16,33). Por que havemos de nos alegrar, se ele venceu o mundo? Teríamos nós vencido? Sim, de fato nos alegramos, porque vencemos. Por nós mesmos fomos vencidos, mas nele vencemos. Por esta razão ele te coroa, coroando seus dons e não os teus méritos. Diz o Apóstolo: “Trabalhei mais do que todos eles”; mas vede o que acrescenta: “Não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Cor 15,10). Depois de todos os trabalhos, espera a coroa, conforme declara: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2 Tm 4,7.8). Por quê? Porque “combati o bom combate”. Por quê? Porque “terminei a minha carreira”. Por quê? Porque “guardei a fé”. Como combateste? Como guardaste a fé? “Não eu, mas a graça de Deus que está comigo”. Portanto, se és coroado, é por sua misericórdia que és coroado. Em parte alguma podes ser soberbo. Louva sempre o Senhor, não esqueças as suas retribuições. É uma retribuição seres chamado quando és pecador e ímpio para seres justificado. É uma retribuição, quando és reerguido e dirigido para não caíres. Trata-se de uma retribuição receberes forças para perseverares até o fim. É uma retribuição que esta tua carne que pesa sobre ti, ressuscite e não se perca nem um cabelo de tua cabeça. É retribuição seres coroado após a ressurreição. É retribuição louvares a Deus eternamente sem desfalecer. Não esqueças as suas retribuições, se queres que tua alma bendiga ao Senhor, que “te coroa por sua comiseração e misericórdia”. | |
§ 8 | E que farei depois de coroado? Vê como eu era auxiliado na luta e terminada esta sou coroado. Já não restará sugestão inimiga ou corrupção, com as quais deva lutar. Sempre nesta vida lutamos com a corruptibilidade. Mas, como está escrito? “O último inimigo a ser destruído será a morte”. Após a destruição da morte, não temerás mais inimigo algum: “A morte foi absorvida na vitória” (1 Cor 15,26,54). Então será a vitória, haverá uma coroa. Por conseguinte, serei coroado após o combate; e depois, que farei? “De bens cumula teu desejo”. Agora, pois, ouves falar de bens e os desejas; ouves falar de bens e suspiras; e talvez por isso mesmo pecas, enganando-te pela avidez na escolha do bem. Tornas-te réu porque não escutas o conselho bom que Deus te dá, a respeito do que deves des-prezar e do que deves escolher. Talvez negligencias a oportunidade de aprender, e enganas-te na escolha do bem. Sempre que pecas, pareces procurar um bem, desejar refazer-te. São bens os que procuras, mas serão males para ti, se abandonas aquele que fez estes bens. Procura o bem para ti, ó alma. Os bens diferem de um a outro, e cada cria-tura tem o seu bem peculiar, para sua integridade, para a perfeição de sua natureza. São diferentes as coisas necessárias a cada ser imperfeito para alcançar sua perfeição; quanto a ti, procura o que é bom para ti mesmo. “Ninguém é bom senão só Deus” (Mt 19,17). Bem para ti é o bem supremo. Que falta àquele que tem o bem supremo por seu bem? Efetivamente, existem bens inferiores, que são bons para uns ou outros. Em que consiste o bem para o animal, meus irmãos, senão encher o estômago, não sentir falta de coisa alguma, dormir, saltar, viver, ter saúde, gerar? Isso é bom para ele, e até certa medida é seu bem peculiar, concedido por Deus, criador de todas as coisas. É esse o bem que desejas? Deus dá também esse; mas não procures somente esse. Co-herdeiro de Cristo, como te regozijares de ser equiparado a um animal? Ergue tua esperança ao bem de todos os bens. Será bem para ti aquele pelo qual foste feito bom em tua espécie, e todas as coisas em suas espécies foram feitas boas. Pois, Deus fez tudo muito bom. Por conseguinte, se dissermos que o bem que é Deus é muito bom, já afirmamos isso sobre a criatura: “Deus fez tudo muito bom” (Gn 1,31). Que bem, pois, é aquele do qual foi dito: “Ninguém é bom senão Deus?” Declaramos que é muito bom? Vem logo a recordação de todas as criaturas, uma vez que foi dito: “Deus fez tudo muito bom”. Que dizer, então? A palavra nos falta, mas não o afeto. Venha-nos à mente aquele comentário recente do salmo: não podemos explicar, jubilemos. Deus é bom. Quem pode dizer que espécie de bem? Eis que não podemos nos exprimir, e não nos é lícito calar. Portanto, se não podemos nos expressar e não nos é permitido calar, por causa de nossa alegria, nem falemos, nem calemos. Que fazer então, não falando, nem calando? Jubilemos. Jubilai diante de Deus, nosso salvador (Sl 94,1). “Jubilai diante do Senhor, terra inteira”. Que quer dizer: Jubilai? Levantai a voz, com inefável gaúdio, e prorrompa diante dele vossa alegria. E que será rotar de saciedade, se nossa alma sente tanto agora após estas modestas refeições? Que será, quando se realizar, após a redenção de toda a corrupção, o que declara este salmo: “De bens cumula teu desejo?” | |
§ 9 | E como se perguntasses: Quando sacia? Pois, agora não me sacio. Para qualquer parte que me volte, perde o sabor o que alcanço, embora despertasse meu desejo. Se amo enquanto não possuo, e desprezo quando alcanço, que bem me saciará? O louvor de Deus. E este mesmo, enquanto o corpo corruptível pesa sobre a alma e a habitação terrena oprime a mente pensativa, não é pleno, nem perfeito, porque outros deleites provenientes da corrupção me impedem o louvor. Quando será cumulado de bens o meu desejo? Quando? Perguntas, “Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude”. Ora, perguntas quando se cumulará de bens a tua alma? Quando tua juventude for renovada. E acrescenta: “Como a da águia”. Realmente, aqui acha-se oculta alguma coisa. Não vamos omitir o que se costuma dizer a respeito da águia, porque não é fora de propósito. Apenas se insinue em nosso coração que o Espírito Santo o disse por algum motivo: “Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude”. Alude a uma espécie de ressurreição. Com efeito, a juventude da águia se renova, mas não para se tornar imortal. Foi apresentada uma comparação, enquanto é possível empregar um ser mortal para figurar um ser imortal; não para demonstrar como é. Diz-se que a águia, ao envelhecer não pode apanhar o alimento devido ao excessivo crescimento do bico. Pois, a parte superior do bico, que é adunco, e está sobre a parte inferior, cresce demais na velhice; esse aumento não deixa que ela abra o bico, de tal forma que haja um intervalo entre a parte inferior e a superior. Sem este intervalo, a sua mordida não é mais como uma tenaz que corte os pedaços para engoli-los. Crescendo, portanto, a parte superior, que se torna muito curva, a águia não pode abrir o bico e apanhar a presa. Assim lhe acontece quando velha. Agrava-se a fraqueza da velhice e com a falta de alimento ela fica bastante debilitada, pela idade e a inédia. Então, emprega um meio natural para de certa maneira recuperar a força juvenil. Conta-se que a águia esfrega e bate numa pedra a parte superior do bico que havia crescido demais e a impedia de comer. Assim, quebrando-o contra a pedra, livra-se dele, e tira o peso do excedente de seu bico que a impedia de tomar alimento. Procura depois alimento, e restaura-se. E a águia, de velha torna-se jovem de algum modo. Volta o vigor de todos os membros, o brilho das penas, a força das asas, ela voa pelas alturas como antes, enfim, é uma verdadeira ressurreição. Por isso foi empregada esta figura, da mesma forma que se usou a da lua, a qual vai diminuindo e se es-conde, depois reaparece e torna-se lua cheia, para representar-nos a ressurreição. Mas ela não permancece no plenilúnio, de novo decresce, para a figurar. Assim também acontece ao que foi dito sobre a águia. A águia não se restaura para chegar à imortalidade, enquanto, ao contrário, nós alcançamos a vida eterna. Mas, foi usada essa comparação, porque a pedra deve nos tirar aquilo que nos impede. Contudo, não presumas de tuas forças. A firmeza da pedra é que sacode a tua velhice: “Essa rocha era Cristo” (1 Cor 10,4). Em Cristo se renova como a da águia a nossa juventude. Com efeito, envelhecêramos entre nos-sos inimigos, conforme é notório pelo salmo: “Envelheci em meio de todos os meus inimigos” (Sl 6,8). Por que envelhecemos? Devido à carne mortal, a esta carne que é como o feno; por isso: “Meu coração foi ferido e como o feno se-cou, porque me esqueci de comer o meu pão” (Sl 101,5). Aumentou a velhice, fechou-se o bico; quebre-se o excesso contra a pedra. | |
§ 10 | Assim igualmente neste salmo de que tratamos, tendo dito primeiro: “De bens cumula teu desejo”, a alma parece responder: Não me saciarei de alimentos temporais; o Senhor me conceda algo de eterno, algo de eterno ele me conceda: Dê-me sua Sabedoria, dê-me seu Verbo, Deus junto de Deus, e a si mesmo Deus Pai, e o Filho, e o Espírito Santo. Estou a sua porta como mendigo; não dorme aquele que invoco, que me dê três pães. Recordai-vos do evangelho. Eis o que é conhecer as Escrituras de Deus; os que as leram se agitaram. Pois, lembrai-vos que certo pobre veio à casa de seu amigo e lhe pediu três pães. E ele, com sono lhe respondia: “Meus filhos e eu estamos na cama” (Lc 11,5-8). Ele proseguiu pedindo, e arrancou ao amigo aborrecido o que não conseguiu por amizade. Deus, porém, quer dar; mas não dá senão ao que pede, a fim de não dar a quem não o acolhe. Não quer ficar excitado porque o incomodas. Ao rezares, não o incomodas como se ele estivesse dormindo: “Não dormita, nem há de dormir o que guarda Israel” (Sl 120,4). Cristo dormiu uma vez, a fim de que de seu lado fosse tirada a sua esposa: dormiu na cruz, isto é notório. Pois, morreu, de sorte que podia dizer: “Eu adormeci, caí em sono profundo”. Por- ventura aquele que dorme, não poderá reerguer-se? (cf Sl 40,9). Por isso, continua o outro salmo: “despertei porque o senhor me acolherá” (Sl 3,6). E o Apóstolo, como se exprime? “Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele” (Rm 6,9). Portanto, ele não dorme. Cuidado para que não durma a tua fé. Diga, portanto, a alma desejosa de saciar-se de um bem excelso, inenarrável, que a faz antes jubilar, e jubilar mais do que explicar; ela quer, já percebe algo dele; vê-se impedida pelo peso do corpo e que não pode nesta vida saciar-se; e de certo modo responde com essas palavras: Por que me dizes: De bens saciará o teu desejo? Conheço o bem desejável para mim, sei o que me basta, vejo-o em Filipe: “Mostra-nos, diz ele, o Pai e isto nos basta!” Parece desejar somente o Pai, mas o Senhor lhe mostra três pães a desejar. Demonstra que é um só pão, e diz: “Há tanto tempo que estou convosco, e não me conheceis? Filipe, quem me viu, viu o Pai”. Prometeu também o Espírito: “Que o Pai enviará em meu nome” (Jo 14,8.9.26) e ainda: “Que vos enviarei de junto do Pai” (Jo 15,26). Seu dom é igual a ele mesmo. Sei o que desejar; mas quando serei saciado? Eis que agora medito na Trindade; de algum modo percebo algo da Trindade, apenas de maneira obscura em espelho, parcialmente; quando serei saciado? “Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude”. Não serás saciado agora, porque tua alma não é capaz de alimento sólido e substancioso; com o bico fechado, não é capaz. A velhice fechou-te a boca e por isso foi-te dada uma pedra, onde se quebre o que vem da velhice, e tua juventude se renove como a da águia, a fim de poderes comer o teu pão, aquele que disse: “Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6,41). “Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude”; então, saciar-te-ás de bens. | |
§ 11 | 6 “O Senhor tem misericórdia e exerce o direito para com todos os que sofrem de injustiça”. Tem misericórdia agora, irmãos, antes de obtermos a renovação como a águia, antes de sermos cumulados de bens. Que acontece, porém, aqui, que acontece nesta peregrinação, que sucede nesta vida? Acaso somos abandonados? Não. “O Senhor tem misericórdia”. E vede como tem misericórdia, não nos abandonando no deserto, não nos deixando no ermo, até chegarmos à pátria. Ele “tem misericórdia”; mas, para com quem? “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). Acabais de ouvir isto, irmãos, da leitura do evangelho. Ninguém pense que alcançará no futuro a misericórdia de Deus, se for sem misericórdia. Mas, escute qual a medida da misericórdia. Não a excerças apenas em favor de um amigo não de um inimigo. Foi dito: “Amai os vossos inimigos” (Mt 5,44). Queres ser cumulado de bens; usa de plena misericórdia. Plena misericórdia é a misericórdia perfeita. Ela ama, tem caridade mesmo para com aquele que a odeia. Mas, que hei de fazer? respondes. Se começo a amar meu inimigo, receberei injúrias, e suportarei as injúrias, não me vingarei, se existem leis? É justo que te vingues; concede-se que é justo. Mas, vê se não tens em ti o que merece vingança, e então vinga. Assim dizes: Então não me vingarei? Como se Deus reprimisse a justiça da vingança e não extinguisse a soberba do que se vinga. Ou, na verdade, aquela mulher adúltera não devia ser apedrejada? Ou se fosse apedrejada, seria iníquo? Se fosse iníquo, a ordem de apedrejar seria iníqua. A lei, contudo, o ordena, Deus o ordena. Mas, vós, ó vingadores, vede se não sois pecadores. Apresentaram ao Senhor uma mulher adúltera que devia ser apedrejada de acordo com a lei; mas ela foi conduzida ao legislador. Tu que a apresentaste estás enfurecido. Vê quem se enfurece e contra quem. Se é um pecador contra uma pecadora, deixa de enfurecer-te, mas antes confessa. Se és um pecador contra uma pecadora, deixa-a; o legislador sabe o que pensar a seu respeito, como julgar, como perdoar, como curar. Enfureces-te devido à lei? O legislador sabe melhor o que deve fazer do que tu, que queres agir com furor segundo a lei. O Senhor, na ocasião em que a levaram, com a cabeça inclinada escrevia na terra. Escreveu na terra, quando se inclinou para a terra; antes de se inclinar para a terra, não escreveu na terra, mas inscreveu na pedra. A terra já estava para produzir fruto, devido à escrita do Senhor. Ele inscrevera a lei na pedra, representando a dureza dos judeus; escreveu na terra figurando os frutos dos cristãos. Vieram, pois, os judeus trazendo-lhe a adúltera, como as ondas que batem com furor contra a pedra; mas por sua resposta foram quebrados. Pois, replicou-lhes: “Quem dentre vós não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!” Inclinando-se de novo, escrevia na terra. Eles, porém, interrogando a própria consciência, saíram todos (cf Jo 8,3-9). Repeliu-os, não a pobre mulher adúltera, mas a consciência deles adulterada. Queriam castigar, desejavam julgar. Aproximaram-se da pedra, e foram vencidos junto à pedra os seus juízes (cf Sl 140,6). | |
§ 12 | “O Senhor tem misericórdia”, mas para com quem? “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Deves ter misericórdia para com todos. Que misericórdia terás para com o justo? Somente quanto às necessidades corporais; se faltarem teus socorros, não faltarão os de Deus. Por isso, é mais útil para ti mesmo o bem que lhe fazes. Dás ao mendigo que passa e te pede; procuras também um justo para dares, a fim de teres quem te receba nos tabernáculos eternos; porque “quem recebe um justo na qualidade de justo, receberá a recompensa própria de justo” (Mt 10,41). O mendigo te procura; tu mesmo procura o justo. De um foi dito: “Dá a quem te pedir” (Lc 6,30); e de outro: A esmola fique suada em tuas mãos, até que encontres um justo a quem dar. E se durante muito tempo não encontrares, procura até achar. Mas em que servirás? Não és tu que recebeste mais? “Se semeamos em vosso favor os bens espirituais, será excessivo que colhamos os vossos bens espirituais”? (1 Cor 9,11). Daí vem a palavra que explicamos antes, conforme o desígnio do Senhor, que a terra produz feno para os jumentos (cf Sl 103,14), isto é, bens materiais para aqueles que trituram o grão, porque: “Não amordaçarás o boi que tritura o grão” (1 Cor 9,9; 1Tm 5,18; cf Dt 25,4). Por isso vos exortamos a serdes diligentes, precavidos, sóbrios nesta questão; considerai que vossas obras são os vossos tesouros. Porventura, irmãos, falamos assim, para que procedais deste modo para conosco? Julgo, em nome do Senhor, que a seguinte palavra, embora dirigida aos fracos, no entanto provinda do Apóstolo, vos será proveitosa: “Não que eu busque presentes; o que busco é o fruto que se cre-dite em vossa conta” (Fl 4,17). Que esmola darás ao justo? Não o alimentava a viúva, alimentava-o o corvo, porque o alimentava aquele que fizera o corvo; refiro-me a Elias (1Rs 17,6.12). Não falta a Deus o que dar aos seus. Tu, porém, olha o que compras, quando compras, por quanto compras. Pois, adquires o reino dos céus; e só a vida presente é tempo de comprar. E observa como é barato o que compras. Custará quanto tiveres. | |
§ 13 | Tem misericórdia para com o iníquo, mas não enquanto iníquo. Pois, não deves nem receber o iníquo na qualidade de iníquo, isto é, não o recebas por atenção e amor a sua iniqüidade. Pois, é proibido dar ao pecador e acolher os pecadores. Então, como se explica: “Dá a quem pedir?” E como: “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer”? (Rm 12,20). Parecem sentenças contrárias, mas esclarecer-se-ão, em nome de Cristo, aos que batem à porta e serão claras aos que procuram. “Não ajudes ao pecador, e não recebas o pecador” (Eclo 12,4-6); entretanto: “Dá a quem pedir”. Mas, quem me pede é pecador. Dá-lhe, mas não enquanto pecador. Quando dás a alguém, enquanto pecador? Quando te agrada dar pelo fato mesmo de ser pecador. V. Caridade, dê-me um pouco de atenção, até que desenvolva a questão por meio de exemplos, que são muito úteis para que ela se entenda. Disse o seguinte: Alguém está passando fome; se tens o que dar, dá; se vês que deves socorrer, dá. Não sejam tardas as vísceras da misericórdia, porque é um pecador que te procura; pois é um homem pecador o que te procura. Ao dizer: Procura-te um homem pecador, pronunciei dois nomes. Esses dois nomes não são supérfluos. Dois nomes, um que indica que é homem, outro que é pecador. O homem é obra de Deus, o pecador é obra do homem. Dá à obra Deus e não à obra do homem. Como, dizes, me proíbes dar à obra do homem? Que é dar à obra do homem? Dar ao pecador por causa do pecado, agradar-te por causa do pecado. E quem faz isso, respondes? Quem faz? Oxalá ninguém faça, oxalá sejam poucos, oxalá não publicamente. Os que dão aos caçadores do circo, por que motivo dão? Digam-me. Por que dá ao caçador? Porque ama nele o que há de pior; é isto que ele quer alimentar, vestir, a própria maldade pública de todos, nos espetáculos. Quem dá aos palhaços, quem dá aos aurigas, quem dá às meretrizes, por que dá? Por acaso não estão dando a homens? Eles não visam à natureza, obra de Deus, mas à maldade, obra do homem. Queres ver o que honras no caçador, quando o vestes? Se alguém te diz: Continua assim; ama-o, congratula-te com ele, e se queres, de certo modo te despojar para vesti-lo; então consideras injúria que ele te diga: Teus filhos sejam como ele. Replicas: Mas é uma injúria. Por que é injúria se aquilo não é uma iniqüidade? Por que é injúria, se não é uma torpeza? Por conseguinte, ao doares, não doas à fortaleza, mas à torpeza. Quem dá ao caçador não faz doação a um homem, mas a uma profissão péssima, pois se ele fosse apenas homem e não fosse caçador, não lhe darias; honras nele o vício, não a natureza. Ao contrário, se dás a um justo, se dás a um profeta, se dás a um discípulo de Cristo algo de que necessite, sem pensares que se trata de um discípulo de Cristo, de um ministro de Deus, de um dispensador dos bens de Deus, mas cogitares de algum lucro temporal, ou que talvez venhas a necessitar dele em defesa de uma causa, será venal para ti se lhe ofereces presente. Tu não deste a um justo, dando deste modo, nem aquele outro deu a um homem, quando deu ao caçador. Portanto, caríssimos, o problema foi resolvido, e julgo que, embora fosse obscuro, já ficou esclarecido. O Senhor te obrigou a isto, ao dizer: “E quem recebe um justo”. Bastaria. Mas pode-se receber um justo com outra intenção, quando se pensa que ele pode ajudar numa dificuldade temporal, talvez para satisfazer à ambição, ou para socorrer quando se arma ciladas a outro, ou se oprime; se procuras obter dele tal espécie de serviço e talvez por isso o recebas, o Senhor negou que receberás a recompensa de justo, a não ser que ajas conforme ele acrescentou. Pois, afirmou: “Quem recebe um justo na qualidade de justo”, isto é, recebe-o pelo fato mesmo de ser justo; e: “Quem recebe um profeta”, não somente porque recebe um profeta, mas, “na qualidade de profeta”, honrando-o pelo fato mesmo de ser profeta; finalmente: “E quem der, nem que seja um copo d’água fria, a um destes pequeninos, por ser meu discípulo”, isto é, por ser discípulo de Cristo, ou dispensador do sacramento: “Em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa”. Co-mo entendes, então: “Quem recebe um justo na qualidade de justo, receberá a recompensa própria de justo” (Mt 10,41.42), assim também deves compreender: Quem recebe um pecador enquanto pecador, perde a recompensa. | |
§ 14 | Por conseguinte, irmãos, exercei a misericórdia. Não existe outro vínculo de caridade, não há outro veículo que nos conduza desta vida à pátria. Estendei o amor até aos inimigos e senti-vos seguros. Por isso veio o Cristo, do qual tanto tempo antes foi dito: “Da boca das crianças e lactentes tiraste um louvor perfeito, para abateres o adversário e vingador”. Alguns códices trazem “defensor”, mas seria mais exato dizer “vingador” (Sl 8,3). O Senhor quis abater o vingador, isto é, aquele que quis se vingar, de tal sorte que seus pecados não lhe sejam perdoados. Mas, então? A disciplina fica entorpecida? Abolida está toda correção? Não está abolida. Que farás, então a um filho devasso? Não castigarás, não flagelarás? Acaso não refreias um escravo que vires agindo mal, por meio de castigo ou açoites? Deve-se agir assim; faça-se. Deus o admite, ou antes repreende, se não se faz; mas faze com ânimo caridoso e não vindicativo. Se, porém, tiveres de sofrer da parte de alguns mais fortes que te injuriam, e não puderes corrigir com a disciplina, nem mesmo admoestar ou dar ordens, tolera, tolera com segurança. Escuta o evangelho que foi lido há pouco: “Bem-aventurados sois, quando vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim” (Mt 5,11). E acrescentou por qual motivo: não te maldigam os homens por tua própria culpa, mas por causa das justificações de Deus. Pois, ninguém é justo só porque foi amaldiçoado, mas trata do justo, amaldiçoado injustamente. Se é amaldiçoado injustamente, recebe o prêmio. Por esta razão, sê misericordioso tranqüilamente, estende o amor até aos inimigos. Quanto aos que estão sob tua direção, castiga, proíbe com amor, com caridade, atendendo à salvação eterna deles, para não suceder que poupes a carne e a alma pereça. Age assim, e sofrerás da parte de muitos, aos quais não podes impor uma disciplina, porque não estão sob tua juris-dição; suporta as injúrias, e permanece tranqüilo. Pois, “o Senhor tem misericórdia e exerce o direito para com todos os que sofrem injustiça”. Assim, terá misericórdia para contigo, se fores compassivo; sê misericordioso de tal forma que não fique impune o fato de sofreres injustiça. Diz o Senhor: “É minha a vingança e a represália” (Dt 32,35). | |
§ 15 | 7 “A Moisés revelou os seus caminhos”. Que caminhos revelou a Moisés? Por que o escolheu? Sob o nome de Moisés, subentende todos os justos, todos os santos. Apresenta-se um, ocorrem todos. No entanto, por meio de Moisés foi dada a lei, e a própria entrega da lei é um tanto obscura. A lei foi dada para convencer o doente a pedir o médico. Este é o caminho oculto de Deus. Mais acima ouviste: “Cura todas as tuas enfermidades”. As doenças estavam ocultas nos doentes. Foram dados os cinco livros de Moisés. A piscina era ladeada de cinco pórticos (cf Jo 5,2-4). Atraía os doentes, a fim de ficarem ali prostrados e expostos e não para serem curados. Os cinco pórticos expunham os doentes, mas não os curavam. A piscina curava só um que decesse a ela, enquanto as águas se agitavam; esta agitação da piscina figurava a paixão do Senhor. Veio incógnito e uns diziam: Ele é o Cristo; e outros: Não é o Cristo. É justo; é pecador. É mestre; é sedutor. A água agitou-se, isto é, agitou-se o povo. E nesta perturbação da água, um só era curado, porque na paixão do Senhor cura-se a unidade. Quem estiver fora da unidade, apesar de jazer nos pórticos, não poderá ser curado. Embora observe a lei, não chega à salvação. E aí está um mistério; o Senhor ensina que a lei foi dada para convencer os pecadores e para que estes invocassem o médico no intuito de receberem a graça. Disto foi convencido aquele de quem Paulo apóstolo faz as vezes, dizendo: “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” O preceito revelou-lhe uma luta dentro de si mesmo; daí a afirmação: “Percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros” (Rm 7,23-25). Reconheceu estar na miséria, em gemidos, em luta e dissensão; não concordava consigo mesmo, discorde, alheio a si mesmo. E como se exprime, desejando a paz, a paz verdadeira, a paz do alto? “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? A graça de Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso. Pois, onde avultou o pecado, a graça superabundou. Por que o pecado avultou? A lei interveio para que avultassem as faltas” (Rm 5,20). Porque devido a intervenção da lei avultaram os pecados? Porque os homens não queriam se confessar pecadores e sobrevindo a lei, fizeram-se também prevaricadores. Ninguém é prevaricador, a não ser quando transgrediu a lei. O próprio Apóstolo o diz: “Onde não há lei, não há transgressão” (Rm 4,15). O pecado, portanto, avultou, a fim de que a graça superabundasse. Por conseguinte, como eu começara a dizer, este é o grande mistério da lei, que foi dada para que, aumentando os pecados, os soberbos fossem humilhados, humilhados confessassem, e tendo confessado fossem curados. São estes os caminhos ocultos, revelados a Moisés, através do qual foi dada a lei, a fim de que o pecado avultasse e a graça superabundasse. Deus não agiu assim por crueldade, mas por desígnio medicinal. Por vezes o homem se considera são e está doente; estando doente sem o perceber, não chama o médico. A doença se agrava, cresce a moléstia, procura o médico e é inteiramente curado. “A Moisés revelou os seus caminhos e aos filhos de Israel a sua vontade”. A todos os filhos de Israel? Os verdadeiros filhos de Israel, ou antes, a todos os filhos de Israel. Pois, os dolosos, os insidiosos, os hipócritas não são filhos de Israel. E quais, então, os filhos de Israel? “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento” (Jo 1,47). “Aos filhos de Israel a sua vontade”. | |
§ 16 | 8 “Compassivo e misericordioso é o Senhor, longânime e rico em misericórdia”. Por que tão longânime? Por que tão rico em misericórdia? O pecador comete pecados e con-tinua a viver; aumentam os pecados, aumenta a vida; blasfema cada dia, e o Senhor faz seu sol nascer sobre bons e maus (cf Mt 5,45). Chama de toda a parte à correção, chama de toda a parte à penitência, chama a criatura por seus benefícios, chama concedendo tempo de vida, chama pelo leitor, chama pelo comentador, chama por pensamentos íntimos, chama pelo açoite da correção, chama pela misericórdia da consolação: “Longânime e rico em misericórdia”. Mas, acautela-te para não empregares mal a longa misericórdia de Deus, acumulando para ti, conforme diz o Apóstolo, ira para o dia da ira. Pois, assim se exprime o Apóstolo: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade e longânimidade, desconhecendo que a paciência de Deus te convida à conversão”? (Rm 2,5.4). Pensas que lhe agradas porque ele te poupa? Diz o salmo: “Fizeste isto e calei. Suspeitaste, devido a tua iniqüidade, que sou semelhante a ti” (Sl 49,21). Não me agradam teus pecados, mas pela minha longaminidade procuro ações retas. Se punisse enquanto são pecadores, não encontraria quem confessasse. Com efeito, Deus em sua longami-nidade te poupa e te conduz à penitência. Tu, porém, dizes cada dia: Termina o dia de hoje, e assim serei também amanhã, pois amanhã não será meu último dia; e virá o terceiro dia, e de repente chegará a ira de Deus. Irmão, não adies a conversão ao Senhor (Eclo 5,8). Há alguns que se preparam para a conversão e adiam, falando como o corvo: Amanhã, amanhã (“cras, cras”). O corvo que foi solto da arca, não voltou (cf Gn 8,7). Deus não procura a prorrogação do grito do corvo, mas a confissão do gemido da pomba. A pomba que foi solta voltou. Até quando: “Cras, cras?” Atenção ao último cras; uma vez que ignoras qual seja o último cras, basta que tenhas sido pecador até hoje. Ouviste, muitas vezes costumas ouvir, ouviste ainda hoje; o que ouves cotidianamente, não corriges tão depressa. Pois, “com tua obstinação e com teu coração emperdenido, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo suas obras” (Rm 2,5.6). Não imagines que Deus é misericordioso, sem ser justo. “Compassivo e misericordioso é o Senhor”. Ouço e alegro-me; assim tu dizes. Ouve e alegra-te; mas o salmo ainda acrescenta: “Longânime e rico em misericórdia”; e finalmente: “E veraz”. Alegras-te com as palavras acima, mas quanto à última, treme. É misericordioso e longânime de tal forma que seja também veraz. Ao acumulares ira para o dia da ira, não encontrarás com o justo, aquele que desprezaste por ser benigno? | |
§ 17 | 9 “Não ficará irado para sempre, nem encolerizado eternamente”. Se vivemos no meio de flagelos e da cor-rupção da mortalidade, isso provém de sua indignação; é pena do primeiro pecado. Meus irmãos, não devemos pensar em escapar das futuras ameaças, mas também da ira presente; porque esta ira é a de que fala o Apóstolo e da qual ele e nós fomos filhos; na verdade, ele disse: “Éramos por natureza como os demais, filhos da ira” (Ef 2,3). Por isso, vem da ira de Deus que o homem na terra é peregrino e deve labutar. Não provém de sua ira, meus irmãos, a palavra: “Com o suor de teu rosto comerás teu pão, e a terra produzirá para ti espinhos e cardos”? (Gn 3,19.18). Isso foi sentenciado para nossos primeiros pais. Ou se é diferente nossa vida, se puderes, procura algum prazer onde não sintas os espinhos. Escolhe o que quiseres, ser avaro ou devasso, para falarmos somente destes dois vícios; acrescenta um terceiro: ambicioso. Quantos espinhos não produz a ambição das honras? Quantos espinhos na luxúria? Quantos espinhos no ardor da avareza? Os amores torpes, quantos incomodos não trazem? Quantas não são as solicitudes desta vida? Omito a geena. Vê se não és para ti mesmo uma geena. Tudo isso, meus irmãos, provém da ira de Deus. E ao te converteres, para agir bem só poderás trabalhar na terra; e o labor não acaba senão ao terminar o caminho. É preciso trabalhar enquanto estamos a caminho, a fim de nos alegrarmos na pátria. Então, o Senhor consola com suas promessas o teu labor, o teu suor, as tuas incomodidades, e te diz: “Não ficará irado para sempre, nem encolerizado eternamente”. | |
§ 18 | 10.11 “Não nos tratou segundo os nossos pecados”. Graças a Deus que assim quis. Não recebemos o que merecíamos: “Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou em proporção de nossas maldades. Quanto se eleva o céu acima da terra, tanto o Senhor consolidou sua misericórdia sobre os que o temem. O Senhor consolidou sua misericórdia sobre os que o temem”. Em que quantidade? “Quanto se eleva o céu acima da terra”. Que disse o salmista? Se alguma vez pode o céu retirar sua proteção relativamente à terra, poderá Deus deixar de proteger os que o temem. Observa o céu: por toda a parte, de toda a parte protege a terra, e não existe parte alguma da terra que ele não proteja. Os homens pecam sob o céu, praticam toda espécie de crimes sob o céu; o céu, contudo os protege. De lá vem a luz para os olhos, de lá o ar, de lá o vento, de lá a chuva para a terra a fim de que produza frutos, de lá do céu, toda misericórdia. Retira da terra o auxílio do céu e imediatamente ela perece. Como, pois, permanece a proteção do céu sobre a terra, igualmente subsiste a proteção do Senhor sobre os que o temem. Tu temes a Deus; sobre ti está a proteção dele. Mas talvez sejas castigado e pensas que Deus te abandonou. O céu deixaria de proteger a terra? “Quanto se eleva o céu acima da terra, tanto o Senhor consolidou sua misericórdia sobre os que o temem”. | |
§ 19 | 12 E que fez ele? Não nos retribuiu de acordo com nossos pecados. “Quanto dista o oriente do ocidente ele de nós afastou os nossos pecados”. Quanto dista o céu da terra, Deus consolidou sua misericórdia sobre nós. Eu disse por que assim fez: por causa de sua proteção. Como? “Quanto dista o oriente do ocidente ele de nós afastou os nossos pecados”. Sabem estas coisas os que conhecem os sacramentos; no entanto digo o que todos podem ouvir. Quando o pecado é perdoado, a graça desponta; teus pecados estão de certo modo no ocaso; e a graça que te liberta, no oriente. “A verdade germinou da terra”. Que quer dizer: “A verdade germinou da terra”? (Sl 84,12). Surgiu a graça para ti, morrem teus pecados, de certa maneira és renovado. Deves olhar para o oriente, e afastar-te do poente. Aparta-te de teus pecados, converte-te à graça de Deus. Ao serem eles apagados, tu te ergues e progrides. Mas a parte do céu que se levanta, novamente caminha para o ocaso. As comparações não são perfeitas, mas podem adaptar-se às coisas às quais se aplicam; conforme disse da águia, e da lua, assim também aqui. Uma parte do céu descamba, e a outra se levanta; mas a parte que agora se levanta, depois de doze horas há de se pôr. Não acontece assim com a graça que se levanta para nós. E os pecados morrem para sempre, enquanto a graça permanece eternamente. | |
§ 20 | 13 Por que, então: “Quanto dista o oriente do ocidente, tanto ele de nós afastou os nossos pecados”, de tal sorte que os tenha apagado e a graça tenha surgido? Qual a vossa opinião? “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadeceu dos que o temem”. Que se enfureça quanto quiser; é pai. Mas, ele nos castigou, nos afligiu, nos esmagou; é pai. Filho, se choras, chora submisso ao pai; não chores indignado, não chores inchado de soberba. Aquilo que sofres e que te faz queixar-te é remédio, não castigo; é emenda, não condenação. Não repilas o açoite, se não queres ser excluído da herança. Não ponderes o castigo do açoite, mas o lugar que terás no testamento. “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadeceu dos que o temem”. | |
§ 21 | 14 “Porque ele sabe de que fomos feitos”, isto é, conhece nossa fraqueza. Sabe o que fez, como o homem caiu, como deve ser restaurado, como há de ser adotado e enriquecido. Eis que fomos feitos de argila: “O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu, é celeste” (1 Cor 15,47). Deus enviou seu Filho, que se tornou o segundo homem, ele que é Deus antes de todas as coisas. Com efeito, é segundo pela vinda, primeiro na volta. Morreu depois de muitos, ressuscitou antes de todos. “Porque ele sabe de que fomos feitos”. Quem foi feito? Nós. Por que afirmas que ele conhece? Porque teve compaixão. “Lembra-te de que somos pó”. O salmista se volta para Deus e lhe diz: “Lembra-te”, como se Deus se esquecesse. Conhece, sabe, de tal forma que não se esquece. Mas, então, por que: “Lembra-te?” Persevere tua misericórdia em nosso favor. Conheceste de certo modo de que somos feitos; não te esqueças do que somos, a fim de não nos esquecermos de tua graça. “Lembra-te de que somos pó”. | |
§ 22 | 15 “O homem! Assemelham-se ao feno os seus dias”. Lembre-se do que é; não se orgulhe: “assemelham-se ao feno os seus dias”. Como pode se ensoberbecer o feno agora verdejante, e daqui a pouco seco? Como se orgulhar o feno vicejante por pouco tempo, muito pouco, até que o sol dardeje? Ora, é bom que Deus tenha misericórdia para conosco e nos transforme de feno em ouro. Pois, “o homem! Assemelham-se ao feno os seus dias. Florescerá como a flor do campo”. Todo o esplendor do gênero humano: honras, poder, riquezas, orgulho, ameaças são flor do feno. Florece aquela casa, e uma grande casa, floresce aquela família; quantos são os que florescem, ou por quantos anos vivem? Os anos são muitos para ti; diante de Deus é um breve tempo. Deus não conta como tu. Em comparação dos longos séculos, que duram muito, a flor de qualquer casa é como a flor do campo. Sua beleza não perdura nem por um ano inteiro. Tudo o que ali viceja, tudo o que ali brilha, tudo o que é belo, não dura um ano; ou antes, não pode atravessar um ano. Como é exígua a duração das flores, e elas são o que há de belo nas ervas. Aquilo que é muito belo, rapidamente cai. “Toda carne é feno e toda a graça do homem como a flor do campo. Seca o feno e murcha a flor, mas a palavra do Senhor subsiste para sempre” (Is 40,6-8). Mas, uma vez que o Pai sabe de que fomos feitos, que somos feno, e podemos florescer por pouco tempo, enviou-nos seu Verbo, seu Verbo que subsiste para sempre, e fez dele um irmão para o feno que não permanece eternamente. Fez um Unigênito por natureza, único nascido de sua substância, irmão para tantos irmãos adotivos. Não te admires de seres participante de sua eternidade; ele primeiro se fez partícipe da natureza do feno. Ele te negará o que é mais elevado do que tu, uma vez que recebeu de ti o que era humilde? Portanto, o homem, quanto ao que compete ao “homem, assemelham-se seus dias ao feno. Florescerá como a flor do campo”. | |
§ 23 | 16 “Porque o espírito soprará por ele e já não existirá, nem conhecerá mais o seu lugar”. Parece perdição, verdadeira ruína. Eis que ele se incha, entumesce, orgulha-se: “O vento soprará sobre ele e já não existirá, nem conhecerá mais o seu lugar”. Observai os que morrem cada dia. É tudo, o fim. Não se dirige o salmista ao feno, mas àquele por quem o Verbo se fez feno. Pois, tu és homem; por tua causa o Verbo se fez homem; tu és carne, e por tua causa o Verbo se fez carne. “Toda carne é feno e o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Como não será grande a esperança do feno, se o Verbo se fez carne? Aquele que subsiste eternamente dignou-se assumir o feno, a fim de que o feno não desesperasse de si mesmo. | |
§ 24 | 17 Portanto, considerando a ti mesmo, pensa em tua condição humilde, pensa no pó que és. Não te orgulhes. Tudo o que tiveres de melhor, tu o deves a sua graça, a sua mi-sericórdia. Portanto, escuta o que segue: “Mas a misericórdia do Senhor é de sempre e para sempre sobre os que o temem”. Vós que o temeis sereis feno, estareis no meio do feno e no tormento com ele; pois a carne ressurgirá para o tormento. Alegrem-se os que o temem, porque sua misericórdia está sobre eles. | |
§ 25 | 18 “E sua justiça se estende aos filhos dos seus filhos”. Refere-se à retribuição “aos filhos dos seus filhos”. Quantos servos de Deus existem que não têm filhos, quanto menos “filhos dos filhos?” Mas denominam-se filhos nossos as nossas obras. “Filhos dos filhos” seriam a recompensa de nossas obras. “E sua justiça se estende sobre os filhos dos seus filhos, sobre os que guardam a sua aliança”. Cuidem que nem todos pensem caber-lhes o que foi dito. Escolham enquanto é possível. “Sobre os que guardam a sua aliança e que retêm na memória os mandamentos para os observar”. Talvez estavas disposto a te exaltar, a recitar-me o saltério, que eu não conheço, a pronunciar de cor toda a lei. De fato, é melhor sua memória; melhor do que a minha memória, a memória de qualquer justo, se este justo não guardar à letra a lei; mas cuida da observância dos preceitos. Como guardá-los? Não só na memória, mas também na vida. “Os que retêm na memória os mandamentos”, não para repeti-los, mas “para observá-los”. Provavelmente agora uma alma se perturba e diz: Quem pode observar todos os mandamentos de Deus? Quem retém todas as Escrituras de Deus? Não quero apenas que os tenha na memória, mas também que os observe por minhas obras; mas quem retém tudo na memória? Não temas; ele não te onera. “Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22,40). Mas, quero reter toda a lei. Retém, se puderes, quando puderes, como puderes. A qualquer página que interrogares, ela te responderá: Segura o que tens, mantém a caridade: “A finalidade do preceito é a caridade” (1 Tm 1,5). Não cogites da multidão dos ramos; segura a raiz, e tens a árvore toda. “E retêm na memória os seus mandamentos para observá-los”. | |
§ 26 | 19 “O Senhor estabeleceu no céu o seu trono”. Quem, senão Cristo, estabeleceu no céu o seu trono? Aquele que desceu e subiu ao céu, que morreu e ressuscitou, que assumiu a natureza humana e a elevou ao céu, ele próprio estabeleceu no céu o seu trono. O trono é o tribunal do juiz. Notai, portanto, vós que ouvis, que ele “estabeleceu no céu o seu trono”. Faça cada qual o que quiser na terra; o pecado não ficará impune, nem a justiça será infrutífera, porque o Senhor, que perante um tribunal humano foi ridicularizado, estabeleceu no céu o seu trono. “O Senhor estabeleceu no céu o seu trono e a todas as coisas se estende a sua realeza”. Ao Senhor pertence o reino, e a todas as gentes se estende sua realeza. “E a todas as coisas se estende a sua realeza”. | |
§ 27 | 20 “Bendizei ao Senhor todos os seus anjos, poderosos em fortaleza, executores de sua palavra”. Logo tu só és justo ou fiel quando cumpres a palavra de Deus. “Poderosos em fortaleza e executores de sua palavra a fim de que seja ouvida a sua voz”. | |
§ 28 | 20 “Bendizei ao Senhor, todos os seus exércitos, ministros seus, que fazeis a sua vontade”. Todos os anjos, poderosos em fortaleza, dóceis a sua palavra, todas as suas virtudes, todos os seus ministros, que realizam a sua vontade, vós todos, bendizei ao Senhor. Com efeito, todos os que vivem mal, embora tenham a língua em silêncio, maldizem ao Senhor com sua vida. Para que serve tua língua cantar um hino, se tua vida exala sacrilégio? Vivendo mal levaste muitas línguas à blasfêmia. Tua língua canta o hino, e as línguas dos outros que te observam dão-se às blasfêmias. Se, portanto, queres bendizer ao Senhor, pratica sua palavra, executa sua vontade. Edifica sobre a pedra e não sobre a areia. Ouvir e não fazer é edificar sobre a areia. Ouvir e executar é edificar sobre a pedra; não ouvir, nem realizar é nada construir. Se constróis sobre a areia, constróis para ruína; se nada edificas, ficando exposto às chuvas, às enchentes dos rios, aos ventos, não ficarás em pé, serás arrebatado. Por conseguinte, não se deve ficar parado, mas deve-se edificar. Contudo, não edificar para a ruína, mas edificar sobre a pedra a fim de que ao chegar a provação, não derrube a construção. Se for assim, bendize ao Senhor; se não for assim, não afagues a tua língua. Interroga tua vida, que ela mesma te responderá. Descobrirás que és mau. Geme, confessa. Tua confissão pode bendizer ao Senhor; mas tua conversão persevere a bendizer. | |
§ 29 | 22 “Bendizei ao Senhor todas as suas obras, em todos os lugares onde ele domina”. Portanto, em todo lugar. Não seja bendito onde não domine: “Em todos os lugares onde ele domina”. Não aconteça que alguém replique: Não posso bendizer ao Senhor no Oriente, porque ele partiu para o ocidente; ou: Não posso bendizer no ocidente, porque está no oriente. “Não é do oriente, nem do ocidente, nem das montanhas desertas, pois o juiz é Deus” (Sl 74,7.8). Ele está em toda parte; em toda parte seja bendito. Está em toda parte, de sorte que de toda a parte surge o júbilo diante dele; em toda parte é bendito, de forma que em toda parte deve-se viver bem. “Bendizei ao Senhor todas as suas obras”. Quando começares por uma vida correta a bendizer ao Senhor, serão suas obras que o bendirão e não os teus méritos. Ele próprio é quem opera por ti e em ti o bem, segundo os dizeres do Apóstolo: “Operai a vossa salvação com temor e tremor, pois é Deus quem opera em vós” (Fl 2,12.13). Por esta razão, tendo em vista que não te orgulhes por fazeres conforme sua palavra, por praticares o que é de sua vontade, quis que te humilhasses, considerando a sua graça, pela qual o conseguiste. “Em todos os lugares onde ele domina. Bendize, minha alma, ao Senhor”. O último versículo é igual ao primeiro. Bênção no início, bênção no fim. Partimos de uma bênção, voltemos à bênção, reinemos com uma bênção. | |