SALMO 𝟭

Servi ao Senhor com alegria, e apresentai-vos a ele com cântico.

Sabei que o Senhor é Deus!

Foi ele quem nos fez, e somos dele; somos o seu povo e ovelhas do seu pasto.





ORAÇÃO ⁜ SALMO DA BÍBLIA № 100


§ 100:1  Ƈ Celebrai com júbilo ao Senhor, todos os habitantes da terra.

§ 100:2  Servi ao Senhor com alegria, e apresentai-vos a ele com cântico.

§ 100:3  Sabei que o Senhor é Deus! Foi ele quem nos fez, e somos dele; somos o seu povo e ovelhas do seu pasto.

§ 100:4  Entrai pelas suas portas com ação de graças, e em seus átrios com louvor; dai-lhe graças e bendizei o seu nome.

§ 100:5  Porque o Senhor é bom; a sua benignidade dura para sempre, e a sua fidelidade de geração em geração.


O SALMO 100


SERMÃO DO POVO



§ 1
1 Devemos procurar em todo o texto deste salmo centésimo o conteúdo do primeiro versículo.

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.

Ninguém se iluda acerca de sua impunidade apoiado na misericórdia de Deus, porque existe também a justiça; e ninguém que se tiver convertido para melhor tenha pavor do juízo de Deus, porque precedeu a misericórdia. Pois, os homens em seus julgamentos, por vezes se deixam vencer pela misericórdia e agem contra a justiça; parecem ter misericórdia, mas não justiça; outras vezes, com efeito, querendo manter a justiça com todo o rigor, perdem a misericórdia. Deus, porém, nem perde a severidade do julgamento quando age com bondade e misericórdia, nem ao julgar severamente perde a bondade e a misericórdia. E se distinguimos as duas coisas, a misericórdia e a justiça, quanto ao tempo, talvez veremos que não foi sem motivo que foram apresentadas nesta ordem, de tal forma que não se disse: Justiça e misericórdia, mas “misericórdia e justiça”.

Se, conseqüentemente, distinguirmos as duas coisas, quanto à ordem no tempo, provavelmente descobriremos que agora é tempo de misericórdia, e futuramente será o tempo do juízo. Como se explica que primeiro vem o tempo da misericórdia? Primeiro considera a questão em Deus, a fim de também tu, à medida que ele te conceder, imites o Pai. Não é arrogância de nossa parte dizer que devemos imitar nosso Pai; com efeito, o próprio Senhor, o Filho único de Deus, a isso nos exorta, nesses termos:

Deveis ser perfeitos como o vosso Pai é perfeito”.

Tendo ele dito:

Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; deste modo”, prossegue ele, “vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus e cair chuva sobre justos e injustos(Mt 5,48.44.45).

Eis a misericórdia. Ao verificares que justos e injustos contemplam o mesmo sol, gozam da mesma luz, bebem das mesmas fontes, fartam-se com a mesma chuva, enchem-se dos mesmos frutos da terra, igualmente respiram o mesmo ar e possuem com igualdade os bens deste mundo, não julgues que Deus é injusto, por dar estes bens igualmente a justos e injustos. Agora é tempo de misericórdia; ainda não de julgamento. Pois, se Deus primeiro não poupasse por misericórdia, não encontraria a quem coroar por ocasião do juízo. É, portanto, tempo da misericórdia este em que a paciência de Deus induz os homens pecadores à penitência.



§ 2
Escuta como o Apóstolo distingue os dois tempos a fim de os distinguires, também tu. Diz ele:

Ou pensas tu, ó homem, que julgas os que tais ações praticam e tu mesmo as praticas, que escaparás ao juízo de Deus?” Atenção. Pois, o Apóstolo via que ele (aquele ao qual se dirige. Não fala a um homem só, mas ao gênero humano como tal), via que ele cometia muitos pecados diariamente, e no entanto continuava a viver, sem que mal algum o atingisse e por isso pensava que Deus estava dormindo, ou não dava importância às coisas humanas, ou gostasse do mal que os homens faziam. O Apóstolo tira dos corações dos que entendem bem as coisas, tal pensamento. Como se exprime? “Ou pensas tu, ó homem, que julgas os que tais ações praticam e tu mesmo as praticas, que escaparás ao juízo de Deus?” Seria como se dissesse: Por que cometo tantos pecados diariamente, e nada de mal me acontece? Ele prossegue, mostrando-lhe o tempo da misericórdia:

Ou desprezas a riqueza da sua bondade, paciência e longaminidade”.

E na verdade, desprezava tudo isso; mas o Apóstolo desperta-lhe a solicitude:

Desconhecendo que a benignidade de Deus te convida à conversão?” Eis o tempo da misericórdia. Mas, tendo em mira que ele não pensasse que seria sempre assim, como o atemoriza na continuação da epístola? Ora, tu (já se refere ao tempo do juízo; ouviste referência ao tempo da misericórdia, uma vez que:

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor): Ora, com tua obstinação e com teu coração impenitente, estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus que retribuirá a cada um segundo suas obras(Rm 2,3-6).

Eis que:

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.

Mas, ele ameaçou com o juízo; então o juízo de Deus só deve ser temido e não amado? Quanto aos maus, devem temê-lo por causa do castigo, mas os bons devem amá-lo devido à coroa. Uma vez que o Apóstolo atemorizou os maus no testemunho que citei, escuta agora como alimenta a esperança dos bons a respeito do juízo. Apresenta seu caso, e afirma, mostra em si mesmo o tempo da misericórdia. Pois, se não tivesse encontrado o tempo da misericórdia, como o acharia o tempo da justiça? Blasfemo, perseguidor, insolente. Pois, é assim que fala, recomendando o tempo da misericórdia, em que estamos. Diz ele:

Outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia”.

Mas talvez ele sozinho obteve misericórdia? Escuta como ele nos reanima:

Para que em mim, o primeiro, Cristo Jesus demonstrasse toda a sua longaminidade, como exemplo para quantos hão de crer, para a vida eterna(1 Tm 1,13.16).

Que significa:

Para que em mim demonstrasse a longaminidade?” Assim, cada pecador e criminoso pode ver que Paulo recebeu o perdão, e não desespere de si mesmo. Ele apresentou-se a si mesmo em exemplo e com isso reconfortou os outros. Quando? No tempo da misericórdia. Quanto ao tempo do juízo, escuta o que ele fala acerca dos bons, referindo-se a si e aos outros. Primeiro, consegui misericórdia. Por quê? Porque foi blasfemo, perseguidor e insolente. O Senhor veio para perdoar a Paulo e não para dar-lhe o que merecia. Se quisesse retribuir, que encontraria para dar ao pecador, a não ser a pena e o suplício? Não quis dar castigo, mas concedeu a graça. Ouve como aquele que foi perdoado tem o Senhor também por devedor. Encontrou-o como doador no tempo da misericórdia, e mantém-no como devedor no tempo da justiça. Vede como se exprime:

Quanto a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo de minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé”.

Este é o tempo da misericórdia; ouve, agora, o do juízo.

Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me retribuirá o Senhor, justo juiz, naquele dia”.

Não disse: dará, mas:

retribuirá”.

Quando perdoava era misericordioso; quando retribuir será juiz, porque:

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.

Ora, perdoando os pecados fez-se devedor da coroa. Daí:

Obtive misericórdia”.

Em primeiro lugar, portanto, o Senhor é misericordioso, depois “me retribuirá com a coroa da justiça”.

Por que motivo retribuirá? Porque é “justo juiz”.

Por que é justo juiz? “Porque combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé”.

Se é justo não pode deixar de coroar essas ações. Ele encontrou estas ações para coroar; anteriormente, porém, o que encontrara? “Outrora era blasfemo, perseguidor”.

Foi isto que Deus perdoou; aquelas ações coroará, perdoou no tempo da misericórdia, coroará no tempo do juízo; por isso:

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.

Mas, foi apenas Paulo que assim mereceu? Pois, mencionei estas coisas, como ele nos atemorizou com seu testemunho; agora nos anima; tendo dito:

Que me retribuirá o Senhor, justo juiz, naquele dia”, acrescentou:

e não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor a sua aparição(2 Tm 4,6-8).



§ 3
Em conseqüência disso, irmãos, visto que estamos no tempo da misericórdia, não nos iludamos, não nos omitamos, não digamos: Deus sempre poupa. Pequei ontem, e Deus perdoou; peco hoje e Deus me poupa; pecarei amanhã, porque Deus perdoa. Dás atenção à misericórdia e não temes o juízo. Se queres cantar a misericórdia e a justiça, compreende que ele poupara a fim de te corrigires e não para permanceres na malignidade. Não ente-soures ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus. Quanto ao tempo da misericórdia, diz outro salmo:

Ao pecador, porém, Deus diz: Por que enumeras as minhas justiças e tens na boca a minha aliança? Pois, tu detestas a disciplina e atiraste para trás as minhas palavras. Se vias um ladrão, corrias com ele e aos adúlteros te associavas. Tu te assentastes para falar contra teus irmãos e para pôr tropeço ao filho de tua mãe. Fizeste isto e calei”.

Olha o tempo da misericórdia. Que quer dizer:

Calei?” Seria: Não corrigi? Mas: Não julguei. Pois como cala quem cotidianamente clama nas Escrituras, no evangelho, nos seus pregadores? Calei quanto ao suplício, não quanto às palavras.

Fizeste isto e calei”.

E visto que Deus calou, isto é, não castigou, que diz o pecador em seu coração? Ouve:

Suspeitaste, devido a tua iniqüidade, que sou semelhante a ti”.

Quer dizer, não bastou seres tal qual és; e imaginaste que sou igual. E mostrando-lhe o salmista o tempo da misericórdia, atemorizou-o acerca do tempo do juízo:

Censurar-te-ei e manifestarei a ti mesmo diante de teus olhos(Sl 49,16-21).

Tu te colocas atrás, mas eu te porei diante de ti mesmo. Todo aquele que não quer ver seus pecados coloca-se por detrás e examina atentamente os pecados dos outros, não por diligência, mas por inveja. Não quer curar e sim acusar. Esquece-se, porém, de si mesmo. Daí vem que o Senhor diz a esses tais:

Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão, quando não percebes a trave que está no teu”? (Mt 7,3).

Uma vez que cantamos a misericórdia e o juízo, praticando a misericórdia, esperemos com segurança o juízo; estejamos no corpo de Cristo e cantemos assim. Pois, Cristo o canta; se somente a Cabeça canta, este cântico é do Senhor e não nos pertence; se, porém, o Cristo total, isto é, Cabeça e corpo, canta, que estejas entre seus membros, adere a ele pela fé, pela esperança e pela caridade. Nele cantas, nele exultas. Ele em ti trabalha, em ti tem sede, em ti tem fome e é atribulado. Ele em ti ainda morre, e tu nele já ressuscitaste. Pois, se ele não morresse em ti, não teria querido que o perseguidor o poupasse em ti, quando dizia:

Saulo, Saulo, por que me persegues”? (At 9,4).

Por conseguinte, irmãos, Cristo canta; mas sabeis como; assiduamente vos relembramos quem é Cristo, e sei que vos é notório. Cristo Senhor é o Verbo de Deus, pelo qual tudo foi dito. Este Verbo, a fim de nos redimir, fez-se carne, e habitou entre nós (cf Jo 1,3.14).

Fez-se homem o Deus que está acima de todas as coisas, o Filho de Deus igual ao Pai; fez-se homem, a fim de que o Deus homem fosse mediador entre os homens e Deus, e reconciliasse os que estavam longe, reunisse os separados, chamasse de novo os alheados, reconduzisse os peregrinos. Para tudo isso se fez homem. Tornou-se a Cabeça da Igreja, corpo e membros. Procura tu os seus membros. Agora gemem por toda a terra; no final se alegrarão com a coroa da justiça, da qual disse Paulo:

Que me retribuirá o Senhor, justo juiz, naquele dia(2 Tm 4,8).

Agora, portanto, cantemos na esperança, todos reunidos, unânimes. Pois, revestidos de Cristo, somos Cristo com nossa Cabeça; de fato, somos descendência de Abraão. O Apóstolo o diz. Porque disse: somos Cristo. Afirma o Apóstolo:

então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa”.

Somos da descendência de Abraão; vejamos se Cristo é da descendência de Abraão.

Em ti serão abençoadas todas as gentes”.

Não diz:

e aos descendentes, como referindo-se a muitos, mas como a uma só: e à tua descendência, que é Cristo(Gl 3,29.8.16).

E a nós diz:

Então sois descendência de Abraão”.

É claro, porque pertencemos a Cristo. E como somos seus membros e seu corpo, com a nossa Cabeça formamos um só homem. Cantemos, portanto:

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.



§ 4
2 “Entoarei salmos e procurarei entender no caminho sem mácula. Quando virás a mim?” Fora do caminho sem mácula, não podes salmodiar, nem entender. Se queres entender, salmodia no caminho imaculado, isto é, opera com alegria para teu Deus. Qual é o caminho sem mácula? Escuta como continua o salmo:

Eu procedia com coração inocente, no interior de minha casa”.

Este caminho sem mancha começa da inocência, e também com ela é que termina. Por que procuras muitas palavras? Sê inocente, e cumpres a justiça. Mas que é ser inocente? De dois modos pode o homem causar dano, enquanto depende dele: ou fazendo alguém infeliz, ou abandonando-o, pois tu também não queres que outro te torne infeliz, nem queres ser abandonado por ele se estiveres na infelicidade. Quem é que torna os outros infelizes? Aquele que inflige violências ou insídias, rouba os bens alheios, oprime os pobres, furta, seduz a esposa do próximo, é caluniador, causa dor nos homens por malevolência. Quem é que abandona os infelizes? Quem vê um pobre necessitado de auxílio e tendo como ajudar menospreza, despreza, afasta-se dele de coração. Pois, se alguém está inteiramente bem, sem necessitar de qualquer obra de misericórdia, seria soberbo se abandonasse os infelizes. Ainda se encontra na tribulação da carne, sem saber o que pode lhe suceder amanhã, e despreza as lágrimas dos infelizes; não é inocente. Mas quem é inocente? Quem não faz mal a outrem, nem a si mesmo. Efetivamente, quem se prejudica a si, não é inocente. Pode dizer alguém: Não tirei coisa alguma dos outros, não oprimi a ninguém; do que é meu, do meu justo trabalho farei o bem a mim mesmo. Quero preparar um banquete, gastar quanto me agrada, beber com quem quiser quanto me apraz. A quem roubei? A quem oprimi? Quem se queixa de mim? Parece inocente. Mas se ele se corrompe a si mesmo, se derruba em si o templo de Deus, como esperar que pratique a misericórdia para com os outros e poupe os miseráveis? Quem é cruel para si mesmo, pode ser misericordioso com outro? De fato, a justiça se resume numa só palavra acerca da inocência; “Quem ama a iniqüidade, odeia a sua alma(Sl 10,6).

Quando amava a iniqüidade, pensava que prejudicava os outros. Mas vê se é aos outros que prejudica:

Quem ama a iniqüidade, odeia sua alma”.

Prejudica-se, portanto, em primeiro lugar a si mesmo quem quer causar dano aos demais; nem caminha, pois não tem onde andar. Toda malícia sente-se apertada; somente a inocência está ao largo, pode andar.

Eu procedia com coração inocente no interior de minha casa”.

Interior de sua casa seria a própria Igreja, pois nela Cristo caminha. Ou o seu coração, pois o interior de nossa casa é nosso coração. Eu o expus acima:

com coração inocente”.

Que é a inocência do coração? O interior de sua casa. Quem não possui um interior bom é expulso dali. Quem tem o coração opresso, devido a uma consciência onerada (como alguém que sai de casa por causa de uma goteira, ou da fumaça), não agüenta ficar lá no seu interior, porque fica inquieto, não consegue concentrar-se com gosto. Esses tais, por sua intenção, saem e se deleitam fora, nos prazeres corporais. Procuram descanso em futilidades, em espetáculos, na luxúria, em todos os males. Por que desejam sentir-se bem lá fora? Por que não estão bem em seu interior, não se alegram em sua consciência. Foi por isso que o Senhor disse, ao curar o paralítico:

Toma o teu catre e vai para casa(Mt 9,6).

Assim proceda a alma, mais ou menos paralisada; submeta seus membros às boas obras, pratique o bem, tome seu catre, domine seu corpo; vá para casa, entre em sua consciência; já a terá ampla, e pode andar, salmodiar, entender.



§ 5
3.4 “Não admitia diante de meus olhos nenhuma ação má”.

Que significa:

Não admitia diante de meus olhos nenhuma ação má?” Não amava. Pois, costuma-se afirmar, como sabeis, a respeito de alguém que é amado por outro: Ele o tem diante dos olhos. E quem é desprezado, assim costuma se queixar: Não me tem diante dos olhos. Que quer dizer, portanto, ter diante dos olhos? Amar. Que significa: não amar? Não estar no coração. Por esta razão, diz o salmista:

Não admitia diante de meus olhos nenhuma ação má ”, não amava ação má. E expõe o que é ação má:

Detestava os transgressores da lei”.

Atenção, meus irmãos! Se caminhais com Cristo no interior de sua casa, isto é, se ao menos em vosso coração encontrais justo repouso, ou na própria Igreja caminhais por sendas sem mácula, não deveis odiar apenas os transgressores externos, mas qualquer deles que encontrardes interiormente. Quais são os transgressores? Os que odeiam a lei de Deus; os que a escutam, mas não a praticam, são denominados prevaricadores. Odeia os transgressores, repele-os de ti. Mas deves odiar os transgressores e não os homens. Um só é homem e transgressor; como verificais, tem dois nomes: homem e transgressor. Deus criou o homem, mas ele próprio fez-se transgressor. Ama nele a obra de Deus, persegue nele o que ele mesmo fez. Ao perseguires sua transgressão, matas o que o homem fez, e liberta-se o que Deuz fez.

Detestava os transgressores da lei”.



§ 6
Não se unia a mim o coração depravado”.

Que é coração depravado? O coração torto. Que é coração torto? O coração que não é reto. Qual o coração que não é reto? Pondera o que é um coração reto e descobrirás o que é um coração que não é reto. Diz-se que um homem tem o coração reto quando quer tudo o que Deus quer. Atenção! Por exemplo, reza um homem qualquer, pedindo que não aconteça determinada coisa; reza, e não é proibido rezar. Peça quanto puder; mas contra sua vontade aquilo acontece. Submeta-se à vontade de Deus, não resista a uma vontade superior. O próprio Senhor assim explica, mostrando em si mesmo a nossa fraqueza, por ocasião de sua paixão, ao dizer:

A minha alma está triste até a morte(Mt 26,38).

Com efeito, não tinha medo da morte aquele que tinha o poder de entregar a sua vida e poder de retomá-la (cf Jo 10,18).

E o apóstolo Paulo, seu soldado, seu servo, clama:

combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia(2 Tm 4,7.8).

Exulta porque vai morrer; e seu Senhor, seu Imperador está triste diante da morte? Então o servo é melhor que o Senhor? E porque disse o próprio Senhor:

Basta que o servo se torne como o seu senhor e o discípulo como o seu mestre”? (Mt 10,25).

Eis que Paulo é forte perante a morte e o Senhor fica triste? Diz o Apóstolo:

Meu desejo é partir para estar com Cristo, e o próprio Cristo sente-se triste, apesar de Paulo se alegrar por ir estar com ele? Mas que sentido tinha aquela palavra, a não ser que nela ressoava nossa fraqueza? Muitos ainda fracos se contristam com a vinda da morte. Mas tenham o coração reto. Evitem a morte quando puderem. Mas se já não podem evitar, repitam o que disse o próprio Senhor, não por sua causa, mas por nós. Como se exprimiu ele? “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice”.

Aí vem expressa a vontade humana; mas já aparece o coração reto:

Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres, Pai(Mt 26,39).

Se, portanto, o coração reto segue a Deus, o coração depravado resiste a ele. Se algo de adverso lhe sucede, logo clama: Ó Deus, que te fiz? Que mal cometi? Em que pequei? Quer parecer justo, e Deus injusto. Que há de tão perverso? Não basta ser torto, mas julga que a régua está torta. Corrige-te, e descobrirás que é reto aquele do qual te desviaste. Ele é justo, tu injusto. És perverso, porque dizes que o homem é justo e que Deus é injusto. Qual o homem que chamas de justo? A ti mesmo. Pois, ao dizeres: Que te fiz? Julgas-te justo. Mas Deus te responderá: Dizes a verdade; nada me fizeste; tudo o que fizeste é contra ti. Com efeito, se fizesses algo por mim, farias bem. De fato, tudo que se faz de bem, faz-se para mim, porque é realizado devido ao meu preceito. Tudo aquilo, porém, que se faz de mal, é feito para ti, não para mim, porque o mau nada faz senão para si, visto que eu não o mandei. Ao considerardes, meus irmãos, os que assim agem, censurai, argüí, corrigi e se não podeis repreender ou corrigir, não concordeis, a fim de poderdes afirmar:

Não se unia a mim o coração depravado”.



§ 7
Não conhecia o maligno que se apartava de mim”.

Que é:

não conhecia?” Não aprovava, não louvava, não me agradava. Efetivamente, descobrimos que nas Escrituras às vezes conhecer tem o sentido de agradar. Pois, que pode estar oculto a Deus, irmãos? Porventura conhece os justos e não conhece os injustos? Que pensas que ele desconhece? Não digo: Que fazes? mas: Que pensas que ele desconhece? Nem pergunto: Que pensas? mas: Que pensarás que ele não tenha previsto? Por conseguinte, Deus sabe todas as coisas; e no entanto, no final, isto é, no juízo que vem depois da misericórdia, ele afirma a respeito de alguns:

Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não foi em teu nome que expulsamos demônios e em teu nome que fizemos muitos milagres? Em teu nome comemos e bebemos? Então eu lhes direi: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade(Mt 7,22.23).

Existe alguém que ele não conheça? Mas, por que, então:

Nunca vos conheci?” Segundo minha regra, não vos conheço. Pois, conheço a regra de minha justiça; não concordastes com ela, dela vos apartastes, sois distorcidos. Por isso, também está no salmo:

Não conhecia. Não conhecia o maligno que se apartava de mim”.

Que significa: Não conhecia? Por acaso o malvado se encontrar um justo numa rua estreita, repete o que está escrito no livro da Sabedoria de Salomão:

Basta vê-lo para nos importunar(Sb 2,14) e muda de direção para não ver aquele que ele não quer ver? Mas quantos são os malvados que vemos e que nos vêem? Eles não apenas se afastam de nós, mas correm para nós, e por vezes querem por nosso intermédio cometer suas iniqüidades. Isso nos acontece várias vezes. Como, então, dizer que eles se apartam? Aparta-se de ti quem é diferente de ti. Que quer dizer: aparta-se de ti? Não te segue. Que seria: Não te segue? Não te imita. Por conseguinte, “apartava-se de mim o maligno”, isto é, quando o maligno era diferente de mim, não queria imitar meus caminhos, não queria viver conforme o que lhe propunha imitar, eu “não o conhecia”.

Que significa:

Não conhecia?” Não digo que desconhecia, mas que não aprovava.



§ 8
5 “Perseguia aquele que ocultamente falava mal do próximo”.

Aí está um bom perseguidor, não de um homem, mas do pecado.

Não era conviva do homem de olhar orgulhoso e de coração insaciável”.

Que significa:

Não era conviva?” Não comia em sua companhia. V. Caridade preste atenção. Vai ouvir algo de espantoso. Se não era conviva dele, não comia em sua companhia. Alimentar-se é comer. Por que, então, em primeiro lugar, encontramos que o próprio Senhor comeu na companhia dos soberbos? Não me refiro aos publicanos e pecadores, porque eles eram humildes. Eles conheciam a própria doença e procuravam o médico. Encontramos no evangelho que ele comeu na casa de fariseus soberbos. Pois um fariseu soberbo o convidara; trata-se daquele a quem desagradou ter a mulher pecadora, conhecida na cidade, se aproximado dos pés do Senhor; e disse em seu coração (porque a pureza dos fariseus consistia em que nenhum iníquo os tocasse; se alguém imundo os tocasse, mesmo de leve, tinham horror, como se o toque imundo os tornasse imundos. Então, logo que aquela pecadora, que tinha má fama na cidade, a chorar aproximou-se dos pés do Senhor, vendo-a, disse em seu coração):

Se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca”.

Como poderia ele saber que Cristo o ignorava, senão por ter suspeitado que ele ignorava, porque não a repeliu? Se fosse ele, a repeliria. O Senhor, porém, conhecia não somente aquela pecadora, mas, qual médico, via que eram incuráveis as feridas daquele soberbo. Disse então, tendo entendido seu pensamento, e mostrando que ele era soberbo:

Simão, tenho uma coisa a dizer-te: Um credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos denários e o outro cinqüenta. Como não tivesse com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois o amará mais?” E ele proferiu a sentença contra si, pois a verdade lhe extorquiu a confissão:

Suponho que aquele, Senhor, ao qual mais perdoou. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em sua casa e não me derramaste água nos pés; ela, ao contrário, regou-me os pés com lágrimas(Lc 7,36-44), e o restante, como sabeis. Não precisamos deter-nos nas outras partes, por causa do que já empregamos como testemunho. Este fariseu era soberbo, e o Senhor era seu conviva; então como é que diz o salmo:

Não era conviva do homem de olhar orgulhoso e de coração insaciável?” Que quer dizer:

Não era conviva?” Não comia com ele. Como nos propõe o que ele mesmo não fez? Ele nos exorta a imitá-lo. Vemos que foi conviva dos soberbos, e como nos proíbe tomar parte em seus banquetes? Nós, de fato, irmãos, devemos, tendo em vista a correção, nos abstermos de comer com nossos irmãos, a fim de que eles se corrijam. É preferível ser conviva de estranhos e pagãos a ser daqueles que estão perto de nós, se virmos que eles vivem mal, a fim de que se envergonhem e se corrijam, conforme a palavra do Apóstolo:

Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, notai-o, e não tenhais comunicação com ele; e não o considereis, todavia, como um inimigo, mas procurai corrigi-lo como irmão(2 Ts 3,14.15).

Assim agimos muitas vezes, para seu remédio; no entanto, com muitos estranhos e ímpios freqüentemente comemos.



§ 9
Por que diz o salmo:

Não era conviva do homem de olhar orgulhoso e de coração insaciável?” O coração piedoso tem seus banquetes, e o coração soberbo os que lhe são peculiares; o salmista disse, tendo em mira os alimentos do coração soberbo:

de coração insaciável”.

De que se alimenta o coração soberbo? Se é soberbo, é invejoso; não pode ser de outro modo. A soberba é mãe da inveja; é impossível que não a gere, e sempre aparece com ela. Portanto, todo soberbo é invejoso; se é invejoso, alimenta-se dos males alheios. Daí vem que diz o Apóstolo:

Mas se vos mordeis e vos devorais reciprocamente, cuidado, não aconteça que vos elimineis uns aos outros(Gl 5,15).

Vedes, portanto, os que estão comendo; não deveis ser convivas deles. Fugi de tal convívio. Nem ao menos se saciam alegrando-se com os males alheios, porque têm coração insaciável. Acautela-te para não seres apanhado, em seus banquetes nos laços do diabo. Os judeus se alimentavam de tais iguarias, quando crucificaram o Senhor. Pareciam saciar-se com os padecimentos do Senhor (Pois também nós nos alimentamos do fruto da cruz do Senhor, porque comemos o seu corpo).

Insultavam-no ao vê-lo crucificado, porque tinham o coração insaciável; proferiam, portanto, essas palavras:

Se é Filho de Deus, desça da cruz! A outros salvou, a si mesmo não pode salvar!(Mt 27,40.42).

Alimentavam-se de sua crueldade, enquanto Cristo se nutria de sua misericórdia. Dizia:

Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem(Lc 23,34).

Os judeus tinham suas iguarias, e Cristo as suas, muito diferentes. Mas escutai o que se diz da mesa dos soberbos:

Sua mesa se lhes transforme” em armadilha, punição, tropeço (Sl 68,23).

Saciaram-se e foram colhidos. Pois, como as aves caem no laço, ou os peixes comem a isca, mas são apanhados, assim lhes acontece. Têm, portanto, os ímpios as suas iguarias e têm os piedosos as suas. Escuta quais são os banquetes dos piedosos:

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados(Mt 5,6).

Efetivamente, se o piedoso toma o alimento da justiça, e o ímpio o da soberba, não é de admirar que esse tenha o coração insaciável. Alimenta-se da iniqüidade. Não tomes o alimento da iniqüidade, e não serás conviva do homem de olhar orgulhoso e de coração insaciável.



§ 10
6 E tu, de que te alimentavas? Que te deleitava, quando não eras conviva do malvado? “Punha os olhos nos fiéis da região para que refletissem comigo”.

O Senhor diz:

Punha os olhos nos fiéis da região para que refletissem comigo”, isto é, se sentassem junto de mim. Como se sentariam? “Vós vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel(Mt 19,28).

Julgam os fiéis da terra, aos quais foi dito:

Não sabeis que julgaremos os anjos?(1 Cor 6,3).

Punha os olhos nos fiéis da terra para que refletissem comigo. Servia-me aquele que trilhava sendas sem mácula. Servia-me”, não a si. Muitos servem o evangelho, mas servindo a si mesmos, porque procuram seus interesses e não os de Jesus Cristo (cf Fl 2,21).

Que é servir a Cristo? Procurar os interesses de Cristo. Efetivamente, quando são maus que anunciam o evangelho, uns se salvam e outros são castigados. Pois, foi dito:

Fazei tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações(Mt 23,3).

Não tenhas, medo, portanto, ao ouvires um homem malvado pregar o evangelho. Ai deles porque servem a si mesmos, isto é, procuram seus interesses; tu, porém, acolhe a Cristo, recebe dele.

Servia-me aquele que trilhava sendas sem mácula”.



§ 11
7 “Não habitava em minha casa aquele que agia orgulhosamente”.

Referi àquela casa, isto é, ao coração. Não habitava em meu coração o que agia orgulhosamente. Desses tais, nenhum habitava em meu coração. Pois, saltava dali. Ninguém habitava em seu coração, a não ser o manso e tranqüilo; o soberbo ali não descansava. O injusto não pode habitar no coração do justo. Se um justo estiver longe de ti não sei quantas milhas e casas, habi-tareis juntos se tendes um só coração.

Não habitava em minha casa aquele que agia orgulhosamente. Aquele que proferia iniqüidade não permanecia diante de meus olhos”.

Esta é a via sem mácula, na qual percebemos quando o Senhor se aproxima de nós.



§ 12
8 “De madrugada matava todos os pecadores da terra”.

Isso é obscuro. Prestai atenção. O salmo já está no fim.

De madrugada matava todos os pecadores da terra”.

Para quê? “A fim de exterminar da cidade do Senhor todos os malfeitores”.

Existem, portanto, na cidade do Senhor malfeitores, e parece que ainda são poupados. Por quê? Porque é tempo de misericórdia; mas virá o tempo da justiça, porque o salmo assim começa:

Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.

O salmista já declarara acima que somente os bons a ele se uniam. Não aderia aos malvados, nem se deleitava nos banquetes da iniqüidade entre aqueles que serviam a si mesmos, e não ao Senhor, isto é, procuravam os próprios interesses. E se perguntássemos ao Senhor: Então, por que toleraste por tanto tempo em tua cidade a esses tais? Responderia: Agora é tempo da misericórdia. Que significa: é tempo da misericórdia? Ainda não se manifestou o juízo; é noite. Aparecerá o dia, aparecerá o juízo. Escuta as palavras do Apóstolo:

Por conseguinte, não julgueis prematuramente”.

Que é:

prematuramente?” Antes do dia determinado. Escuta por que disse: prematuramente:

Antes que venha o Senhor. Ele porá às claras o que está oculto nas trevas e manifestará os desígnios dos corações. Então cada um receberá de Deus o louvor que lhe for devido(1 Cor 4,5).

Pois, agora, enquanto não vês meu coração e eu não vejo o teu, é noite. Por exemplo, pedes alguma coisa a alguém. Ele não dá e achas que é por desprezo. Talvez não seja, mas não vês seu coração e logo xingas. De noite, deves perdoar aquele que erra. Outro qualquer te estima e pensas que não gosta de ti; ou não gosta e pensas que ele te estima; mas seja como for, é noite. Não tenhas medo. Tem confiança em Cristo, e nele terás o dia. Não há motivo de pensares mal acerca dele, porque temos segurança, temos certeza que ele não pode se enganar; ele nos ama. A respeito de nós, mutuamente, não temos certeza. Mas, Deus conhece nosso amor recíproco. Nós, porém, embora nos amemos mutuamente, quem vê como isto se faz praticamente? Por que ninguém vê os corações? Porque é noite. Nesta noite, as tentações são abundantes. Outro salmo parece referir-se a esta noite:

Estendeste as trevas e fez-se noite; rondam todas as feras da selva. Os leõezinhos rugem pela presa e pedem a Deus o seu sustento(Sl 103,20.21).

À noite os leõezinhos buscam a presa. Quais são os leõezinhos? Os príncipes e as potestades do ar (cf Ef 2,2), os demônios e os anjos do diabo. Como buscam alimento? Quando tentam. Mas como não podem ter acesso, se Deus não lhes der poder para isso, foi dito:

pedem a Deus o seu sustento”.

O diabo pediu licença para tentar Jó. Que alimento era esse? Opulento, saboroso; um justo de Deus, do qual o próprio Deus deu testemunho:

Um homem íntegro e reto, que cultua a Deus(cf Jó 1,8-12).

O diabo pediu permissão de tentá-lo, suplicando alimento a Deus. Teve permissão de tentar, mas não de oprimir; de purificar, e não de derrubar; ou talvez de não purificar, mas de provar. No entanto, os que são tentados, algumas vezes são entregues, por merecerem ocultamente, às mãos do tentador, porque talvez se deram a suas concupiscências. Pois, o diabo a ninguém prejudica se não receber poder da parte de Deus. Mas, quando? De noite. Que é: de noite? No tempo presente. Quando, porém, passar a noite e vier o dia, os maus serão lançados com o diabo no fogo eterno, e os justos irão para a vida eterna (cf Mt 25,46).

Ali não haverá tentador algum, ali não existem leõezinhos, porque a noite já passou. Por isso, O Senhor disse a seus discípulos:

Nesta noite, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, ó Pedro, a fim de que tua fé não desfaleça(Lc 22,31.32).

Que é:

peneirar como trigo?” Assim como o homem não come o trigo antes de triturá-lo para fazer o pão, assim o diabo não absorve a ninguém, antes de derrubá-lo pela tentação. Ele esmaga para comer. Tu, porém, ao seres afligido, se permaneceres grão inteiro, não te perturbes; nada te sucederá. Os bois para triturarem, entram onde está sozinho o trigo? Entram na eira com o trilho. Mas acaso o trigo precisa ter medo? De forma alguma. Só é esmagada a palha; tira-se o supérfluo do trigo, faz-se a ventilação, e fica a massa pura. O tigo vai para o celeiro, e o acervo de palha é queimada num fogo enextinguível (cf Mt 3,12).



§ 13
Por que falei assim? Porque temos em esperança o dia. Devemos ter o dia em Cristo. Pois, enquanto estamos no meio das tentações é noite. Nesta noite Deus poupa os pecadores, não os põe fora. Castiga-os com as provas, para se corrigirem. Ainda os tolera em sua cidade. Pensamos que sempre há de tolerar? Se tiver sempre misericórdia, não haverá justiça; se, porém, “cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”, agora poupa, e no fim julgará. Mas quando julgará? Quando tiver passado a noite. Por isso disse:

De madrugada matava todos os pecadores da terra”.

Que significa:

De madrugada?” Quando despontar o dia, depois que a noite tiver passado.

De madrugada matava todos os pecadores da terra”.

Por que os poupa até de manhã? Porque era noite. Que significa: era noite? Era o tempo em que o Senhor poupava. Poupava enquanto os corações dos homens estavam ocultos. Vês alguém que leva má vida e o toleras. Não sabes como será amanhã, porque é noite. Quem hoje vive bem, amanhã pode se tornar malvado. Pois é noite. E Deus suporta a todos, visto que é longânime. Tolera, a fim de que os pecadores se convertam. Mas serão mortos os que não se corrigirem no tempo da misericórdia. E por quê? A fim de serem expulsos da cidade do Senhor, da sociedade de Jerusalém, da sociedade dos santos, da sociedade da Igreja. Quando, porém, serão mortos? De madrugada. Que quer dizer:

De madrugada?” Quando a noite passar. Por que o Senhor poupa agora? Porque é tempo da misericórdia. Por que não poupa sempre? Porque “Cantar-te-ei a misericórdia e a justiça, Senhor”.

Ninguém se iluda, meus irmãos: serão mortos todos os malfeitores. Cristo os haverá de matar de madrugada, e exterminá-los-á de sua cidade. Mas, agora, tempo da misericórdia, que eles o ouçam. Cristo clama em toda parte, pela lei, pelos profetas, pelos salmos, pelas epístolas, pelos evangelhos. Vede que ele não cala, porque poupa, porque concede misericórdia. Mas, acautelai-vos. Virá o juízo.